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A armadilha do espartilho
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A armadilha do espartilho
Shutterstock
Os fatos das personagens que vestimos convertem-se, muitas vezes, em espartilhos que tanto constrangem de dentro como de fora.
1. Muitas pessoas inventam e obrigam--se a representar durante toda uma vida a sua própria personagem.
Esta cola-se-lhes de tal maneira que, mesmo que queiram, dificilmente conseguem depois sentir, pensar e actuar fora da personagem que criaram em determinado momento e em função de circunstâncias específicas e cenários determinados.
É-lhes difícil, e penoso mesmo, contrariar atitudes que julgam coerentes com a personagem que decidiram encarnar, mesmo quando têm a percepção de que, agindo em sintonia com o que julgam ser congruente com ela, não contribuem para a resolução dos problemas que devem resolver, incluindo os seus próprios.
Por outro lado, olhando de fora, muitos esperam também que quem sempre encarnou uma personagem – uma ficção, portanto – de modo muito vincado e vivo actue sempre de acordo com ela.
Assim, quando alguém, num esforço de adequação à realidade e de contribuição efectiva para resolver problemas prementes, decide ajustar, um pouco que seja, a sua leitura dos factos e o seu comportamento de modo a poder responder com eficiência a questões novas, muitos – porventura os menos interessados – são os que os acusam de incoerência.
Os fatos das personagens que vestimos convertem-se, assim e muitas vezes, em espartilhos que tanto constrangem de dentro como, depois, de fora.
Eles podem tornar-se, inclusive, verdadeiras armadilhas, habilmente usadas do exterior.
2. Quem, em razão de funções judiciárias, teve a possibilidade de observar as pessoas que, em algum momento da sua vida, tiveram de se confrontar com a justiça em virtude dos mais variados acontecimentos – familiares, laborais, comerciais e criminais – sabe bem como os fatos que vestiram enquanto personagens os podem obrigar a comportamentos que, racionalmente, gostariam de ter evitado.
Essa dificuldade leva, muitas vezes, a resultados dramáticos, em que os que julgam sentir-se obrigados a desempenhar um dado papel acabam por sacrificar os valores e os interesses que sempre quiseram defender, sacrificando-se a si mesmos e sacrificando os outros que, verdadeiramente, sempre quiseram salvar.
Vi, demasiadas vezes, homens e mulheres que agiram contra si e sacrificando os outros, apenas porque não conseguiram defraudar as expectativas comportamentais que eles próprios criaram e que – julgavam eles – os outros deles exigiam.
Cientes dos erros que iam cometer, não conseguiram – qual escorpião da fábula – contrariar, não a própria natureza, mas simplesmente a imagem que dela sempre quiseram dar.
A coragem para, no momento certo, alguém ser capaz de se libertar dos espartilhos – quase sempre artificiais – que tolhem uma aproximação competente à realidade e impedem a adopção de uma atitude eficaz e condicente com ela é rara e, também por isso, louvável, sobretudo quando ocorre sem que nada do que é essencial no papel que cada um atribuiu a si próprio mude, verdadeiramente, de sentido.
Acresce que, demasiadas vezes, a compreensão que o outro tem de uma dada personagem não é exactamente aquela que o próprio tem dela e, na verdade, muitos esperam, afinal, a atitude corajosa – o golpe de asa – que permite salvar a situação em que se encontram todos os que nela sempre confiaram.
3. A vida das instituições assemelha--se, muitas vezes, à das pessoas.
É em momentos difíceis que se avalia a sua capacidade para servirem os propósitos que as inspiraram e que as justificam ante aqueles cujos interesses querem defender.
Jurista
Escreve à terça-feira
António Cluny
Jornal i
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