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Viver para contar: a morte dos telhados

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Viver para contar: a morte dos telhados Empty Viver para contar: a morte dos telhados

Mensagem por Admin Qua Nov 30, 2016 5:07 pm

Viver para contar: a morte dos telhados 555382

Os telhados foram substituídos por coberturas em terraço que não têm utilidade e só dão chatices

Pode parecer estranho um artigo sobre este tema. «Então o Saraiva, lá por ser arquiteto, quer impingir-nos uma lição sobre telhados?» - dirá o leitor. 

Basicamente, toda a gente sabe qual é a função de um telhado: proteger um prédio do sol e da chuva. Mas os telhados são muito mais do que isso. São usados em metáforas - «Ter telhados de vidro» - ou fonte de inspiração para pintores e cineastas. Quem não se recorda de Um Violino no Telhado? E pintores como Carlos Botelho imortalizaram nas suas telas os telhados de Lisboa.

Os telhados e seus ‘sucedâneos’ - como as cúpulas - foram durante séculos elementos centrais da arquitetura. Havia uma ‘estética dos telhados’. Certas casas nórdicas resumiam-se praticamente ao telhado. Na cidade de Paris, os telhados forrados a zinco, que ‘escorregavam’ pelas paredes das mansardas e as revestiam, davam aos boulevards um ambiente característico. O meu pai viveu num desses apartamentos, no Boulevard Saint Germain, e eu passei tardes a pintar os telhados que se viam da janela da sala. Reproduzo uma dessas pinturas como curiosidade.

E noutro plano completamente diferente há os telhados ‘de tesoura’ (ou ‘de quatro águas’) de Tavira.

Enfim, poderia escrever-se um tratado sobre as formas e os materiais dos telhados pelo mundo fora.

Subitamente, porém, apesar do seu papel central durante séculos, os telhados ficaram ‘fora de moda’. Pelo menos nos edifícios que se reclamam de uma arquitetura moderna e de qualidade. Os edifícios que Siza ou Souto de Moura projetam hoje não têm telhado. Porquê? 

No início do século XX foi lançado um movimento que revolucionaria a arquitetura, que ficou conhecido como ‘modernismo’. Liderado por homens como Le Corbusier, Walter Gropius, Mies Van der Rohe e outros, criou novos padrões estéticos. E um deles foi a cobertura plana, em placa de betão. Este arquétipo impôs-se como um símbolo de modernidade. Os telhados em telha, xisto ou zinco passaram a ser considerados uma reminiscência do passado, a placa de betão era o futuro.

Os prédios deixaram, portanto, de ser encimados por telhados inclinados para serem cobertos por terraços planos. Ora, estes terraços faziam todo o sentido no Norte de África ou mesmo no Sul da Europa. No nosso Algarve vemos muitas casas com terraços. Além de outras utilizações secundárias, como a seca de frutos, tinham a função básica de recolher a água das chuvas, encaminhando-a depois para depósitos. A escassez de água obrigava ao seu aproveitamento máximo.

Mas no Norte da Europa ou na América os terraços não faziam qualquer sentido. Em lugares onde chove muito, o terraço não só não se justifica como é desaconselhável. De facto, é frequente as lajes de betão das coberturas abrirem rachas com a exposição ao sol e as diferenças de temperatura, o mesmo acontecendo às impermeabilizações. As casas começam a meter água - e as infiltrações são muito difíceis de resolver.

É verdade que num telhado de telha também pode acontecer uma infiltração, em consequência do entupimento de um algeroz ou de uma telha partida, mas o diagnóstico e a reparação são muitíssimo mais simples. 

Mas sendo isto assim - ou seja, não tendo lógica nenhuma fazer coberturas em terraço em climas chuvosos - como se explica a sua rápida vulgarização nessas zonas? É que, tal como na política, na estética também há ‘ideologias’ que se sobrepõem à lógica e que todos seguem acriticamente. Hoje, as casas ditas ‘modernas’ aboliram por completo os telhados inclinados de telha. 

Houve uma espécie de totalitarismo estético que se impôs como modelo único e que subverteu toda a racionalidade. E isso é tanto mais curioso quanto é certo que o movimento modernista se reclamava do ‘racionalismo’. 

Como se vê, pode discorrer-se muito sobre os telhados. Aparentemente têm pouco para dizer: para um leigo, trata-se de um tema que nunca lhe despertou a menor curiosidade. Mas encerra várias lições. E sobretudo essa: continua a haver muita irracionalidade nos comportamentos humanos, mesmo naqueles que envolvem as elites. 

No Norte da Europa e mesmo no nosso país - exceção feita ao Algarve -- as coberturas em terraço não têm utilidade nenhuma e só dão chatices, como as malfadadas infiltrações, mas continuam a fazer-se. Inversamente, os telhados de telha cerâmica, que são mais lógicos, mais isolantes do calor e mais impermeáveis, foram abolidos da arquitetura dita ‘erudita’.

Dirá o leitor que esses terraços que eu critico começam hoje a ser usados para esplanadas e até para jardins no alto dos prédios. Mas são casos isolados, que não têm significado. Na esmagadora maioria das situações, são uma fonte de problemas.

30 de novembro 2016
José António Saraiva
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