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    Mensagem por Admin Sex Abr 01, 2016 11:10 am

    Como disse Eunice Muñoz à TVI, o “Nicolau Breyner era alentejano e os alentejanos são especiais”. E somos. A propósito do tal malfadado livro que desdenhava frivolamente dos alentejanos, o Nicolau acrescentou há poucas semanas, ao “Observador”: “Os alentejanos são apaixonados, por isso perigosos. O alentejano é um sentimental, que ama e odeia com a mesma força.” Somos intensos, Nico e Eunice.

    Lembro-me, a propósito do canal de televisão que queria fazer nascer em Beja, a Sulvisão, de falarmos uma vez num estúdio, e de lhe dizer que a cidade, o concelho e o distrito estavam cada vez mais afastados do País. A vários níveis, sobretudo no que diz respeito aos acessos. Os comboios não eletrificados e cada vez menos diretos e mais periféricos, a autoestrada projetada, sem a qual o aeroporto se esgotava na inutilidade. O Nico garantiu-me, revelando-me as suas fontes, que a A26, entre Sines e Beja, e cruzando com a A2, que liga o Algarve a Lisboa, e por conseguinte ao Porto e ao resto do País, se iria fazer. Lembro-me de ter torcido o nariz. As obras estavam paradas há que tempos e sem ares de que voltariam a mexer. Mas o Nico respondeu-me “a sério, podes acreditar, aquilo vai-se fazer, garanto-te.” Era um homem de uma enorme positividade e esperança. E isso – o acreditar que as coisas se resolvem – ajuda muito a que as coisas se resolvam. Digo-o eu que sou um pessimista por natureza. E não queria, de todo, ter razão sobre os acessos viários ao/no Baixo Alentejo.

    O Nico era um grande alentejano. O engraçado é que o era cada vez mais, com o passar do tempo. Como se depois de ter saído da sua Serpa natal com destino a Lisboa, e de a ter sorvido durante anos, em todos os seus fascínios, houvesse um apelo das origens, mais forte do que tudo. O Nico sabia muito bem definir um alentejano, como o fez ao “Observador”, dizendo “Falamos imenso – somos uns tagarelas. Somos é calados na primeira aproximação. É reserva, é timidez. E boa educação.” E isto é tão verdade. 

    Contudo, o amor à sua terra, sabendo que ali jaz a descrença provocada pelo afastamento do resto do País, não o torna num miserabilista. Antes pelo contrário. Como dizia, “estamos fartos de ser os pobrezinhos que moram longe”. 

    Por isso queria fazer da Sulvisão um canal regional com dimensão nacional. Um projeto de Beja para o País e comunidades emigrantes. Juntar todos os alentejanos que se dedicaram às artes e ao espetáculo e, todos juntos, debaixo do seu guarda-chuva, levarmos a nossa voz até longe. Isto é serviço público. Mas é também uma prova de resistência. E de que o alentejano não baixa os braços. Mas que o caminho não é o das queixas e pessimismos. É certo que ele era o Nicolau. Abriam-se-lhe portas mais prestigiadas. Mas mesmo assim não era, nunca, para proveito próprio que tocava às campainhas.

    A Sulvisão foi o projeto que mais tempo, conversas e debate de ideias nos ocupou em conjunto, apesar de ter sido o único que começámos e não chegámos a concretizar, mas para o qual teve a amabilidade de me convidar. Com rasgados elogios ao meu trabalho, que nunca vou esquecer. Tínhamos muito boas ideias para o canal. A última vez que estive com o Nico foi na sua NB Academia (outro projeto de elevada utilidade pública na formação de novos atores), onde lhe levei um conjunto de ideias para o canal, escritas num documento que ainda tenho no ambiente de trabalho do meu computador. De todas elas havia uma que me apaixonava. E que o Nico também adorou. Depois disso falámos uma última vez ao telefone, há pouco tempo. Combinámos que lhe mostraria umas imagens muito aproximadas do que tinha pensado e a sua energia contagiante inflamou-me a criatividade para este projeto. Disse-me que na semana seguinte iria a Cabo Verde, e que combinaríamos em breve. Nunca chegou a acontecer esse próximo encontro.

    Há menos de um ano, durante Ovibeja, estivemos juntos num hotel da cidade, com o Jorge Serafim, a falar sobre o projeto do canal. O Nico queria fazer uma novela de inspiração non-sense, onde os homens fossem mulheres, os brancos fossem pretos, os adultos crianças. Uma espécie de Moita Carrasco surrealista dos dias de hoje. “Qual foi a primeira novela em Portugal”, perguntava? “Foi o Moita Carrasco”, respondia com orgulho. “Foi ali que se criaram todas as bases para se perceber o que era e como funcionava uma novela”. A dada altura apareceu a Sílvia Alberto, que também estava nesse hotel, e ficámos os quatro à conversa sobre o Alentejo, porque a Sílvia também tem raízes familiares alentejanas. Recordo-me que a dada altura o Nicolau dizia que Califórnia também tinha como significado pedaço de terra, uma quinta ou herdade. Isto a propósito do seu monte, em Serpa. Era um homem de profunda cultura e grande saber.

    Conheci o Nico, creio, em 2001. Uns anos depois escrevi, juntamente com os meus colegas de então e amigos de sempre – Nuno Dionísio e Nuno Faustino – um guião para o Nicolau interpretar comigo, numa encenação de época muito bem feita para a abertura de um luxuoso stand de uma marca de automóveis topo de gama, em Lisboa. O Nico interpretava Gottlieb Daimler, e eu era Karl Benz. Nesta altura esteve em Portugal um grande amigo do Nico e uma inspiração para todos nós, o Jô Soares. Veio atuar no grande auditório do CCB. Asistimos todos ao tremendo espetáculo do brasileiro e, no fim, o Nico levou-nos ao camarim onde estivemos a conversar com os míticos Jô Soares e Nicolau Breyner. Parece surreal.

    Na preparação desse espetáculo, algumas vezes tivemos de ensaiar em casa do Nicolau, porque nos cafés, onde tentámos fazê-lo, tornava-se impossível. De dois em dois minutos aparecia alguém para o cumprimentar, sempre com histórias do arco- -da-velha. Que pacientemente ouvia e fingia recordar e, com uma habilidade tremenda, ainda respondia como estavam as pessoas que não conhecia, e a família, e perguntava pela deles. Quando se afastavam encolhia os ombros e com aquele sorriso bondoso e malandro dizia simplesmente: “Não faço ideia de quem seja!”. 

    Uma dessas vezes disse-me uma frase que nunca esqueci: “Epá, a partir de uma determinada idade devia começar a deixar de conhecer pessoas. Conheço demasiada gente. Era simples – dava--se um passou-bem, e dizia-se prazer em desconhecer – e pronto, nunca mais sabia quem era”. Brilhante. Mas o Nico adorava gente. E gostava muito de ser gostado e respeitado. Por isso, de forma recíproca, tratava tão bem todos os que dele se aproximavam.

    Outra vez, quando eu fazia parte do elenco do 1,2,3, da Teresa Guilherme, o Nico foi convidado do programa e, a dada altura, depois do ensaio, pediu-me para o levar ao nosso camarim da Tobis para dormir uns 20 minutos. “Meu querido, se não te importas acordas-me quando faltarem aí uns 10 minutos para entrar”. Lembro-me de pensar como era possível conseguir ter aquela calma toda antes de entrar no plateau. Chamava-se tarimba.

    Pode parecer anedótico – e é – mas tive, ainda, a ousadia de dirigir artisticamente o Nico numa dobragem de animação para cinema: o filme “Abelha Maia”, onde dava a voz ao gafanhoto Flip. Lembro-me de lhe dizer que estava nervoso por ter de o dirigir, ao que ele me respondeu “vá, deixa-te de merdas e dirige-me bem, porque se depois acontecer alguma asneira é contigo que vão falar”. E lá fingiu amável e pacientemente que estava a ser dirigido e facilitou-me, e muito, como é de calcular, aquele trabalho.

    Ainda parece mentira. Ainda não consigo ver imagens do Nico. Ainda me faz confusão ouvir a sua voz. Tantas ideais e projetos que ficaram assim... suspensos no ar... Sei que com o tempo este sentimento irá suavizar-se e tornar-se num mar calmo de boas recordações. Mas eu sou alentejano e para mim o tempo leva tempo a passar. A vida por vezes é mesmo assim: cruel. E engana-nos com uma pinta do caraças. Quando muitas vezes dizemos Até Amanhã, não imaginamos que estamos a dizer Até Sempre!

    Bruno Ferreira Humorista
    01-04-2016 9:30:36
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