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Rebenta a bolha
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Rebenta a bolha
Mecânica, hipnótica e ininterruptamente, numa muda e inebriante cornucópia de luxo.
Ao fugir do assaltante do artigo da semana passada, libertei-me deste mas infelizmente também da mochila que levava ao ombro. Os irrecuperáveis itens que se encontravam dentro desta:
Uma banana
Uma barra energética sem glúten
Umas chaves de casa
Um leitor de mini-disc
Umas calças pretas
Uns sapatos pretos
Uma camisa branca
A resistência para não fumar que durava há um ano.
Refeito do susto e da falta de indumentária, servi ricos e famosos, servi a Sienna Miller, o Jude Law, a Vivienne Westwood, o Jonathan Ross, a dupla Gilbert & George, a Kylie Minogue e o ...José Luis Arnaut.
Poucos fazem ideia do que acontece assim que os museus de Londres fecham ao final do dia. Por vezes ainda turistas perdidos não deram com a porta de saída e já um enxame de talheres, cadeiras e empregados de mesa transforma famosos salões principais em salas de jantar para centenas de convidados tudo em tempo recorde para que se jante à grande mas cedo, à inglesa.
Servi em casamentos, eventos de caridade, ante-estreias nos teatros do West End, leilões, premiações, no Natural History Museum com os esqueletos de dinossauro como testemunhas, no Science Museum, no Victoria & Albert e sobretudo na Somerset House em jantares promovidos pela Comissão Europeia, onde no final de cada noite, nas cozinhas improvisadas deitavam-se fora quilos e quilos de comida da mais refinada qualidade e artifício. E não falo dos restos que as pessoas deixavam no prato. Mas de pratos intocados aos quais não se dava vazão. Tudo para o lixo. Chique a valer.
Na abertura de uma exposição de arte algures em Mayfair, colocam-me a abrir garrafas de champagne. Por norma passava as noites de bandeja na mão a servir canapés e bebidas, mas desta vez é diferente. Durante todo o evento, tenho de abrir garrafas de champagne e passá-las aos empregados que rodopiam à volta dos convidados como uma valsa de dionísios a encher-lhes os corpos de espumante. Sou uma roda dentada nesta máquina de ostentação oleada a gargalhadas sonoras e Veuve Clicquot. Não tenho de fazer absolutamente mais nada, tendo uma única ordem, não fazer o usual som barulhento ao soltar a rolha do gargalo para não incomodar os convidados. Mecânica, hipnótica e ininterruptamente, uma após outra garrafa, numa muda e inebriante cornucópia de luxo. Pop pop pop pop pop pop. É a primeira vez que participo em algo que envolve este nível de riqueza e sinto o êxtase de entrar num concerto sem pagar bilhete ou de ver um filme acima do que a minha idade permite. Termino a noite com a sensação que presenciei o que não é suposto e que obtive informações às quais não devia ter acesso. Mas este agente secreto vai a pé para casa e a caminho, na roda de trás de um Maserati estacionado em frente à embaixada da Arábia Saudita está presa uma nota de 10 Libras. Pop.
A poupar sem ter consciência disso foi como cresci, a poupar por imitação nas pequenas coisas que se faziam. Ou não faziam. No meu mundo não se comiam tabletes de chocolate de uma vez. Colocava-se apenas uma fatia de fiambre na sandes. Não existiam taxis, só autocarros. Cinema era à 2ª feira e as férias eram passadas na terra, não no Algarve.
A única luz que iluminava o mundo incidia nas paredes da gruta que me rodeava revelando apenas os frescos murais de índole cristã repletos de carneirinhos, mulheres pias, homens hirtos de espírito e barba, dóceis e vegetarianos leões, todos numa comunhão em que o desconhecido não me faltava; exagerar não era opção. Nessa noite o carneirinho viu as paredes da gruta ruir. Pop. Rebenta a bolha.
André Torres
Jornal i
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