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Podia ser pior. Podia estar em Portugal
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Podia ser pior. Podia estar em Portugal
Filho, em Lisboa não há nada para ti, não voltes.
Tirei um curso de rádio e outro de cinema, trabalhei num restaurante, num Call Center, aprendi a servir no mundo dos muito ricos e agora estou no -1 do edifício do Channel 4 na Horseferry Road. Nada mau.
Passados 6 meses de ter chegado a Londres, consigo o meu primeiro trabalho em televisão. Segundo o meu novo chefe destaquei-me dos demais candidatos por vir do país dos pastéis de nata e dado ele ter chegado de umas maravilhosas férias em Portugal, resolve assim retribuir o quão foi bem recebido no nosso país, contratando-me. Também terá a secreta esperança que eu lhe traga meia dúzia de pastéis de Belém na volta do natal, o que se vem a provar um golpe acertado da sua parte.
E é assim graças ao engenho duns monges do bairro de Belém em Lisboa para conseguirem uns quantos dinheiros que tenho agora o direito de apanhar o metro para St. James Park de cachecol a esvoaçar e caffè latte na mão. À minha espera o glamour televisivo de montanhas de cassetes de video para reciclar. Coloco uma cassete usada numa máquina e esta sai pronta a gravar de novo. Continuo a virar frangos, com sabor a conteúdos audiovisuais. Podia ser pior.
Podia estar em Lisboa; a suplicar submissamente a produtores de telenovelas para me darem acesso a água para levar a dezenas de figurantes fechados em salas sem condições durante horas, por razão nenhuma que não o profundo desprezo pelo o outro e a incompetência mascarada detrás da prepotência de quem tem o condão de despedir-me na hora à mínima contestação e se prepara para meter ao bolso mais umas massas poupadas com os almoços e jantares da figuração. Raios os partam. Indignos todos estes produtores de TV, estes chefes de secção, estes responsáveis de armazém e gestores de pessoal que mancham as posições que ocupam, que por todo o país gritam coléricas ordens e ameaças, cada vez mais alto, cada vez mais a tentar ensurdecer a falta de respeito que nunca terão dos trabalhadores ao seu cuidado. Calma, tanto rancor. Tiveste más experiências, não soubeste lidar com a pressão, acontece. Não é preciso generalizar. Basta! Um dia eu e o país teremos mudado com certeza, só tenho de esperar. Agora é hora de trocar a cassete.
É o início de Dezembro. Chove. Bastante. Porém aquilo que me apanha desprevenido é o cinzento, começa em meados de Outubro e não dá tréguas até Março, dizem-me. Serão 5 meses que não verei o céu azul. Dia após dia, todo o dia. Uma suave tristeza começa a apoderar-se de mim sem eu dar por isso. São os Winter Blues. E neste estilo musical o solista sou eu. Só quero ir embora. Nada mais interessa, não quero saber do emprego, da estabilidade, dos amigos que fiz, das paixões sem tradução, dos museus, galerias e mercados que me faltam visitar. Pode ir tudo para as urtigas, que aqui são provavelmente cinzentas como tudo o resto. Não consigo suportar este muro de betão celeste em cima da minha cabeça. Filho, em Lisboa não há nada para ti, não voltes. Como é possível dizeres uma coisa dessas, mãe? Aí é o meu lugar. Começo a ver preços para a viagem de retorno. A preparar o regresso e as desculpas. Como justificar-me. Escurece às 3 da tarde por isso vim embora?
Mais um dia em que chego a casa cabisbaixo e que algures numa parede, no chão, numa nuvem, num rosto vi um novo cinzento acrescentar-se à paleta da minha melancolia. Mais um dia em que recebo uma chamada para entrevista de trabalho. Alto. Não pode ser. Ajusto a gravata que ainda não comprei nos colarinhos que não tenho para ir a uma entrevista numa das maiores cadeias de televisão do mundo. Precisam de alguém com experiência em televisão, fluente em Português e com interesse e conhecimentos sobre desporto. Sou eu, caramba! Inventaram um trabalho para mim. Passo à fase seguinte e à seguinte. Outra entrevista. Espero por um telefonema e arriscando um deslocamento da retina verifico segundo a segundo se por acaso não terei ficado sem rede. O trabalho é teu. Quanto queres receber? Sim estamos a falar a sério, quanto queres receber? Mais do que no Nando's. A minha futura chefe durante os próximos 8 anos diz, pensa num valor que aches justo e amanhã manda-me um mail com o valor, de certeza que aceitamos, dou-te a minha palavra.
Estou eufórico. Um valor justo? Se vou ficar nesta capital intermédia do preto e branco quero é viver, Londres não foi feita para andar a sobreviver, para isso tenho Lisboa. Envio um número que acho exótico o suficiente e venho a saber mais tarde que o podia ter aumentado em 50%.
Aviso a minha mãe que afinal não chego tão cedo para o Natal e ela diz que boa notícia. Encho o peito de sarcasmo para dizer ao meu pai que pela primeira vez consegui algo sem o seu invisível amparo e em vez de ficar chateado diz que está orgulhoso de mim. Sacudo dos ombros as resistentes últimas palhas do ninho que deixei em Portugal e levanto tanto o bico que chego a furar algumas das opressoras nuvens que me rodeiam.
Umas semanas depois começo a pré-produção de um documentário que será filmado em Portugal. Sobre um assunto que escolhemos em conjunto, existem reuniões, diálogo, cada pessoa responsável por si e ao mesmo tempo conhecedora do que cada membro da equipa faz e planeia alcançar a curto e médio prazo dentro do projecto, sendo os lados positivos e negativos ponderados sempre em equipa. O director do canal diz-me eu sei que estás um pouco nervoso. Estou muito nervoso. Ok, mas entende uma coisa, se por acaso algo correr mal a responsabilidade não é tua, é nossa. Fomos nós que te contratámos e confiamos no que fazemos. Nada vai correr mal porque nós somos muito bons a escolher pessoas e escolhemos-te a ti. Toto, I have a feeling we are not in Kansas anymore.
André Torres
Jornal i
Tirei um curso de rádio e outro de cinema, trabalhei num restaurante, num Call Center, aprendi a servir no mundo dos muito ricos e agora estou no -1 do edifício do Channel 4 na Horseferry Road. Nada mau.
Passados 6 meses de ter chegado a Londres, consigo o meu primeiro trabalho em televisão. Segundo o meu novo chefe destaquei-me dos demais candidatos por vir do país dos pastéis de nata e dado ele ter chegado de umas maravilhosas férias em Portugal, resolve assim retribuir o quão foi bem recebido no nosso país, contratando-me. Também terá a secreta esperança que eu lhe traga meia dúzia de pastéis de Belém na volta do natal, o que se vem a provar um golpe acertado da sua parte.
E é assim graças ao engenho duns monges do bairro de Belém em Lisboa para conseguirem uns quantos dinheiros que tenho agora o direito de apanhar o metro para St. James Park de cachecol a esvoaçar e caffè latte na mão. À minha espera o glamour televisivo de montanhas de cassetes de video para reciclar. Coloco uma cassete usada numa máquina e esta sai pronta a gravar de novo. Continuo a virar frangos, com sabor a conteúdos audiovisuais. Podia ser pior.
Podia estar em Lisboa; a suplicar submissamente a produtores de telenovelas para me darem acesso a água para levar a dezenas de figurantes fechados em salas sem condições durante horas, por razão nenhuma que não o profundo desprezo pelo o outro e a incompetência mascarada detrás da prepotência de quem tem o condão de despedir-me na hora à mínima contestação e se prepara para meter ao bolso mais umas massas poupadas com os almoços e jantares da figuração. Raios os partam. Indignos todos estes produtores de TV, estes chefes de secção, estes responsáveis de armazém e gestores de pessoal que mancham as posições que ocupam, que por todo o país gritam coléricas ordens e ameaças, cada vez mais alto, cada vez mais a tentar ensurdecer a falta de respeito que nunca terão dos trabalhadores ao seu cuidado. Calma, tanto rancor. Tiveste más experiências, não soubeste lidar com a pressão, acontece. Não é preciso generalizar. Basta! Um dia eu e o país teremos mudado com certeza, só tenho de esperar. Agora é hora de trocar a cassete.
É o início de Dezembro. Chove. Bastante. Porém aquilo que me apanha desprevenido é o cinzento, começa em meados de Outubro e não dá tréguas até Março, dizem-me. Serão 5 meses que não verei o céu azul. Dia após dia, todo o dia. Uma suave tristeza começa a apoderar-se de mim sem eu dar por isso. São os Winter Blues. E neste estilo musical o solista sou eu. Só quero ir embora. Nada mais interessa, não quero saber do emprego, da estabilidade, dos amigos que fiz, das paixões sem tradução, dos museus, galerias e mercados que me faltam visitar. Pode ir tudo para as urtigas, que aqui são provavelmente cinzentas como tudo o resto. Não consigo suportar este muro de betão celeste em cima da minha cabeça. Filho, em Lisboa não há nada para ti, não voltes. Como é possível dizeres uma coisa dessas, mãe? Aí é o meu lugar. Começo a ver preços para a viagem de retorno. A preparar o regresso e as desculpas. Como justificar-me. Escurece às 3 da tarde por isso vim embora?
Mais um dia em que chego a casa cabisbaixo e que algures numa parede, no chão, numa nuvem, num rosto vi um novo cinzento acrescentar-se à paleta da minha melancolia. Mais um dia em que recebo uma chamada para entrevista de trabalho. Alto. Não pode ser. Ajusto a gravata que ainda não comprei nos colarinhos que não tenho para ir a uma entrevista numa das maiores cadeias de televisão do mundo. Precisam de alguém com experiência em televisão, fluente em Português e com interesse e conhecimentos sobre desporto. Sou eu, caramba! Inventaram um trabalho para mim. Passo à fase seguinte e à seguinte. Outra entrevista. Espero por um telefonema e arriscando um deslocamento da retina verifico segundo a segundo se por acaso não terei ficado sem rede. O trabalho é teu. Quanto queres receber? Sim estamos a falar a sério, quanto queres receber? Mais do que no Nando's. A minha futura chefe durante os próximos 8 anos diz, pensa num valor que aches justo e amanhã manda-me um mail com o valor, de certeza que aceitamos, dou-te a minha palavra.
Estou eufórico. Um valor justo? Se vou ficar nesta capital intermédia do preto e branco quero é viver, Londres não foi feita para andar a sobreviver, para isso tenho Lisboa. Envio um número que acho exótico o suficiente e venho a saber mais tarde que o podia ter aumentado em 50%.
Aviso a minha mãe que afinal não chego tão cedo para o Natal e ela diz que boa notícia. Encho o peito de sarcasmo para dizer ao meu pai que pela primeira vez consegui algo sem o seu invisível amparo e em vez de ficar chateado diz que está orgulhoso de mim. Sacudo dos ombros as resistentes últimas palhas do ninho que deixei em Portugal e levanto tanto o bico que chego a furar algumas das opressoras nuvens que me rodeiam.
Umas semanas depois começo a pré-produção de um documentário que será filmado em Portugal. Sobre um assunto que escolhemos em conjunto, existem reuniões, diálogo, cada pessoa responsável por si e ao mesmo tempo conhecedora do que cada membro da equipa faz e planeia alcançar a curto e médio prazo dentro do projecto, sendo os lados positivos e negativos ponderados sempre em equipa. O director do canal diz-me eu sei que estás um pouco nervoso. Estou muito nervoso. Ok, mas entende uma coisa, se por acaso algo correr mal a responsabilidade não é tua, é nossa. Fomos nós que te contratámos e confiamos no que fazemos. Nada vai correr mal porque nós somos muito bons a escolher pessoas e escolhemos-te a ti. Toto, I have a feeling we are not in Kansas anymore.
André Torres
Jornal i
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