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Palavras que se comem
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Palavras que se comem
Uma vez em Nápoles havia uma senhora que tinha um problema com o ragù. Um problema que a angustiava e que se lhe apresentava semanalmente em toda a sua trágica pontualidade. Todos os domingos, depois de cuidado e paciente trabalho, ciente, tanto por instinto como tradição cultural, do significado quase filosófico daquele molho, cuja confeção tanto falava do seu papel de mãe, mulher e amante, com passo incerto e terrina na mão cheia de molho fumegante guarnecido de parmigiano e manjericão, avançava em direção ao objeto do seu temor: o prato fundo do marido.
Como sempre a mulher aguardava ansiosa o veredicto do marido que, depois de provar o ragù, dizia também sempre "Buono, veramente, buono!" para depois, e para desânimo da mulher, acrescentar "Ma quello che mi faceva mia madre era un"altra cosa!"
Durante anos a pobre mulher tudo tentou: variou as doses, meteu mais ou menos banha, só conserva, só concentrado, mudou a tracchiolelle, os enchidos, o presunto, experimentou com cebola nova e com cebola velha, usou barro e alumínio; até o ragù da vizinha chegou a espreitar. Mas todos os domingos o exigente marido respondia o mesmo "Buono, veramente, buono! Ma quello che mi faceva mia madre era un"altra cosa!"
Até que chegou um fatídico domingo em que, depois de muitas horas de intenso trabalho, um momento de distração, talvez motivado pela tensão em que se encontrava mais uma vez, deitou tudo a perder. Bastou um momento para que o molho se tivesse pegado ao fundo. O ragù estava queimado. A pobre mulher fez o que pôde para o tentar salvar. Com cuidado removeu o que não estava queimado mas a cor mais negra, a espessura e o sabor não enganavam: o ragù estava estragado.
Ainda assim não teve outro remédio senão levá-lo queimado até ao prato fundo do marido. Serviu-o, serviu-se, serviu o resto da família e aguardou, com desespero, a sentença. O marido comeu o ragù queimado e declarou, finalmente sorrindo, "Questo è il ragù che mi faceva mia madre."
Com esta história de Luca de Filippo, que aqui traduzo e resumo, começa La Cucina Napoletana: um livro de ingredientes, de comida, de receitas e de palavras. É um livro feito com a boca. Escrito pela boca e para a boca. É provavelmente o melhor livro de culinária do mundo porque a cozinha napolitana é das melhores do mundo. Não tenho a certeza do que afirmo, porque não li todos os livros de cozinha, mas que a cozinha napolitana é das melhores do mundo não tenho grandes dúvidas. Diz-me o palato, que a mim nunca me enganou.
O livro é soberbamente escrito e ilustrado, ou melhor, temperado com gravuras e desenhos delicados e antigos como as receitas. Nada de fotografias, graças a Deus, esse triste e moderno hábito de tudo mostrar, que converteu a gastronomia, coisa que se descrevia com palavras sublimes (como o amor) em pornogastronomia. Muitos dos modernos chefes, que cozinheiros agora há poucos, levaram tão à letra a expressão "os olhos também comem" que hoje, quando se abrem os livros da moderna gastronomia (como em tantos restaurantes armados ao pingarelho) parece que só os olhos comem. O cozinheiro foi substituído pelo diretor de arte e o sabor e o cheiro trocado pelo aspeto e pela cor.
Nada disso se passa em La Cucina Napoletana. Este livro é sobre a boca, só coisas do saber e do sabor, e por isso é com a palavra que tudo se conta e se mostra. Aqui tudo dá fome e vontade de ler, até porque cada receita tem a sua história napolitana: como "O estrangula-padres" a história de um padre que batizou uns gnocchi ao ser sufocado por um ou a do pizzeiro que reclamou um título honorífico do rei.
Com mais drama do que os Irmãos Karamazov, mais entradas do que o Hitchhiker"s Guide to the Galaxy, mais picaresco do que o Dom Quixote e com mais rituais do que A Bíblia, La Cucina Napoletana, escrito em 1965 por Jeanne Caròla Franscesconi, é um dos melhores livros grossos que tenho na estante e seguramente o mais saboroso.
E é o único livro de cozinha que é melhor do que a Cozinha Portuguesa da Maria de Lourdes Modesto. Digo-o perentório, como uma criança mimada com crostata di pasta frolla con doppia crema al cioccolato. É bom 736 vezes, tantas quantas as receitas: séculos de saber, de refeições, de mesa posta no Mediterrâneo. Abre-se o livro e deseja-se que a nossa avó tivesse sido de lá. E apetece mudar para Nápoles ou casar com uma napolitana que traga consigo, como dote, o dom do tempero e o segredo do ragù.
Boa ceia. Bom Natal.
20 DE DEZEMBRO DE 2015
00:04
Pedro Bidarra
Diário de Notícias
Como sempre a mulher aguardava ansiosa o veredicto do marido que, depois de provar o ragù, dizia também sempre "Buono, veramente, buono!" para depois, e para desânimo da mulher, acrescentar "Ma quello che mi faceva mia madre era un"altra cosa!"
Durante anos a pobre mulher tudo tentou: variou as doses, meteu mais ou menos banha, só conserva, só concentrado, mudou a tracchiolelle, os enchidos, o presunto, experimentou com cebola nova e com cebola velha, usou barro e alumínio; até o ragù da vizinha chegou a espreitar. Mas todos os domingos o exigente marido respondia o mesmo "Buono, veramente, buono! Ma quello che mi faceva mia madre era un"altra cosa!"
Até que chegou um fatídico domingo em que, depois de muitas horas de intenso trabalho, um momento de distração, talvez motivado pela tensão em que se encontrava mais uma vez, deitou tudo a perder. Bastou um momento para que o molho se tivesse pegado ao fundo. O ragù estava queimado. A pobre mulher fez o que pôde para o tentar salvar. Com cuidado removeu o que não estava queimado mas a cor mais negra, a espessura e o sabor não enganavam: o ragù estava estragado.
Ainda assim não teve outro remédio senão levá-lo queimado até ao prato fundo do marido. Serviu-o, serviu-se, serviu o resto da família e aguardou, com desespero, a sentença. O marido comeu o ragù queimado e declarou, finalmente sorrindo, "Questo è il ragù che mi faceva mia madre."
Com esta história de Luca de Filippo, que aqui traduzo e resumo, começa La Cucina Napoletana: um livro de ingredientes, de comida, de receitas e de palavras. É um livro feito com a boca. Escrito pela boca e para a boca. É provavelmente o melhor livro de culinária do mundo porque a cozinha napolitana é das melhores do mundo. Não tenho a certeza do que afirmo, porque não li todos os livros de cozinha, mas que a cozinha napolitana é das melhores do mundo não tenho grandes dúvidas. Diz-me o palato, que a mim nunca me enganou.
O livro é soberbamente escrito e ilustrado, ou melhor, temperado com gravuras e desenhos delicados e antigos como as receitas. Nada de fotografias, graças a Deus, esse triste e moderno hábito de tudo mostrar, que converteu a gastronomia, coisa que se descrevia com palavras sublimes (como o amor) em pornogastronomia. Muitos dos modernos chefes, que cozinheiros agora há poucos, levaram tão à letra a expressão "os olhos também comem" que hoje, quando se abrem os livros da moderna gastronomia (como em tantos restaurantes armados ao pingarelho) parece que só os olhos comem. O cozinheiro foi substituído pelo diretor de arte e o sabor e o cheiro trocado pelo aspeto e pela cor.
Nada disso se passa em La Cucina Napoletana. Este livro é sobre a boca, só coisas do saber e do sabor, e por isso é com a palavra que tudo se conta e se mostra. Aqui tudo dá fome e vontade de ler, até porque cada receita tem a sua história napolitana: como "O estrangula-padres" a história de um padre que batizou uns gnocchi ao ser sufocado por um ou a do pizzeiro que reclamou um título honorífico do rei.
Com mais drama do que os Irmãos Karamazov, mais entradas do que o Hitchhiker"s Guide to the Galaxy, mais picaresco do que o Dom Quixote e com mais rituais do que A Bíblia, La Cucina Napoletana, escrito em 1965 por Jeanne Caròla Franscesconi, é um dos melhores livros grossos que tenho na estante e seguramente o mais saboroso.
E é o único livro de cozinha que é melhor do que a Cozinha Portuguesa da Maria de Lourdes Modesto. Digo-o perentório, como uma criança mimada com crostata di pasta frolla con doppia crema al cioccolato. É bom 736 vezes, tantas quantas as receitas: séculos de saber, de refeições, de mesa posta no Mediterrâneo. Abre-se o livro e deseja-se que a nossa avó tivesse sido de lá. E apetece mudar para Nápoles ou casar com uma napolitana que traga consigo, como dote, o dom do tempero e o segredo do ragù.
Boa ceia. Bom Natal.
20 DE DEZEMBRO DE 2015
00:04
Pedro Bidarra
Diário de Notícias
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