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A revolta contra a globalização e o multiculturalismo
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A revolta contra a globalização e o multiculturalismo
O consenso em torno da globalização e do multiculturalismo, que marcou as últimas décadas, está a ficar em estilhaços.
1. As últimas décadas do século XX foram profundamente marcadas pela globalização e multiculturalismo. A democracia capitalista liberal fin de siècle, imbuída desses valores, parecia o fim da história no sentido hegeliano da ideia. A rotatividade dos partidos de poder estabeleceu-se sem nunca por em causa ambos, vistos como princípios estruturantes. Impregnou a forma de fazer política. Globalismo e multiculturalismo tornaram-se praticamente as únicas ideologias aceitáveis. A boa sociedade seria aberta à globalização e multicultural. À direita, com maior entusiasmo pela globalização, à esquerda, com maior entusiasmo pelo multiculturalismo, ambas as concepções e os seus valores foram cooptados. Quer o centro-direita, quer o centro-esquerda, incorporaram-nas nos seus programas políticos. A isto acrescia o consenso pró-europeísta dos partidos que alternavam no poder. Nas margens do espectro político, o voto contestatário era relativamente diminuto. O início do século XXI, especialmente, a última década, trouxe uma revolta profunda contra esta forma de fazer política. Era impensável não há muito tempo atrás. Tentar perceber as razões da sua rejeição é crucial para compreender o rumo dos acontecimentos a que estamos a assistir.
2. Como todos os processos políticos complexos, a revolta contra a globalização e o multiculturalismo pode ser analisada sob vários ângulos e objecto de diferentes interpretações. A crescente oposição das massas às elites que as governam é uma das facetas críticas e merecedoras de mais reflexão. Numa formulação clássica, a democracia deve ser o governo do povo e para o povo. Mas isso pressupõe, entre outras coisas, que as elites governantes reflictam os valores e ambições da população. Existe um sentimento crescente de não estar a ocorrer isso. É observável, um pouco por todas as sociedades europeias, um antagonismo, cada vez mais profundo, entre as elites tradicionais e a população em geral. Se uma clivagem deste tipo sempre existiu em democracias representativas, hoje tem uma intensidade e profundidade novas. Ocorre, simultaneamente, por discrepâncias de valores culturais e grandes disparidades de bem-estar material. Em geral, para as elites — sejam elas políticas, económicas ou culturais —, a nação, a soberania, a identidade cultural-nacional ou uma sociedade homogénea, são ideias do passado, ultrapassadas e indesejáveis no século XXI. Mas não são esses os valores de uma parte importante da população, eventualmente maioritária, sobretudo de classe média ou média-baixa. Esta revê-se bem mais nos valores tradicionais de um passado não muito distante. Sente-se alvo de uma censura linguística e do pensamento permanente — aquilo a que os críticos chamam o politicamente correcto —, que inibe e ridiculariza socialmente a sua forma tradicional de se exprimir, vista como preconceituosa e ofensiva. Sente-se desconfortável e insegura com os valores pós-modernos e desnacionalizados das elites. Estes favorecem sociedades diversas, bastante abertas a fluxos migratórios de populações frequentemente distantes culturalmente, e a criação de novas realidades de tipo pós-nacional.
3. A globalização e o aumento das desigualdades intra-sociedades a ela inerente, acentuou o sentimento de injustiça social e de revolta. Para as elites, mesmo para as que contestam a globalização, há vantagens evidentes, pelo menos ao nível da criação de uma rede de conexões internacionais e de mobilidade profissional qualificada. No caso das elites empresariais, as vantagens são ainda mais óbvias e vincadas. Podem retirar grandes ganhos económicos e financeiros de sistemas fiscais diferentes, de custos de mão-de-obra díspares, etc. Para o grosso da classe média e média-baixa, o sentimento dominante é que não tiveram quaisquer ganhos significativos com a globalização. Pior: que as grandes vantagens foram obtidas, ou concedidas a outros, pelas elites, à sua própria custa. Sentem uma redução das suas condições de trabalho, salários, pensões, etc, e que são empurrados para uma competição extrema e predatória. Essa percepção, que já existia de forma difusa antes da crise financeira de 2007 / 2008, tornou-se o sentimento em expansão nos últimos tempos. Pela sua incapacidade de evitar que partes significativas da população descessem socialmente a limiares próximos da pobreza — ou até resvalando mesmo para esta —, a União Europeia é um alvo particular de revolta. É vista como uma mini-globalização à escala europeia. Poder-se-á dizer que a revolta se enganou no alvo, que a União Europeia visa proteger os europeus da globalização. O problema é que a legitimidade europeia foi construída pelas elites com a promessa de contínuo aumento do bem-estar à população. Hoje, para além da ambicionada prosperidade material estar sob ameaça permanente de recuo, as próprias instituições europeias são vistas como uma presença indesejada e intrusiva em opções políticas democráticas nacionais.
4. A revolta contra a globalização e o multiculturalismo não pode ser compreendida sem o sentimento de fragilidade e vulnerabilidade que atravessa as sociedades europeias. Há várias razões para isso, nomeadamente ligadas ao ambiente político internacional, especialmente às guerras no Sul do Mediterrâneo e Médio Oriente, aos actos de violência e terror do islamismo-jihadista, ao fluxo imparável de refugiados / migrantes, às tensões a Leste com a Rússia, etc. Aqui, aponto apenas duas razões internas. Uma primeira é a constante e acentuada mudança de valores desde os anos 1960. A segunda é o aumento da esperança média de vida, ocorrido, em paralelo, com um declínio sem precedentes históricos da natalidade, particularmente visível na contínua diminuição da população jovem. Ambas transformaram, profundamente, as sociedades europeias. Para além das virtudes das transformações, tornaram-nas mais frágeis e inseguras. Populações mais envelhecidas tendem a ser mais conservadoras, mais agarradas a valores tradicionais. Com os valores em constante transformação, nada parece certo, nem seguro, ao indivíduo comum, o qual, em média, tem cada vez mais idade. Nem os valores mais profundos nos quais foi socializado e agora vê rejeitados pelas elites; nem os mecanismos de bem-estar material, como a segurança social ou a reforma, que dava como adquiridos. O resultado destas transformações foi a amplificação das clivagens sociais e geracionais. Até certo ponto estas são vulgares, mas o dado novo e relevante é estarmos perante gerações mais jovens, em constante diminuição, e gerações mais velhas, em constante expansão. Além disso, nas sociedades mais diversas, os mais velhos são largamente do grupo maioritário, ou seja, população autóctone, e os mais novos, cada vez mais, população oriunda de fluxos migratórios, frequentemente mal integrados. Se a isto juntarmos elites favoráveis à globalização e ao multiculturalismo, nas suas diferentes versões — em dissonância com os valores, aspirações e visão do mundo de grande parte da população —, percebemos a dimensão do problema.
5. A política europeia e ocidental está a caminhar para terra incognita. Vamos precisar de distanciamento histórico para perceber completamente onde nos está a levar a engrenagem em marcha. Uma coisa parece certa. O consenso em torno da globalização e do multiculturalismo, que marcou as últimas décadas, está a ficar em estilhaços. Os candidatos e partidos anti-sistema estão em ascensão. Ao nível da União Europeia, o próximo referendo britânico pode ter o efeito de aumentar a intensidade da revolta em curso. Seja qual for o resultado, vai deixar um país dividido a meio. A União Europeia poderá ser a grande vítima, em parte por ser percebida como a face visível da globalização e do multiculturalismo, cada vez mais com anticorpos. Em parte, também, o modelo de construção europeia sufragado pelas elites, é o responsável. A vontade dos cidadãos foi demasiadas vezes contornada. Agora o desejo de vingança, que sucede a décadas de apatia, surge com fúria. As consequências podem ser enormes: desde um efeito em cadeia de referendos para a saída da União, até à ambição independentista da Escócia se concretizar, passando pelo regresso a lógicas políticas nacionalistas. Mas tudo isto é também crítico do ponto de vista da democracia e dos limites da escolha democrática face a valores fundamentais como os direitos humanos, os direitos das minorias, etc. E se a vontade da maioria da população, expressa em eleições livres e amplamente participadas, for contra a globalização e o multiculturalismo? E se os britânicos quiserem inequivocamente sair da União Europeia? E, já agora, se os norte-americanos elegerem Donald Trump? Provavelmente, a música dos R.EM., It's the end of the world as we know it (and I [don't] feel fine), ecoará na cabeça de muitos.
Investigador
Por José Pedro Teixeira Fernandes
16/06/2016 - 09:52
Público
1. As últimas décadas do século XX foram profundamente marcadas pela globalização e multiculturalismo. A democracia capitalista liberal fin de siècle, imbuída desses valores, parecia o fim da história no sentido hegeliano da ideia. A rotatividade dos partidos de poder estabeleceu-se sem nunca por em causa ambos, vistos como princípios estruturantes. Impregnou a forma de fazer política. Globalismo e multiculturalismo tornaram-se praticamente as únicas ideologias aceitáveis. A boa sociedade seria aberta à globalização e multicultural. À direita, com maior entusiasmo pela globalização, à esquerda, com maior entusiasmo pelo multiculturalismo, ambas as concepções e os seus valores foram cooptados. Quer o centro-direita, quer o centro-esquerda, incorporaram-nas nos seus programas políticos. A isto acrescia o consenso pró-europeísta dos partidos que alternavam no poder. Nas margens do espectro político, o voto contestatário era relativamente diminuto. O início do século XXI, especialmente, a última década, trouxe uma revolta profunda contra esta forma de fazer política. Era impensável não há muito tempo atrás. Tentar perceber as razões da sua rejeição é crucial para compreender o rumo dos acontecimentos a que estamos a assistir.
2. Como todos os processos políticos complexos, a revolta contra a globalização e o multiculturalismo pode ser analisada sob vários ângulos e objecto de diferentes interpretações. A crescente oposição das massas às elites que as governam é uma das facetas críticas e merecedoras de mais reflexão. Numa formulação clássica, a democracia deve ser o governo do povo e para o povo. Mas isso pressupõe, entre outras coisas, que as elites governantes reflictam os valores e ambições da população. Existe um sentimento crescente de não estar a ocorrer isso. É observável, um pouco por todas as sociedades europeias, um antagonismo, cada vez mais profundo, entre as elites tradicionais e a população em geral. Se uma clivagem deste tipo sempre existiu em democracias representativas, hoje tem uma intensidade e profundidade novas. Ocorre, simultaneamente, por discrepâncias de valores culturais e grandes disparidades de bem-estar material. Em geral, para as elites — sejam elas políticas, económicas ou culturais —, a nação, a soberania, a identidade cultural-nacional ou uma sociedade homogénea, são ideias do passado, ultrapassadas e indesejáveis no século XXI. Mas não são esses os valores de uma parte importante da população, eventualmente maioritária, sobretudo de classe média ou média-baixa. Esta revê-se bem mais nos valores tradicionais de um passado não muito distante. Sente-se alvo de uma censura linguística e do pensamento permanente — aquilo a que os críticos chamam o politicamente correcto —, que inibe e ridiculariza socialmente a sua forma tradicional de se exprimir, vista como preconceituosa e ofensiva. Sente-se desconfortável e insegura com os valores pós-modernos e desnacionalizados das elites. Estes favorecem sociedades diversas, bastante abertas a fluxos migratórios de populações frequentemente distantes culturalmente, e a criação de novas realidades de tipo pós-nacional.
3. A globalização e o aumento das desigualdades intra-sociedades a ela inerente, acentuou o sentimento de injustiça social e de revolta. Para as elites, mesmo para as que contestam a globalização, há vantagens evidentes, pelo menos ao nível da criação de uma rede de conexões internacionais e de mobilidade profissional qualificada. No caso das elites empresariais, as vantagens são ainda mais óbvias e vincadas. Podem retirar grandes ganhos económicos e financeiros de sistemas fiscais diferentes, de custos de mão-de-obra díspares, etc. Para o grosso da classe média e média-baixa, o sentimento dominante é que não tiveram quaisquer ganhos significativos com a globalização. Pior: que as grandes vantagens foram obtidas, ou concedidas a outros, pelas elites, à sua própria custa. Sentem uma redução das suas condições de trabalho, salários, pensões, etc, e que são empurrados para uma competição extrema e predatória. Essa percepção, que já existia de forma difusa antes da crise financeira de 2007 / 2008, tornou-se o sentimento em expansão nos últimos tempos. Pela sua incapacidade de evitar que partes significativas da população descessem socialmente a limiares próximos da pobreza — ou até resvalando mesmo para esta —, a União Europeia é um alvo particular de revolta. É vista como uma mini-globalização à escala europeia. Poder-se-á dizer que a revolta se enganou no alvo, que a União Europeia visa proteger os europeus da globalização. O problema é que a legitimidade europeia foi construída pelas elites com a promessa de contínuo aumento do bem-estar à população. Hoje, para além da ambicionada prosperidade material estar sob ameaça permanente de recuo, as próprias instituições europeias são vistas como uma presença indesejada e intrusiva em opções políticas democráticas nacionais.
4. A revolta contra a globalização e o multiculturalismo não pode ser compreendida sem o sentimento de fragilidade e vulnerabilidade que atravessa as sociedades europeias. Há várias razões para isso, nomeadamente ligadas ao ambiente político internacional, especialmente às guerras no Sul do Mediterrâneo e Médio Oriente, aos actos de violência e terror do islamismo-jihadista, ao fluxo imparável de refugiados / migrantes, às tensões a Leste com a Rússia, etc. Aqui, aponto apenas duas razões internas. Uma primeira é a constante e acentuada mudança de valores desde os anos 1960. A segunda é o aumento da esperança média de vida, ocorrido, em paralelo, com um declínio sem precedentes históricos da natalidade, particularmente visível na contínua diminuição da população jovem. Ambas transformaram, profundamente, as sociedades europeias. Para além das virtudes das transformações, tornaram-nas mais frágeis e inseguras. Populações mais envelhecidas tendem a ser mais conservadoras, mais agarradas a valores tradicionais. Com os valores em constante transformação, nada parece certo, nem seguro, ao indivíduo comum, o qual, em média, tem cada vez mais idade. Nem os valores mais profundos nos quais foi socializado e agora vê rejeitados pelas elites; nem os mecanismos de bem-estar material, como a segurança social ou a reforma, que dava como adquiridos. O resultado destas transformações foi a amplificação das clivagens sociais e geracionais. Até certo ponto estas são vulgares, mas o dado novo e relevante é estarmos perante gerações mais jovens, em constante diminuição, e gerações mais velhas, em constante expansão. Além disso, nas sociedades mais diversas, os mais velhos são largamente do grupo maioritário, ou seja, população autóctone, e os mais novos, cada vez mais, população oriunda de fluxos migratórios, frequentemente mal integrados. Se a isto juntarmos elites favoráveis à globalização e ao multiculturalismo, nas suas diferentes versões — em dissonância com os valores, aspirações e visão do mundo de grande parte da população —, percebemos a dimensão do problema.
5. A política europeia e ocidental está a caminhar para terra incognita. Vamos precisar de distanciamento histórico para perceber completamente onde nos está a levar a engrenagem em marcha. Uma coisa parece certa. O consenso em torno da globalização e do multiculturalismo, que marcou as últimas décadas, está a ficar em estilhaços. Os candidatos e partidos anti-sistema estão em ascensão. Ao nível da União Europeia, o próximo referendo britânico pode ter o efeito de aumentar a intensidade da revolta em curso. Seja qual for o resultado, vai deixar um país dividido a meio. A União Europeia poderá ser a grande vítima, em parte por ser percebida como a face visível da globalização e do multiculturalismo, cada vez mais com anticorpos. Em parte, também, o modelo de construção europeia sufragado pelas elites, é o responsável. A vontade dos cidadãos foi demasiadas vezes contornada. Agora o desejo de vingança, que sucede a décadas de apatia, surge com fúria. As consequências podem ser enormes: desde um efeito em cadeia de referendos para a saída da União, até à ambição independentista da Escócia se concretizar, passando pelo regresso a lógicas políticas nacionalistas. Mas tudo isto é também crítico do ponto de vista da democracia e dos limites da escolha democrática face a valores fundamentais como os direitos humanos, os direitos das minorias, etc. E se a vontade da maioria da população, expressa em eleições livres e amplamente participadas, for contra a globalização e o multiculturalismo? E se os britânicos quiserem inequivocamente sair da União Europeia? E, já agora, se os norte-americanos elegerem Donald Trump? Provavelmente, a música dos R.EM., It's the end of the world as we know it (and I [don't] feel fine), ecoará na cabeça de muitos.
Investigador
Por José Pedro Teixeira Fernandes
16/06/2016 - 09:52
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