O que não devemos calar para sempre

Temos o péssimo hábito de não nos despedirmos dos mortos da forma adequada. Na missa, no enterro e no encontro familiar e de íntimos é raro que alguém se erga para contar aquele que parte. Certamente alguns o fazem mas não é essa a nossa tradição. Tenho dado por mim a sentir essa falta, o que é estranho porque os meus também não têm esse costume. Mas, na verdade, não é estranho porque conheço a boa razão que me leva a desejar ouvir palavras sobre o morto ditas por aqueles que o conheceram. De facto, sobre a morta - e já explico porquê. Ainda é curta a história, entre nós, da liberdade e da igualdade das mulheres. Sobre a não-liberdade e desigualdade há uma memória viva, há livros, há práticas sociais e não-ditos, e provavelmente até leis. E, claro, um funeral, que é um momento de não--conflito, não é o lugar certo para nos queixarmos de injustiças: "O que a minha prima sofreu do marido, que não a deixava sair de casa...", não se diz na presença do viúvo, que na primeira fila sinceramente chora. Mas um funeral é talvez o melhor dos lugares para fazermos o balanço do que já ganhámos e não podemos perder sobre as mulheres. Ando a ficar convencido de que perante um caixão de mulher que foi livre e igual é mais do que importante, é um dever fazer proselitismo da mais séria das causas. E não estou só a falar de quando calha uma das Três Marias, mas de uma portuguesa comum, uma das nossas. Porque não está garantido que continue assim.

20 DE SETEMBRO DE 2016
00:00
Ferreira Fernandes
Diário de Notícias