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CRÓNICA: O pano de fundo
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CRÓNICA: O pano de fundo
Não é difícil a quem saia de casa concluir que ficou imediatamente rodeado de figurantes. Depois de encontrar alguém três vezes na rua começamos a imaginar uma coreografia.
Nós somos em geral pessoas dadas a cabriolas. Sofremos pensamentos, e mudanças. Convencemo-nos (erradamente) de que o mundo muda quando os nossos olhos mudam; e mudam constantemente. Mesmo que as nossas ideias não sejam boas, e nem sempre são, o aspecto é o de uma agitação constante; há um espectáculo mental em sessões contínuas que até quando é silencioso não deixa de ser ofegante. Num certo sentido acreditamos que somos as únicas pessoas a quem isso acontece; ou pelo menos as outras pessoas estão sempre menos agitadas e menos alerta que nós.
As coisas parecem bem feitas: saímos de casa e tudo está organizado como um pano de fundo. Não se trata apenas de as paisagens continuarem idênticas e não acompanharem os nossos tumultos; o que está está, e o que se passa passa-se tão devagar que mesmo que prestemos muita atenção é raro repararmos nalguma coisa; e quando reparamos, como aliás sabe quem já viu chover ou assistiu a um acontecimento histórico, o que vemos não é claro.
Quanto às outras pessoas, que nunca conseguimos acreditar completamente que fossem iguais a nós, movem-se sem grandes barulhos nesse pano de fundo, e realizam tarefas com o aspecto de terem sido encomendadas de propósito para dar consistência ao resto. Não é aliás difícil a quem saia de casa concluir que ficou imediatamente rodeado de figurantes. Depois de encontrar alguém três vezes na rua começamos a imaginar uma coreografia. A primeira repetição indica já uma certa estabilidade; a segunda sugere um desígnio especial; e ao fim de uma semana a pessoa que encontramos passa a pertencer à natureza das coisas, naturalmente como parte do pano de fundo. Como nos foi reservado o papel de solistas principais as questões teológicas não nos interessam.
Não adianta diminuir estas imaginações, e dizer que se mais de uma pessoa as tem não serão senão fantasias. Afinal de contas é sempre possível que uma das fantasias seja a verdadeira; e que por um acaso feliz seja a nossa. Mas mesmo que a nossa fantasia seja a verdadeira, e em qualquer caso, pode ser que dependa do pano de fundo mais do que imaginamos. Se for assim, a única razão por que não nos desintegramos e perdemos no entretenimento das nossas cabriolas é porque aos fenómenos meteorológicos e às outras pessoas, àquilo a que na sua falta de agitação se chamou o pano de fundo, foi reservado o papel de aguentar o tanto que se passa connosco. O pano de fundo é assim um elemento principal; e nós somos aquilo que os outros sempre nos garantiram que éramos, a saber, uma parte do seu pano de fundo, que por sua vez os alimenta e conforta.
Miguel Tamen
6/5/2016, 3:40
Observador
Nós somos em geral pessoas dadas a cabriolas. Sofremos pensamentos, e mudanças. Convencemo-nos (erradamente) de que o mundo muda quando os nossos olhos mudam; e mudam constantemente. Mesmo que as nossas ideias não sejam boas, e nem sempre são, o aspecto é o de uma agitação constante; há um espectáculo mental em sessões contínuas que até quando é silencioso não deixa de ser ofegante. Num certo sentido acreditamos que somos as únicas pessoas a quem isso acontece; ou pelo menos as outras pessoas estão sempre menos agitadas e menos alerta que nós.
As coisas parecem bem feitas: saímos de casa e tudo está organizado como um pano de fundo. Não se trata apenas de as paisagens continuarem idênticas e não acompanharem os nossos tumultos; o que está está, e o que se passa passa-se tão devagar que mesmo que prestemos muita atenção é raro repararmos nalguma coisa; e quando reparamos, como aliás sabe quem já viu chover ou assistiu a um acontecimento histórico, o que vemos não é claro.
Quanto às outras pessoas, que nunca conseguimos acreditar completamente que fossem iguais a nós, movem-se sem grandes barulhos nesse pano de fundo, e realizam tarefas com o aspecto de terem sido encomendadas de propósito para dar consistência ao resto. Não é aliás difícil a quem saia de casa concluir que ficou imediatamente rodeado de figurantes. Depois de encontrar alguém três vezes na rua começamos a imaginar uma coreografia. A primeira repetição indica já uma certa estabilidade; a segunda sugere um desígnio especial; e ao fim de uma semana a pessoa que encontramos passa a pertencer à natureza das coisas, naturalmente como parte do pano de fundo. Como nos foi reservado o papel de solistas principais as questões teológicas não nos interessam.
Não adianta diminuir estas imaginações, e dizer que se mais de uma pessoa as tem não serão senão fantasias. Afinal de contas é sempre possível que uma das fantasias seja a verdadeira; e que por um acaso feliz seja a nossa. Mas mesmo que a nossa fantasia seja a verdadeira, e em qualquer caso, pode ser que dependa do pano de fundo mais do que imaginamos. Se for assim, a única razão por que não nos desintegramos e perdemos no entretenimento das nossas cabriolas é porque aos fenómenos meteorológicos e às outras pessoas, àquilo a que na sua falta de agitação se chamou o pano de fundo, foi reservado o papel de aguentar o tanto que se passa connosco. O pano de fundo é assim um elemento principal; e nós somos aquilo que os outros sempre nos garantiram que éramos, a saber, uma parte do seu pano de fundo, que por sua vez os alimenta e conforta.
Miguel Tamen
6/5/2016, 3:40
Observador
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