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O rosto de Deus
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O rosto de Deus
"A ética não é o corolário da visão de Deus; é essa mesma visão" (Levinas)*
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas, 336 mil refugiados atravessaram o Mediterrâneo este ano. Em Lesbos, um dos postos de entrada, vive-se "uma tragédia humanitária" com mais de 25 mil pessoas a viverem nas ruas, em tendas, sem organização, à espera de se registarem, comprar bilhete para seguirem. Para onde?
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas, 336 mil refugiados atravessaram o Mediterrâneo este ano. Em Lesbos, um dos postos de entrada, vive-se "uma tragédia humanitária" com mais de 25 mil pessoas a viverem nas ruas, em tendas, sem organização, à espera de se registarem, comprar bilhete para seguirem. Para onde?
Diluídos na massa anónima de uma identidade perdida (refugiado? emigrante? terrorista?), estrangeiros despatriados acantonados nos diques de retenção migratória, ou peregrinos cansados que beijam na orla da praia o chão da terra prometida, os seus rostos são uma presença irrefutável que invade e estremece os nossos medos e certezas.
Olham-nos e inquietam-nos. Quem são? Além do lugar de asilo que podem querer no nosso quintal, a visão do seu rosto traz-nos um temor maior: o medo de reconhecermos em cada um deles, cada um de nós.
Na desmontagem da onda de emoções que tem varrido de lágrimas os media, muitos disseram que talvez não seja Aylan Kurdi, a criança curda caída à beira-mar, quem nos faz chorar, mas os nossos filhos nele.
Aylan é o centro de múltiplas relações - filho, família, amor, futuro - da construção humana. Na raiz da consciência mais elementar sabemos que somos seres em relação - a nossa existência só tem sentido, as nossas palavras só têm voz, quando inseridas numa rede de ações comuns, comunicada e retomada com os outros. Por isso, para Hannah Arendt, que perseguiu e estudou como ninguém esta relação, os sem-pátria (sem Estado, sem lugar, sem elos) são alguém cuja liberdade não tem sentido, conteúdo, e sentem o desespero, porque estão amputados da sua dimensão humana essencial impossibilitados da partilha do mundo.
No fundo vazio dos olhos do pai de Aylan, ficou a perda de sentido, a inutilidade de um outro lugar. Nas palavras que nos disse, ficamos nós. O que vamos fazer com os que continuam a chegar? Onde sediar a esperança? A coragem de Merkel e o acolhimento dos alemães poderão ser o reencontro de uma mulher e de um povo com a sua história.
Deslocados, perdidos no mar ou amontoados nos comboios, estão os rostos que evitamos ver porque temos medo - medo da nossa profunda vulnerabilidade; de perdermos as certezas que construímos sobre nós e sobre os outros.
* Emmanuel Lévinas, Difficile Liberté, 1976, p 33
11.09.2015
ROSÁRIO GAMBOA
Jornal de Notícias
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas, 336 mil refugiados atravessaram o Mediterrâneo este ano. Em Lesbos, um dos postos de entrada, vive-se "uma tragédia humanitária" com mais de 25 mil pessoas a viverem nas ruas, em tendas, sem organização, à espera de se registarem, comprar bilhete para seguirem. Para onde?
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas, 336 mil refugiados atravessaram o Mediterrâneo este ano. Em Lesbos, um dos postos de entrada, vive-se "uma tragédia humanitária" com mais de 25 mil pessoas a viverem nas ruas, em tendas, sem organização, à espera de se registarem, comprar bilhete para seguirem. Para onde?
Diluídos na massa anónima de uma identidade perdida (refugiado? emigrante? terrorista?), estrangeiros despatriados acantonados nos diques de retenção migratória, ou peregrinos cansados que beijam na orla da praia o chão da terra prometida, os seus rostos são uma presença irrefutável que invade e estremece os nossos medos e certezas.
Olham-nos e inquietam-nos. Quem são? Além do lugar de asilo que podem querer no nosso quintal, a visão do seu rosto traz-nos um temor maior: o medo de reconhecermos em cada um deles, cada um de nós.
Na desmontagem da onda de emoções que tem varrido de lágrimas os media, muitos disseram que talvez não seja Aylan Kurdi, a criança curda caída à beira-mar, quem nos faz chorar, mas os nossos filhos nele.
Aylan é o centro de múltiplas relações - filho, família, amor, futuro - da construção humana. Na raiz da consciência mais elementar sabemos que somos seres em relação - a nossa existência só tem sentido, as nossas palavras só têm voz, quando inseridas numa rede de ações comuns, comunicada e retomada com os outros. Por isso, para Hannah Arendt, que perseguiu e estudou como ninguém esta relação, os sem-pátria (sem Estado, sem lugar, sem elos) são alguém cuja liberdade não tem sentido, conteúdo, e sentem o desespero, porque estão amputados da sua dimensão humana essencial impossibilitados da partilha do mundo.
No fundo vazio dos olhos do pai de Aylan, ficou a perda de sentido, a inutilidade de um outro lugar. Nas palavras que nos disse, ficamos nós. O que vamos fazer com os que continuam a chegar? Onde sediar a esperança? A coragem de Merkel e o acolhimento dos alemães poderão ser o reencontro de uma mulher e de um povo com a sua história.
Deslocados, perdidos no mar ou amontoados nos comboios, estão os rostos que evitamos ver porque temos medo - medo da nossa profunda vulnerabilidade; de perdermos as certezas que construímos sobre nós e sobre os outros.
* Emmanuel Lévinas, Difficile Liberté, 1976, p 33
11.09.2015
ROSÁRIO GAMBOA
Jornal de Notícias
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