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Porcos estrangeiros
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Porcos estrangeiros
1 É difícil fugir aos lugares-comuns porque se tornou terrivelmente comum ver corpos a boiar, cadáveres a dar à costa ou a apodrecer em contentores de barcos e camiões. Crianças, mulheres, homens, não importa. Não importam. Quem se importa?
Importa-se a Hungria, que hoje mesmo termina a construção de um muro de quatro metros de altura e 175 quilómetros, betão e arame farpado na fronteira com a Sérvia. Importa-se a Bulgária, que tem blindados virados para a Macedónia, para que os refugiados percebam. Importa-se a Eslováquia, que expulsa todos os muçulmanos porque, dizem os governantes, o país não tem mesquitas nem tenciona construí-las. Importa-se a República Checa, que pede ajuda à Nato para fechar o espaço Schengen. Importam-se todos os governos, que convocam cimeiras para resolver o problema e ao mesmo tempo pedem autorização aos respetivos parlamentos para mobilizar o exército para as fronteiras.
É difícil fugir aos lugares-comuns, porque eles são realmente comuns. Apontam armas aos invasores porque não são grande espingarda. A Europa finalmente unida. A união que Borges escreveu, porque não é o amor, mas o espanto e o medo que nos une. E a vergonha. O ódio também. Ódio aos odiados. Aos proscritos. Aos estrangeiros. São porcos e pobres. Temos medo de ser contaminados.
Porque insistem em se misturar? Porque querem vir se não são bem-vindos? Porque continuam a chegar? Porque querem morrer se não chegam? Porcos estrangeiros, porque nos invadem? Porque morrem aqui tão perto? Como pedir desculpas se não sabemos a quem?
Nem culpas, desta vez não morrem solteiras. São famílias sufocadas num camião fechado. No porão de um navio que não chegou. Navio? Nau? Naufragam no Mar Nostrum? Muro para eles. Vigilância na costa. Murro no estômago. No nosso.
Não há poesia numa crise humanitária. Nem música que embale esta desgraça humana. Heaven from hell. A casa comum da Europa virou um condomínio fechado cercado por muros. The Wall. A utopia universalista transformada na exclusão do outro. Armas em vez da política. Ideais virados do avesso. Cidadania europeia é habitar numa fortaleza e impedir que entrem. Pluralismo entre iguais. Moral no lado de cá. Mural para lá da fronteira.
A Europa-rica, a Europa-fortaleza, transforma-se na Europa-cativeiro, em prosperidade mas psicologicamente reclusa, refém do próprio êxito e em permanente incongruência moral. Que morram longe, nas chacinas que fomentamos mas não vemos, nas epidemias que dizimam às dezenas de milhares. Quem se importa não se incomoda. A perturbação é vê-los morrer à nossa porta, quando naufragam às centenas nas nossas praias. Shine on your crazy diamond.
2 Paulo Ferreira, no texto sempre certeiro que agora publica no Observador, notava que "não faz sentido que o mundo seja hoje mais globalizado para tudo exceto para os cidadãos". É o primeiro dos paradoxos: à medida que os países se entregaram de corpo e alma à globalização - o que significa à liberdade de movimentos - foram simultaneamente cerrando os dentes e fechando fronteiras aos fluxos migratórios. Fazendo um jogo semântico com migrantes e refugiados, confundindo deliberadamente legislações nacionais com a lei internacional, com o mesmo e único intuito: expulsar o que não é igual.
Mesmo nos Estados Unidos, que se fizeram da miscigenação, do multiculturalismo, o populista Donald Trump sobe nas sondagens sempre que se atira aos imigrantes hispânicos. Estranho mundo, país esquisito que elege por duas vezes um presidente negro e agora ameaça cair nas mãos de um xenófobo troglodita.
Trump também tentou bater nas mulheres, fez comentários misóginos, e teve problemas. O que leva Fernando Vallespín, um cientista político que escreve maravilhosamente no El País, a desenvolver uma tese tão interessante quanto inquietante: "No Ocidente o princípio moral que nos obriga a tratar todas as pessoas como iguais, independentemente da sua origem, raça ou condição, deixou de ser um tabu. Não há problema em desqualificar o outro, mas o seu lapso sexista afeta também os "nossos" - as "nossas" neste caso - e isso não se tolera."
A moral só se rege para os que estão do lado de cá da fronteira. A sociedade é cada vez mais mundial, mas também cada vez mais organizada em ilhas de populações que, política e culturalmente, se isolam. No caso europeu, um ensaio da pré--globalização, há um segundo paradoxo que emerge e faz o seu caminho: quanto mais permeável fica a fronteira exterior, mais se caminha para o reforço das fronteiras internas.
Os políticos têm reduzido este problema a questões meramente administrativas e, na maioria dos casos, de discussão bilateral. Erro crasso.
A crise em Calais mostra que a reversão das fronteiras clássicas não é apenas um perigo latente dos novos países membros dos Balcãs. E as declarações de David Cameron nada ficam a dever à senhora Marine Le Pen, que por acaso é francesa e volta a ganhar fôlego na corrida ao Eliseu.
3 Na pacata aldeia, a vidinha passa ao lado de um problema que parece não ser nosso. A conversa eleitoral oscila entre o vazio socialista e a ausência do poder instituído. Um cartaz simulado é mais relevante do que as terríveis imagens reais de seres humanos maltratados, humilhados, transportados como gado nas carruagens de comboios que nos fazem arrepiar de outros tempos.
Não há solução fácil, mas ignorar este caminho de refeudalização do continente é uma abstenção perigosa. Pior do que a hesitação sobre o partido a votar no dia 4 de outubro. A escolha não é de sistema, mas do regime em que queremos viver. Sejam refugiados, sejam imigrantes, sejam lá o que for - porque é gente essencialmente desesperada - a vaga resulta em catástrofe, a catástrofe resulta em caos e do caos nascem as ditaduras.
Se os nossos princípios e valores não são suficientes para o sobressalto, os muros que se erguem devem ser repudiados, derrubados na defesa dos nossos interesses.
por SÉRGIO FIGUEIREDO
Diário de Notícias
Importa-se a Hungria, que hoje mesmo termina a construção de um muro de quatro metros de altura e 175 quilómetros, betão e arame farpado na fronteira com a Sérvia. Importa-se a Bulgária, que tem blindados virados para a Macedónia, para que os refugiados percebam. Importa-se a Eslováquia, que expulsa todos os muçulmanos porque, dizem os governantes, o país não tem mesquitas nem tenciona construí-las. Importa-se a República Checa, que pede ajuda à Nato para fechar o espaço Schengen. Importam-se todos os governos, que convocam cimeiras para resolver o problema e ao mesmo tempo pedem autorização aos respetivos parlamentos para mobilizar o exército para as fronteiras.
É difícil fugir aos lugares-comuns, porque eles são realmente comuns. Apontam armas aos invasores porque não são grande espingarda. A Europa finalmente unida. A união que Borges escreveu, porque não é o amor, mas o espanto e o medo que nos une. E a vergonha. O ódio também. Ódio aos odiados. Aos proscritos. Aos estrangeiros. São porcos e pobres. Temos medo de ser contaminados.
Porque insistem em se misturar? Porque querem vir se não são bem-vindos? Porque continuam a chegar? Porque querem morrer se não chegam? Porcos estrangeiros, porque nos invadem? Porque morrem aqui tão perto? Como pedir desculpas se não sabemos a quem?
Nem culpas, desta vez não morrem solteiras. São famílias sufocadas num camião fechado. No porão de um navio que não chegou. Navio? Nau? Naufragam no Mar Nostrum? Muro para eles. Vigilância na costa. Murro no estômago. No nosso.
Não há poesia numa crise humanitária. Nem música que embale esta desgraça humana. Heaven from hell. A casa comum da Europa virou um condomínio fechado cercado por muros. The Wall. A utopia universalista transformada na exclusão do outro. Armas em vez da política. Ideais virados do avesso. Cidadania europeia é habitar numa fortaleza e impedir que entrem. Pluralismo entre iguais. Moral no lado de cá. Mural para lá da fronteira.
A Europa-rica, a Europa-fortaleza, transforma-se na Europa-cativeiro, em prosperidade mas psicologicamente reclusa, refém do próprio êxito e em permanente incongruência moral. Que morram longe, nas chacinas que fomentamos mas não vemos, nas epidemias que dizimam às dezenas de milhares. Quem se importa não se incomoda. A perturbação é vê-los morrer à nossa porta, quando naufragam às centenas nas nossas praias. Shine on your crazy diamond.
2 Paulo Ferreira, no texto sempre certeiro que agora publica no Observador, notava que "não faz sentido que o mundo seja hoje mais globalizado para tudo exceto para os cidadãos". É o primeiro dos paradoxos: à medida que os países se entregaram de corpo e alma à globalização - o que significa à liberdade de movimentos - foram simultaneamente cerrando os dentes e fechando fronteiras aos fluxos migratórios. Fazendo um jogo semântico com migrantes e refugiados, confundindo deliberadamente legislações nacionais com a lei internacional, com o mesmo e único intuito: expulsar o que não é igual.
Mesmo nos Estados Unidos, que se fizeram da miscigenação, do multiculturalismo, o populista Donald Trump sobe nas sondagens sempre que se atira aos imigrantes hispânicos. Estranho mundo, país esquisito que elege por duas vezes um presidente negro e agora ameaça cair nas mãos de um xenófobo troglodita.
Trump também tentou bater nas mulheres, fez comentários misóginos, e teve problemas. O que leva Fernando Vallespín, um cientista político que escreve maravilhosamente no El País, a desenvolver uma tese tão interessante quanto inquietante: "No Ocidente o princípio moral que nos obriga a tratar todas as pessoas como iguais, independentemente da sua origem, raça ou condição, deixou de ser um tabu. Não há problema em desqualificar o outro, mas o seu lapso sexista afeta também os "nossos" - as "nossas" neste caso - e isso não se tolera."
A moral só se rege para os que estão do lado de cá da fronteira. A sociedade é cada vez mais mundial, mas também cada vez mais organizada em ilhas de populações que, política e culturalmente, se isolam. No caso europeu, um ensaio da pré--globalização, há um segundo paradoxo que emerge e faz o seu caminho: quanto mais permeável fica a fronteira exterior, mais se caminha para o reforço das fronteiras internas.
Os políticos têm reduzido este problema a questões meramente administrativas e, na maioria dos casos, de discussão bilateral. Erro crasso.
A crise em Calais mostra que a reversão das fronteiras clássicas não é apenas um perigo latente dos novos países membros dos Balcãs. E as declarações de David Cameron nada ficam a dever à senhora Marine Le Pen, que por acaso é francesa e volta a ganhar fôlego na corrida ao Eliseu.
3 Na pacata aldeia, a vidinha passa ao lado de um problema que parece não ser nosso. A conversa eleitoral oscila entre o vazio socialista e a ausência do poder instituído. Um cartaz simulado é mais relevante do que as terríveis imagens reais de seres humanos maltratados, humilhados, transportados como gado nas carruagens de comboios que nos fazem arrepiar de outros tempos.
Não há solução fácil, mas ignorar este caminho de refeudalização do continente é uma abstenção perigosa. Pior do que a hesitação sobre o partido a votar no dia 4 de outubro. A escolha não é de sistema, mas do regime em que queremos viver. Sejam refugiados, sejam imigrantes, sejam lá o que for - porque é gente essencialmente desesperada - a vaga resulta em catástrofe, a catástrofe resulta em caos e do caos nascem as ditaduras.
Se os nossos princípios e valores não são suficientes para o sobressalto, os muros que se erguem devem ser repudiados, derrubados na defesa dos nossos interesses.
por SÉRGIO FIGUEIREDO
Diário de Notícias
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