A minha avó

A minha avó faria amanhã 100 anos. Era má. É claro que eu digo "a minha avó era má" e qualquer leitor sente um calafrio. Que espécie de homem recorda assim uma velhinha que criou três filhos, levou com um terramoto, passou duas décadas tolhida de movimentos e, mesmo assim, conseguiu ser a última a partir?

Pois eu acho que a minha avó não estava tão tolhida de movimentos assim. E desconfio que o facto de ter sido a última a partir vem do mesmo lugar: ela era má.

A minha avó era má, pronto. Quer dizer, não era má: era mazinha. Tinha um prazerzinho cruel no pequeno sofrimento do outro. Durante dez anos, o meu avô foi o seu marido e enfermeiro, seu cozinheiro e seu motorista. 

Depois, foi a minha mãe, e, quando a minha sobrinha nasceu e as duas passaram a dividir o espaço durante parte do dia, a minha avó puxava-lhe a meia, ou fazia-lhe cócegas, ou despenteava-lhe a franja - só para a arreliar.

Teve uma vida difícil, a minha avó, e desconfio que nos últimos anos já não estava em si. Perdeu o marido, os irmãos, dois filhos. No dia do Abalo, escapou por milagre a uma laje e pernoitou sob um oleado, com o meu avô sentado a fazer de porta.

A minha avó sofreu muito, nesses tempos. Até à reconstrução desta casa, montou lar em tendas pequenas, tendas grandes, arrecadações - sempre temente da dissolução do mundo. Mesmo assim, continuou a cozinhar e a costurar. 

Cozinhava e costurava muito bem, a minha avó.

A minha avó não era tão má quanto isso. Usava a boca num biquinho de argúcia e maldade, e, se em redor alguma coisa ruía, cerrava os olhos num comprazimento que também era sentido de humor.

A minha avó até era boa. Devo-lhe o espírito e a ironia, se os possuo. Tive outra avó, mas não a recordo da mesma maneira.

A minha avó fazia amanhã 100 anos e eu tenho muitas saudades dela.

por JOEL NETO
Diário de Notícias