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Programa de reformas: corrupção e condescendência
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Programa de reformas: corrupção e condescendência
Antes da censura penal, para que todos convenientemente apelam, terá de anteceder a censura social. E essa, não existe.
O Programa Nacional de Reformas, publicado pelo Governo, faz um diagnóstico dos principais constrangimentos da sociedade portuguesa, que, sendo de tal modo evidente, colherá certamente a quase unanimidade da sociedade civil de todos os quadrantes políticos. Aliás, um diagnóstico semelhante se fosse publicado no séc. XIX ou no séc. XX, como agora no séc. XXI, obteria a mesma concordância generalizada. De facto, não é evidente para todos que os portugueses que ainda terão de melhorar as suas qualificações, que a nossa economia é pouco competitiva, que o funcionamento do Estado cria restrições ao investimento, ao desenvolvimento e à vida dos cidadãos, que as empresas estão descapitalizadas e que o sistema de Justiça tem um desempenho muito insuficiente?
A regularidade, quase autofágica, como que nos martirizamos século após século, com os mesmos diagnósticos e trazemos aos ombros os mesmos problemas, como se o tempo não passasse, faz com que a dada altura, por pura defesa da mente e do espírito, se torne inadequado, penoso e inútil, revivermos o nosso passado. À parte de uma escassa minoria, por curiosidade ou dever de ofício, a maior parte das pessoas, mesmo as interessadas pelo interesse colectivo, já desistiram de ler estes textos. A sua eficácia é muito diminuta, pois, por serem tão recorrentes e de tão pouco resultado, são esquecidos depressa. As poucas medidas concretas que têm tido consequência resultam de imposição externa da União Europeia, do BCE e do Eurogrupo. As que resultariam duma vontade interna mexeriam com tantos interesses instalados, que só com um consenso político muito alargado e muito determinado se poderia dar alguma sequência à cura dos padecimentos colectivos de que fala o diagnóstico do Programa de Reformas. Isso até hoje tem sido impossível. Porque haveria de ser diferente agora?
Há, no entanto, pelo menos uma coisa aparentemente nova. A assunção, pelo programa de reformas, de que a corrupção na contratação pública é um fenómeno instalado na sociedade portuguesa. Para a generalidade dos adjudicatários de bens, serviços e empreitadas e mesmo para a população em geral, isso não constitui novidade. Para além da identificação do fenómeno, o programa propõe algumas medidas preventivas contra a corrupção, de cuja eficácia duvidamos, mas o facto de assumir o problema e propor medidas é meritório e deve ser assinalado.
Mas importa ir ao fundo do problema: por via de directivas de aplicação obrigatória, não há na legislação portuguesa sobre contratos públicos (contratos em que o Estado ou outras entidades publicas são os clientes dos particulares) nada de substancialmente diferente do que rege os contratos nos restantes Estados-membros da União. Mas, apesar de se aplicarem as mesmas regras de respeito pela transparência, legalidade e concorrência, o fenómeno da corrupção tem uma dimensão nos países do Sul, como em Itália, Espanha, Grécia e Portugal, incomparavelmente maior do que nos países do Norte da Europa. E isto nada tem que ver com os níveis de desenvolvimento, nem com a falta de legislação punitiva, que também é semelhante em todos.
Tem seguramente que ver com uma questão bem mais grave, que é a mentalidade colectiva neste domínio. A ideia de que a “gorjeta”, a “luva” o pagamento de actos normais como se fossem “favores”, o pagamento de comissões, em actos em que é absurdo admiti-las e interdito auferi-las é muito tolerada pela generalidade da população, que não olha para esses actos com o elevado grau de censura, como olha para outros crimes. O particular, mesmo quando não tem a iniciativa da corrupção, aceita nela participar, se a isso for chamado, entendendo a “luva” como parte do custo do negócio. Fica com a “consciência tranquila”, porque não teve a iniciativa e defendeu os interesses da sua empresa. Só que na maior parte das vezes este comportamento colaborante sai mais caro ao Estado, porque uma parte da despesa com o contrato se destina ao funcionário ou governante prevaricador. Todos pagamos, portanto. Os mesmos portugueses que foram recentemente tão lestos a apoiar a consulta pública das listas de pedófilos, para exercitarem a sua estigmatização social, convivem descontraidamente com pessoas que sabem que têm actividade corruptiva nas instituições públicas e assobiam para o lado. Dirão: não têm provas. Muito bem, não têm provas, não acusem. A lei é assim e muito bem. Mas todos sabemos que a questão não finda aqui. A tolerância com que estas pessoas convivem normalmente com quase todos os restantes, sem ponta de problema e com grande complacência, é muito desanimadora. Antes da censura penal, para que todos convenientemente apelam, terá de anteceder a censura social. E essa não existe. É uma questão de mentalidade colectiva.
Jurista
JOSÉ MANUEL OLIVEIRA ANTUNES
06/05/2016 - 07:38
Público
O Programa Nacional de Reformas, publicado pelo Governo, faz um diagnóstico dos principais constrangimentos da sociedade portuguesa, que, sendo de tal modo evidente, colherá certamente a quase unanimidade da sociedade civil de todos os quadrantes políticos. Aliás, um diagnóstico semelhante se fosse publicado no séc. XIX ou no séc. XX, como agora no séc. XXI, obteria a mesma concordância generalizada. De facto, não é evidente para todos que os portugueses que ainda terão de melhorar as suas qualificações, que a nossa economia é pouco competitiva, que o funcionamento do Estado cria restrições ao investimento, ao desenvolvimento e à vida dos cidadãos, que as empresas estão descapitalizadas e que o sistema de Justiça tem um desempenho muito insuficiente?
A regularidade, quase autofágica, como que nos martirizamos século após século, com os mesmos diagnósticos e trazemos aos ombros os mesmos problemas, como se o tempo não passasse, faz com que a dada altura, por pura defesa da mente e do espírito, se torne inadequado, penoso e inútil, revivermos o nosso passado. À parte de uma escassa minoria, por curiosidade ou dever de ofício, a maior parte das pessoas, mesmo as interessadas pelo interesse colectivo, já desistiram de ler estes textos. A sua eficácia é muito diminuta, pois, por serem tão recorrentes e de tão pouco resultado, são esquecidos depressa. As poucas medidas concretas que têm tido consequência resultam de imposição externa da União Europeia, do BCE e do Eurogrupo. As que resultariam duma vontade interna mexeriam com tantos interesses instalados, que só com um consenso político muito alargado e muito determinado se poderia dar alguma sequência à cura dos padecimentos colectivos de que fala o diagnóstico do Programa de Reformas. Isso até hoje tem sido impossível. Porque haveria de ser diferente agora?
Há, no entanto, pelo menos uma coisa aparentemente nova. A assunção, pelo programa de reformas, de que a corrupção na contratação pública é um fenómeno instalado na sociedade portuguesa. Para a generalidade dos adjudicatários de bens, serviços e empreitadas e mesmo para a população em geral, isso não constitui novidade. Para além da identificação do fenómeno, o programa propõe algumas medidas preventivas contra a corrupção, de cuja eficácia duvidamos, mas o facto de assumir o problema e propor medidas é meritório e deve ser assinalado.
Mas importa ir ao fundo do problema: por via de directivas de aplicação obrigatória, não há na legislação portuguesa sobre contratos públicos (contratos em que o Estado ou outras entidades publicas são os clientes dos particulares) nada de substancialmente diferente do que rege os contratos nos restantes Estados-membros da União. Mas, apesar de se aplicarem as mesmas regras de respeito pela transparência, legalidade e concorrência, o fenómeno da corrupção tem uma dimensão nos países do Sul, como em Itália, Espanha, Grécia e Portugal, incomparavelmente maior do que nos países do Norte da Europa. E isto nada tem que ver com os níveis de desenvolvimento, nem com a falta de legislação punitiva, que também é semelhante em todos.
Tem seguramente que ver com uma questão bem mais grave, que é a mentalidade colectiva neste domínio. A ideia de que a “gorjeta”, a “luva” o pagamento de actos normais como se fossem “favores”, o pagamento de comissões, em actos em que é absurdo admiti-las e interdito auferi-las é muito tolerada pela generalidade da população, que não olha para esses actos com o elevado grau de censura, como olha para outros crimes. O particular, mesmo quando não tem a iniciativa da corrupção, aceita nela participar, se a isso for chamado, entendendo a “luva” como parte do custo do negócio. Fica com a “consciência tranquila”, porque não teve a iniciativa e defendeu os interesses da sua empresa. Só que na maior parte das vezes este comportamento colaborante sai mais caro ao Estado, porque uma parte da despesa com o contrato se destina ao funcionário ou governante prevaricador. Todos pagamos, portanto. Os mesmos portugueses que foram recentemente tão lestos a apoiar a consulta pública das listas de pedófilos, para exercitarem a sua estigmatização social, convivem descontraidamente com pessoas que sabem que têm actividade corruptiva nas instituições públicas e assobiam para o lado. Dirão: não têm provas. Muito bem, não têm provas, não acusem. A lei é assim e muito bem. Mas todos sabemos que a questão não finda aqui. A tolerância com que estas pessoas convivem normalmente com quase todos os restantes, sem ponta de problema e com grande complacência, é muito desanimadora. Antes da censura penal, para que todos convenientemente apelam, terá de anteceder a censura social. E essa não existe. É uma questão de mentalidade colectiva.
Jurista
JOSÉ MANUEL OLIVEIRA ANTUNES
06/05/2016 - 07:38
Público
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