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Matar todos os dias
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Matar todos os dias
Há definições que podem encontrar maior ou menor respaldo na realidade mas todas elas procuram fazer um evidente esforço de síntese. "Mass shooting", matar colectivamente com armas de fogo. Quando quatro ou mais pessoas são alvejadas num mesmo acto (não incluindo o atirador) a estatística entra em acção e permite-nos aterrar na mais aterradora das conclusões: nos EUA, só no fim de semana passado, contaram-se seis casos.
A história desfilará sobre o terror em Orlando e nem por um segundo se poderá desvalorizar ou minimizar o acto de barbárie e homofobia praticado por Omar Mateen, já investigado duas inconclusivas vezes pelo FBI no passado. Mas os números não escondem um problema histórico de civilização e de costumes, vulgarmente resolvido à lei da bala. A incapacidade para alterar a segunda Emenda (do século XVIII) da Constituição faz vítimas quase todos os dias. A política de controlo de armas de fogo nos EUA é verdadeiramente um boomerag que nunca regressa ao atirador. Pelo contrário, quando se contam 1000 "mass shootings" em 1260 dias, permite-se ao agressor a cultura da empatia. Contas feitas, em cada seis dias assistimos a cinco actos desta natureza. Na realidade, nem assistimos nem nos damos conta. É um pouco como se os números matassem e ninguém quisesse saber.
O ataque de domingo no clube Pulse foi o maior massacre com armas de fogo na história dos EUA. Depois do ataque em San Bernardino em Dezembro do ano passado, Barack Obama declarou um padrão: não há nenhum outro país que possa estabelecer um paralelismo com os números dos EUA nesta matéria. Mas nem os repetidos avisos de Obama ecoam e sedimentam sinais de mudança num país onde ter uma arma é um direito fundamental protegido por lóbis que sustentam a candidatura republicana de Donald Trump à presidência. A crença na autodefesa armada como motor de liberdade é muito mais do que um negócio ou uma falsa ideia de protecção. É a subtracção da justiça ao momento certo em que ela deve ser exercida. No fundo, a propaganda da ansiedade da ameaça imediata que vive para sempre no interior da vítima que sobrevive, transposta para quem assiste e julga poder ser o próximo. É jogar baixo com as pessoas e com o que de mais sombrio julgam possuir pela capacidade individual de tudo resolver com um golpe.
Acção, incredulidade, reacção. Quem pretende descodificar o massacre em Orlando sem o apelidar de ataque homofóbico, não faz só um favor aos terroristas. Codifica, ele mesmo, as suas motivações e as do agressor. E é por isso que não vale tudo. E é por isso que, com todas as interpretações possíveis, a decência não vive na cabeça de todos. Quem encontra justificação para poder agredir no luto é servil à sua conta.
O autor escreve segundo a antiga ortografia
*MÚSICO E ADVOGADO
MIGUEL GUEDES*
Hoje às 00:08
Jornal de Notícias
A história desfilará sobre o terror em Orlando e nem por um segundo se poderá desvalorizar ou minimizar o acto de barbárie e homofobia praticado por Omar Mateen, já investigado duas inconclusivas vezes pelo FBI no passado. Mas os números não escondem um problema histórico de civilização e de costumes, vulgarmente resolvido à lei da bala. A incapacidade para alterar a segunda Emenda (do século XVIII) da Constituição faz vítimas quase todos os dias. A política de controlo de armas de fogo nos EUA é verdadeiramente um boomerag que nunca regressa ao atirador. Pelo contrário, quando se contam 1000 "mass shootings" em 1260 dias, permite-se ao agressor a cultura da empatia. Contas feitas, em cada seis dias assistimos a cinco actos desta natureza. Na realidade, nem assistimos nem nos damos conta. É um pouco como se os números matassem e ninguém quisesse saber.
O ataque de domingo no clube Pulse foi o maior massacre com armas de fogo na história dos EUA. Depois do ataque em San Bernardino em Dezembro do ano passado, Barack Obama declarou um padrão: não há nenhum outro país que possa estabelecer um paralelismo com os números dos EUA nesta matéria. Mas nem os repetidos avisos de Obama ecoam e sedimentam sinais de mudança num país onde ter uma arma é um direito fundamental protegido por lóbis que sustentam a candidatura republicana de Donald Trump à presidência. A crença na autodefesa armada como motor de liberdade é muito mais do que um negócio ou uma falsa ideia de protecção. É a subtracção da justiça ao momento certo em que ela deve ser exercida. No fundo, a propaganda da ansiedade da ameaça imediata que vive para sempre no interior da vítima que sobrevive, transposta para quem assiste e julga poder ser o próximo. É jogar baixo com as pessoas e com o que de mais sombrio julgam possuir pela capacidade individual de tudo resolver com um golpe.
Acção, incredulidade, reacção. Quem pretende descodificar o massacre em Orlando sem o apelidar de ataque homofóbico, não faz só um favor aos terroristas. Codifica, ele mesmo, as suas motivações e as do agressor. E é por isso que não vale tudo. E é por isso que, com todas as interpretações possíveis, a decência não vive na cabeça de todos. Quem encontra justificação para poder agredir no luto é servil à sua conta.
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