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A sua casa é igual à minha
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A sua casa é igual à minha
Os nossos antepassados, trabalhadores nas fábricas, sabiam que tinham de partir quando o fumo das chaminés não cobria o céu de negro. A indústria garantia o trabalho e forjou a consciência política de muitos - ali nasceu o comunismo e o capitalismo. Explorados e exploradores. Não existiam sombras porque cada um sabia o lugar que ocupava. A única coisa que os unia era o fumo negro que matava nuvens e pássaros. A riqueza e o direito ao trabalho, o progresso, basearam-se no que hoje ninguém deseja. Não há operários, sobram as nuvens onde antes existiam as chaminés e os mesmos que reivindicam o direito ao trabalho desejam um mundo despoluído e sustentável.
O mundo como o conhecemos está a morrer. Sentámo-nos aos computadores, fugimos dos campos e disseram-nos que, depois de tanto sofrimento, a comida nos seria levada à boca. É como eu vivo, não sei fazê-lo de outra maneira. Nunca trabalhei numa fábrica, nunca alanquei com pedra bruta ou 'temperei' o aço. Tudo passou a ser informação, números, chips, impressões, links. O mundo tornou-se global e estreito, dizem-nos. Uma mentira. Porque estando mais próximos de chineses e indianos, estamos mais longe de filhos e vizinhos. Não sei quem mora no andar de baixo, nem faço ideia de quem caminha no chão que oiço no meu tecto.
Quando comecei a escrever esta crónica desejava lembrar-me das casas, desviei-me com as circunstâncias, acontece. Na verdade, queria recordar uma das minhas casas de infância. Dela me despedi há uns meses. Ficar-me-á para sempre.
Ao despedir-me trouxe uns binóculos do meu pai, uma vasilha para as flores, fotografias que a avó fez questão que fossem minhas, quadros pintados por uma tia querida. Ao fechar a porta, pela derradeira vez, percebi que a Casa é tudo o que fica depois de nada ficar. É tudo o que cheirámos, são os banhos e as festas, sem dúvidas as discussões e o amor, os sonhos projectados, as lágrimas, o frango assado e o forno a fumegar do azeite do lagareiro. É tudo o que não podemos levar. É tudo o que não temos a necessidade de levar, é tudo o que somos. Tudo o que sou.
As casas parecem limpas antes de nelas nos procurarmos. Limpamos o pó, aspiramos, tudo está no lugar. Mas quando abrimos caixotes, mexemos em gavetas ou desarredamos móveis, abrimos um outro mundo, por vezes até uma nova civilização. E a casa passa a ser um corpo esventrado, o nosso corpo e alma retalhados em camadas, esqueletos, objectos e memórias. Somos arqueólogos de nós próprios, várias casas dentro de apenas uma.
Dá-me ideia que tudo se foi mudando. Será que a maneira como vivemos as casas na nossa primeira juventude é semelhante ao sentimento dos nossos filhos em relação às suas próprias memórias? Tenho dúvidas. No meu tempo existia uma televisão com quatro canais que tinha uma importância definida e circunscrita - muita relevância pelo seu carácter excepcional. Hoje tenho uma televisão que me oferece múltiplas possibilidades: YouTube, Facebook, filmes, gravações, fóruns, compras, encontros amorosos, literatura, jornais do dia, alta definição, três dimensões, a perfeição absoluta. Oferece-me tanto que, esmagado pelas infindas possibilidades, deixei de a ligar, desisti, abandonei-a. Quanto mais fibra e mais cabo, quanto maior a rapidez, maior a vontade de deixar para amanhã. E quando o amanhã nasce já é passado o que para trás ficou.
Pode ser um bom sinal. Talvez possamos voltar a perceber que as casas têm uma vida própria. Porque disso não tenho qualquer dúvida: as pessoas são como as casas ou tudo o que é deixado ao pó: envelhecemos mais depressa quando apagamos a luz e ninguém está ao lado. Por vezes envelhecemos sem que as rugas dêem de si, enrugamo-nos por dentro. Antes sozinhos do que mal acompanhados, uma verdade ainda mais esmagadora. Só que o envelhecimento pouco tem a ver com a infelicidade; não estamos condenados à tristeza profunda se caminharmos sozinhos, apenas a uma velhice prematura, a uma meia-luz. Não tem mal, é simplesmente assim. Acontece o mesmo com as casas, abandonadas envelhecem mais cedo. E morrem. Tal como nós.
Isto do tempo… Uma verdadeira chatice. E uma maravilha.
Foi ontem…
Corria na rua, a avó chamava-me à janela e nas fotografias aparecia jovem e enérgico, com borbulhas e cabelo, os olhos mais azuis e maiores, um sorriso de que me lembro bem. Não me recordo de o tempo ter passado. Passou? Quando aconteceu o meu envelhecimento? Certamente durante a longa madrugada do sono. De outro modo como explicar o que me aconteceu (nos aconteceu) entre ontem e hoje?
Luís Osório | 22/10/2014 16:13:36
SOL
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