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Liberdade e dignidade
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Liberdade e dignidade
Apesar de todos os debates à volta de se saber se somos livres ou não, vivemos na convicção de que o somos, o mesmo acontecendo com as sociedades. Caso contrário, como se explicariam as leis, as normas, os louvores, os julgamentos, as penas, as prisões?
Há uma experiência de fundo: o ser humano não é objecto, coisa. Olhamos para as coisas como um "isso", mas olhamos para os seres humanos como um "alguém". Alguém que é um "tu" como "eu" e, ao mesmo tempo, um tu que não sou eu: outro eu e um eu outro, formando um "nós". O outro, no seu rosto e olhar, impõe-se-me como um "alguém corporal", a visibilidade de uma interioridade inacessível que se mostra, afirma e impõe.
A experiência radical de não se ser coisa dá-se na consciência da liberdade. Cada um, cada uma, faz a experiência originária de ser dado, dada, a si mesmo, a si mesma, experiência que se explicita na consciência da autoposse.
Somos senhores e donos de nós mesmos. Muito cedo, a criança é capaz de dizer ao pai ou à mãe: não és minha dona, meu dono. Pertenço, antes de mais, a mim próprio. Os pais também fazem a experiência de que os filhos não são pertença sua, pois pertencem a eles mesmos.
Claro que a liberdade não é demonstrável. Aliás, se o fosse, não seria liberdade, mas coisa. A liberdade apresenta-se nesta experiência de autoposse e, consequentemente, na experiência de responsabilidade: respondo por mim e pelo que faço. Dada a neotenia - vimos ao mundo por fazer -, temos pela frente a tarefa essencial, constitutiva: fazermo-nos a nós mesmos, uns com os outros, no mundo. Poder-se-ia acrescentar que a experiência da liberdade é uma experiência transcendental: a liberdade afirma-se, mesmo na sua negação. De facto, se tudo estivesse sob o determinismo, não seria possível pôr a questão da liberdade e do determinismo enquanto tal.
A liberdade é o fundamento da dignidade humana. Perante alguém livre, impõe-se o respeito (de respicere: ver e ser visto no mútuo reconhecimento). Cá está: o ser humano não é coisa, não é meio; por isso, não tem preço. Embora a liberdade humana seja finita e sempre em situação, a pessoa pertence ao reino dos fins. Immanuel Kant viu isso bem: as coisas têm um preço, porque são meios; o homem não é meio, mas fim e, por isso, tem dignidade. A dignidade co-implica direitos fundamentais, que se impõe reconhecer. As constituições democráticas reconhecem direitos fundamentais, inalienáveis, não os concedem.
Uma vez que o ser humano se tem de fazer a si mesmo - fazendo tudo o que faz, está a fazer-se a si próprio, de tal modo que o resultado pode ser uma obra de arte ou uma vergonha -, está sempre sob a sua responsabilidade última.
Daqui deriva a angústia que sempre nos acompanha. De tal modo que, como bem viu Dostoievski, na lenda de O Grande Inquisidor, em Os Irmãos Karamazov, há uma dialéctica fundamental entre a liberdade e a segurança, estando muitos - a maior parte? - na disposição de entregar o fardo da liberdade a quem queira ficar com ele, aproveitando-se disso. Entre a liberdade e a segurança, prefere-se a segurança da norma, do não risco, do não ousar.
A liberdade significa, pois, autoposse, de tal modo que cada um, cada uma, pode e tem de tomar decisões no quadro da realização-de-si-no-mundo--com-os-outros. A liberdade, mesmo se condicionada e em situação, implica, portanto, não sujeição total aos determinismos físicos, genéticos, psicológicos ou socioculturais. De facto, depois de todos os condicionamentos físicos, genéticos, culturais, ainda podemos perguntar: o que vou eu fazer de mim com tudo isso?
Também não é liberdade a pura espontaneidade ou arbitrariedade - não é liberdade, por exemplo, fazer pura e simplesmente o que apetece: paradoxalmente, isso é necessidade -, pois o que a "define" é a autodeterminação segundo boas razões, a tomada de decisões racionais, tendo por critério último a plena realização humana de todos os seres humanos. Assim, a liberdade é ao mesmo tempo liberdade de: determinismos e constrangimentos que impedem a sua realização, e liberdade para: a realização de valores nos vários níveis, a começar pelo reconhecimento da liberdade dos outros, pois a liberdade verdadeira quer liberdades. A liberdade não se limita à experiência da sua realidade transcendental e interior, pois exige condições de possibilidade da sua realização concreta nos diferentes domínios: condições económicas, culturais, políticas...
Só neste enquadramento se entende o amor autêntico e verdadeiro. Porque sou dono de mim, me possuo, posso dar-me a mim mesmo a alguém, entregar-me, querer viver sendo de alguém a quem me dou.
Mas quantos são verdadeiramente donos, senhores, de si e não escravos das paixões e das coisas, sobretudo do dinheiro e da opinião pública e do politicamente correcto? Por isso é que, num país em crise, quando se pergunta se alguém é responsável, não comparece ninguém.
por ANSELMO BORGES
Diário de Notícias
Há uma experiência de fundo: o ser humano não é objecto, coisa. Olhamos para as coisas como um "isso", mas olhamos para os seres humanos como um "alguém". Alguém que é um "tu" como "eu" e, ao mesmo tempo, um tu que não sou eu: outro eu e um eu outro, formando um "nós". O outro, no seu rosto e olhar, impõe-se-me como um "alguém corporal", a visibilidade de uma interioridade inacessível que se mostra, afirma e impõe.
A experiência radical de não se ser coisa dá-se na consciência da liberdade. Cada um, cada uma, faz a experiência originária de ser dado, dada, a si mesmo, a si mesma, experiência que se explicita na consciência da autoposse.
Somos senhores e donos de nós mesmos. Muito cedo, a criança é capaz de dizer ao pai ou à mãe: não és minha dona, meu dono. Pertenço, antes de mais, a mim próprio. Os pais também fazem a experiência de que os filhos não são pertença sua, pois pertencem a eles mesmos.
Claro que a liberdade não é demonstrável. Aliás, se o fosse, não seria liberdade, mas coisa. A liberdade apresenta-se nesta experiência de autoposse e, consequentemente, na experiência de responsabilidade: respondo por mim e pelo que faço. Dada a neotenia - vimos ao mundo por fazer -, temos pela frente a tarefa essencial, constitutiva: fazermo-nos a nós mesmos, uns com os outros, no mundo. Poder-se-ia acrescentar que a experiência da liberdade é uma experiência transcendental: a liberdade afirma-se, mesmo na sua negação. De facto, se tudo estivesse sob o determinismo, não seria possível pôr a questão da liberdade e do determinismo enquanto tal.
A liberdade é o fundamento da dignidade humana. Perante alguém livre, impõe-se o respeito (de respicere: ver e ser visto no mútuo reconhecimento). Cá está: o ser humano não é coisa, não é meio; por isso, não tem preço. Embora a liberdade humana seja finita e sempre em situação, a pessoa pertence ao reino dos fins. Immanuel Kant viu isso bem: as coisas têm um preço, porque são meios; o homem não é meio, mas fim e, por isso, tem dignidade. A dignidade co-implica direitos fundamentais, que se impõe reconhecer. As constituições democráticas reconhecem direitos fundamentais, inalienáveis, não os concedem.
Uma vez que o ser humano se tem de fazer a si mesmo - fazendo tudo o que faz, está a fazer-se a si próprio, de tal modo que o resultado pode ser uma obra de arte ou uma vergonha -, está sempre sob a sua responsabilidade última.
Daqui deriva a angústia que sempre nos acompanha. De tal modo que, como bem viu Dostoievski, na lenda de O Grande Inquisidor, em Os Irmãos Karamazov, há uma dialéctica fundamental entre a liberdade e a segurança, estando muitos - a maior parte? - na disposição de entregar o fardo da liberdade a quem queira ficar com ele, aproveitando-se disso. Entre a liberdade e a segurança, prefere-se a segurança da norma, do não risco, do não ousar.
A liberdade significa, pois, autoposse, de tal modo que cada um, cada uma, pode e tem de tomar decisões no quadro da realização-de-si-no-mundo--com-os-outros. A liberdade, mesmo se condicionada e em situação, implica, portanto, não sujeição total aos determinismos físicos, genéticos, psicológicos ou socioculturais. De facto, depois de todos os condicionamentos físicos, genéticos, culturais, ainda podemos perguntar: o que vou eu fazer de mim com tudo isso?
Também não é liberdade a pura espontaneidade ou arbitrariedade - não é liberdade, por exemplo, fazer pura e simplesmente o que apetece: paradoxalmente, isso é necessidade -, pois o que a "define" é a autodeterminação segundo boas razões, a tomada de decisões racionais, tendo por critério último a plena realização humana de todos os seres humanos. Assim, a liberdade é ao mesmo tempo liberdade de: determinismos e constrangimentos que impedem a sua realização, e liberdade para: a realização de valores nos vários níveis, a começar pelo reconhecimento da liberdade dos outros, pois a liberdade verdadeira quer liberdades. A liberdade não se limita à experiência da sua realidade transcendental e interior, pois exige condições de possibilidade da sua realização concreta nos diferentes domínios: condições económicas, culturais, políticas...
Só neste enquadramento se entende o amor autêntico e verdadeiro. Porque sou dono de mim, me possuo, posso dar-me a mim mesmo a alguém, entregar-me, querer viver sendo de alguém a quem me dou.
Mas quantos são verdadeiramente donos, senhores, de si e não escravos das paixões e das coisas, sobretudo do dinheiro e da opinião pública e do politicamente correcto? Por isso é que, num país em crise, quando se pergunta se alguém é responsável, não comparece ninguém.
por ANSELMO BORGES
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