Lições de melancolia e de música em Moledo

“Seja como for, o meu pai apreciava Sinatra. Dona Elaine – a governanta deste eremitério de Modelo – também, mas sem o distinguir de Tony Bennett, que poucas vezes deve ter ouvido”

A minha sobrinha Maria Luísa veio dar comigo a ouvir um dos discos mais preservados da pequena discoteca do eremitério de Moledo: o som de Coleman Hawkins e de ‘Body and Soul’ o original de 1934. ‘Body and Soul’ foi tocada e cantada por muita gente – de Frank Sinatra a Lester Young e Tony Bennett, para não alongar a minha ignorância no tema. 

Frank Sinatra era, aparentemente, mais velho do que eu: completaria 100 anos na semana passada e a rádio lembrou- -mo durante um dia inteiro, repetindo até à exaustão pequenas biografias e canções tão conhecidas quanto indistintas. Sempre me julguei, desde a adolescência, mais velho do que o cantor (confesso que, como actor, lhe faltava o ‘quid’: era um par de olhos e meia dose de sorriso americano). O velho Doutor Homem, meu pai, tinha alguns dos seus discos – mas ele era um eclético.

Ao contrário do que se vê hoje em dia, o velho Doutor Homem, meu pai, não alimentava duelos entre estrelas, e a única excepção era Anna Moffo, que considerava "a soprano das sopranos", superior à Callas. O atrevimento não lhe custou nem o bom-nome na família (que ignorava os seus gostos musicais) nem a antipatia dos melómanos (com quem não se dava) – e, quanto ao combate entre as duas heroínas, ele já ocorrera há bastante tempo, durante uma récita de ‘La Bohème’ em Milão, que Dona Ester, minha mãe, lembraria até ao fim da vida, e de que o velho Doutor Homem, meu pai, diria que "podia ter sido melhor" se Mimi (interpretado pela grega) tivesse acompanhado o brilho de Musetta em palco. No que tinha de conceder, concedia – e a prova era a abundância de gravações da ‘Norma’ de Bellini, a rainha da melancolia, e onde a Callas suplantava inclusive as deusas. 

Seja como for, o meu pai apreciava Sinatra. Dona Elaine – a governanta deste eremitério de Moledo – também, mas sem o distinguir de Tony Bennett, que poucas vezes deve ter ouvido. Na semana passada, como chovesse e não me calhasse nem ouvir Sinatra nem a rádio de música clássica (que é agora uma inútil algaraviada de adolescentes), dediquei-me ao confronto com a melancolia que antecede os dias de Natal. Primeiro, "Casta Diva" a ária da ‘Norma’; depois "Regnava nel Silenzio", de ‘Lucia di Lammermoor’. Bellini e Donizetti. Callas e Anna Moffo. Maria Luísa subiu as escadas e sentou-se na varanda, aspirando as derradeiras notas da tarde que desaparecia.

20.12.2015 01:40
ANTÓNIO SOUSA HOMEM
Correio da Manhã