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"Temos políticos muito ignorantes"
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"Temos políticos muito ignorantes"
Clara Ferreira Alves, autora do romance 'Pai Nosso' | ORLANDO ALMEIDA / GLOBAL IMAGENS
'Pai Nosso' é o título do primeiro romance de Clara Ferreira Alves. Um livro muito diferente, quanto mais não seja no seu registo inesperado.
Dizem os grandes escritores que os estreantes no romance devem escrever sobre o que conhecem. Foi isso que Clara Ferreira Alves fez em 'Pai Nosso' - sem hífen, note-se -, o seu primeiro romance. Claro que chamar-se "estreante" é um abuso, pois já publicou quatro livros, num total de 1284 páginas. Tratar da guerra a Oriente não lhe será coisa difícil, onde esteve várias vezes e bebeu daquilo como a sua personagem engole gin em 459 páginas de narrativa.
'Pai Nosso' era o romance de que se falava desde há muito. Pensado antes, interrompido pelo 11 de Setembro, voltado a ser pensado e escrito em pouco mais de um ano. Um romance que se começa a ler e logo provoca um choque inesperado: o registo da escrita. É diferente do que se faz por cá este Pai Nosso a esse nível. A própria garante que não lhe foi fácil chegar à versão fixada em definitivo e a que num dia do último agosto se obrigou a terminar em vez de continuar a reformular.
Há um esforço em fazer diferente, que consegue manter até ao fim, após ter delineado ao início as personagens de um modo pouco habitual. Tanto que ao acabar-se a leitura deste romance que, tal como o "conflito do Médio Oriente", às vezes parece não chegar ao fim, o leitor é obrigado a folhear as primeiras duas dezenas de páginas para ver como a estrutura estava toda posta ali e fora fintado nessas pistas plantadas. À página 77 está escrito: "Se visitares a livraria deste hotel ficas a saber que os livros estão todos escritos." Clara Ferreira Alves sabe disso e andou três anos a pensar na trama; depois foi um ano de 12/14 horas de trabalho cada vez que hibernava. Sempre maldisposta se a interrompiam, mesmo que fosse o carteiro.
Quanto à opinião pública sobre o Pai Nosso, isso pouco lhe importa. Diz que o livro já não é seu. É difícil acreditar que seja assim, mas é o que afirma. Para o leitor que vai à procura do "livro da Clara", Pai Nosso precisaria de uma facada de 150 páginas. Para os leitores a quem este livro se dirige, não será necessário arrancar-lhe tal número de páginas, pois oferece uma leitura madura sobre o que se passa no Afeganistão, a melhor guerra para a protagonista; nos hotéis em que os correspondentes se reúnem; no Cairo romântico; no Iraque violento... Ou na Jerusalém, a Disneylândia religiosa que é responsável pelo romance. A autora faz questão de usar as palavras na narrativa de forma elaborada, tal como as referências culturais que exigem cultura, por norma ignoradas nos textos nacionais contemporâneos. Obstinadamente, escreve "oiro" e "poiso"; repete fixações como o fotógrafo [Robert] Capa; raramente cai no lamecha, a não ser quando vai para o Laos limpar a alma. Principalmente, tem frases belas, como a da página 156: "...uma cabeça embrulhada em ligaduras ensanguentadas...", que descreve bem o que acontece ao rebanho no curral das vítimas deste livro.
Não receia perder leitores quando se afirma "Anticomunista obrigado"?
Não receio nada e tento viver fora da dependência da opinião pública. Era um texto sobre o mundo literário, humorístico e não tinha uma descrição simpática da direita. Até tratei o PCP com respeito.
Não terá de engolir aquela frase?
Não tenho que engolir nada, vou continuar a ser anticomunista. Não partilho a visão marxista da História, mas também não sou neoliberalista. Nem excluo o PCP da democracia como muitos querem fazer. Quanto aos governos, os melhores são o que têm sucesso e são justos.
No livro há uma fala que critica o jornalista-notícia...
O artigo era sobre ideias, o jornalista-notícia é o que ao trabalhar se torna o centro da reportagem.
O político português que aparece é parecido com Durão Barroso?...
Não é só o retrato dele, mesmo que precisasse de um grande político português para o compósito que queria para a personagem, mas também há um ar de Tony Blair.
Preocupou-secom o leitor enquanto escrevia?
Nada, nunca se pensa nisso ou não se consegue escrever um texto.
Pai Nosso tem um registo diferente do habitual. Encontrou-o logo?
Não. Trabalhei muito o dispositivo. Nunca é à primeira. Nada é a primeira, nem à segunda ou à terceira. Há coisas que saíram à décima. Tinha dias em que tudo o que saía da pena parecia um enorme lugar comum, noutros era quase luminoso e resolviam-se todos os problemas. Só se o consegue com trabalho, essa história de que não há inspiração mas só transpiração é verdade. O que implica uma grande solidão.
Um livro não exige isso?
Pensei o livro todo antes de o escrever. Essa primeira fase é diabólica porque ando meses de um lado para o outro a pensar. Monto-o mentalmente e não quando vou para o computador. É como se houvesse o plano da arquitetura e o escritor seja o construtor. Depois, segue-se a fase de que gosto mais: retocar a frases, reparar os erros.
Este livro começa quando?
Tinha coisas pensadas de há muitos anos, sem as usar. Intensamente, o romance começa há uns quatro/cinco anos com a organização das personagens e, sobretudo, a busca pelo ponto onde todas se intercetam. Qual era o ponto de convergência delas, que é a fotógrafa, e de lugares, que passa por Portugal, o Médio Oriente e a guerra.
Bastou um ano para escrever?
A escrever mesmo, um pouco mais de um ano. Já tinha muita coisa escrita e bastante que não entrou. Dois capítulos que retirei ou o livro ficava com mil páginas. Nem eram necessários à economia da narrativa. Custou-me fazer a amputação.
E agora o que se segue?
Não tenho ansiedade em publicar, o livro morre com a publicação. Já estou a pensar noutras personagem e noutro livro.
A partir de agora não para?
Antes de mais é preciso ganhar a vida, porque o mercado português não é o anglo-saxónico, onde há adiantamentos de um milhão de dólares para primeiros livros de autores. Não poderei fazer tanto jornalismo como até agora porque há três livros que quero escrever. Este foi o primeiro, sei os temas e o que quero fazer nos outros dois. Este é o primeiro dos três livros que sempre soube que queria escrever.
Além do romance de que se falava?
Era um outro livro na altura, tinha a ver com Jerusalém e religiões. No 11 de Setembro percebi que os atentados iam mudar a nossa vida e pelo menos a primeira metade do século XXI. O Médio Oriente é uma tragédia que corre o risco de nos engolir a todos. Mal compreendida do ponto de vista religioso, ideológico, histórico e do que estava em jogo. Por exemplo, não se pode discutir a existência de Israel sem ir para trás no tempo. E a quantidade de pessoas que opinam sobre o Médio Oriente sem lá ter posto os pés. É tudo do sofá! O próprio jornalismo arranja um cliché da realidade para se proteger. O Daesh não começou de repente por causa da Síria e o que aconteceu neste país também não foi do nada. É preciso ir à História.
Pai Nosso deve muito ao 11 de Setembro?
O livro já existia, não na sua formulação final, mas o que tinha começado a escrever ficou interrompido nessa data porque não conseguia processar aquilo. Pensei: não vou escrever um livro assim, agora tudo é completamente diferente.
Alguém diz no livro que o 11 de Setembro "fez muita gente feliz"...
E fez, houve gente que celebrou no mundo árabe. Basta ver a quantidade de crianças que se chamam Osama, numa escala muito superior à habitual. Uma homenagem a bin Laden, um grande herói para uma larga percentagem de árabes.
28 DE NOVEMBRO DE 2015
00:03
João Céu e Silva
Diário de Notícias
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