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A hierarquia do dinheiro e o Euro
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A hierarquia do dinheiro e o Euro
Com o Euro, o governo português passou do topo da hierarquia do sistema monetário do nosso país para o nível mais baixo.
Para uma melhor compreensão de qualquer sistema monetário é, na minha opinião, fundamental perceber o seu carácter hierárquico. “Sempre e em todo o lado os sistemas monetários são hierárquicos.”
Comecemos por algo simples e intuitivo: a diferença entre dinheiro e crédito. Dinheiro é algo com que se efectua um pagamento, salda uma dívida, enquanto crédito é uma promessa de pagamento, uma forma de o adiar. Se eu for ao café da minha rua tomar qualquer coisa posso pagar imediatamente – com moeda (entenda-se notas e moedas) ou com cartão, transferindo da minha conta bancária para a conta bancária do café – ou posso pedir para pôr na minha conta (um passivo meu), adiando assim esse pagamento e prometendo pagar numa data futura.
Tanto para mim como para qualquer outra pessoa ou empresa – membros do nível mais baixo da hierarquia – moeda e depósitos bancários são dinheiro, ou seja, entre pessoas e empresas, moeda e depósitos bancários saldam dívidas e servem de meio de pagamento.
Subindo na hierarquia – e no caso dos bancos? Um depósito bancário é um passivo dos bancos, uma promessa de o converter em moeda. Entre bancos um depósito bancário não constitui um modo final de pagamento, ou seja uma dívida de um banco a outro banco não pode ser paga com um depósito bancário. Da mesma forma que eu posso adiar um pagamento aumentando a minha dívida no café, os bancos podem fazer o mesmo entre eles, expandindo os seus balanços. Porém, para efectuar um pagamento ou saldar uma dívida estes necessitam de transferir reservas ou moeda (muito raramente), ambas emitidas pelo Banco Central e portanto seus passivos. São estes os instrumentos financeiros que são dinheiro para os bancos.
Subindo uma vez mais na hierarquia – e no caso dos Bancos Centrais? Na altura do padrão ouro, o passivo dos Bancos Centrais (reservas e moeda) era convertível em ouro, era uma promessa de pagar o verdadeiro meio de pagamento. Ou seja, entre Bancos Centrais, moeda e reservas eram o equivalente à minha conta no café, sendo o ouro o meio de pagamento. Hoje em dia, dependendo da transacção, uma das principais moedas internacionais é normalmente exigida como modo de pagamento, com grande predominância do dólar.
Obviamente que a realidade é bem mais complexa que esta simples hierarquia de três patamares, mas já é possível perceber o carácter hierárquico do sistema. O que é considerado dinheiro num nível é apenas crédito (um passivo) num nível superior e à medida que se vai subindo na hierarquia mais credíveis são as promessas de pagamento, “melhor” é o dinheiro. O que é ou não é dinheiro depende do nível em que nos encontramos.
Entre pessoas e empresas, depósitos são dinheiro; entre bancos, reservas são dinheiro; entre Bancos Centrais, as principais moedas internacionais são dinheiro. Para uma descrição mais clara e muito mais rica recomendo esta “aula” da melhor cadeira que tive oportunidade de assistir (apesar de online): “The Economics of Money and Banking”, de Perry Mehrling.
Num país com moeda própria, o governo também se encontra no topo da hierarquia uma vez que o Banco Central, detido pelo Estado, garante a credibilidade das suas promessas de pagamento, da sua dívida. Isto significa que não enfrenta problemas de insolvência a nível doméstico, mas apenas nas suas relações com o exterior. Era esta a nossa situação antes do Euro.
Com o Euro, o governo português passou do topo da hierarquia do sistema monetário do nosso país para o nível mais baixo, semelhante a uma qualquer empresa, com os mesmos problemas de financiamento. Desta forma é fácil de perceber que o “não há dinheiro” dos resgates pré-euro e da mais recente vinda do FMI são muitíssimo diferentes. No primeiro caso, o dinheiro que nos faltava referia-se apenas às nossas despesas com o exterior, à dificuldade em obter dólares para financiar as nossas importações, dinheiro no topo da hierarquia.
No último caso, as dificuldades de financiamento estendiam-se a todo o tipo de despesas – o que faltava era dinheiro no nível mais baixo da hierarquia. A perda de soberania e as limitações na governação que isto significa são óbvias e muito provavelmente premeditadas. Não é por acaso que Wynne Godley dizia em 1992, sobre a moeda única, que sem o poder de emitir moeda, um país adquire o estatuto de uma autoridade local ou de uma colónia.
O autor escreve segundo a antiga ortografia.
Pedro Pratas, Economista
00:06
Jornal Económico
Para uma melhor compreensão de qualquer sistema monetário é, na minha opinião, fundamental perceber o seu carácter hierárquico. “Sempre e em todo o lado os sistemas monetários são hierárquicos.”
Comecemos por algo simples e intuitivo: a diferença entre dinheiro e crédito. Dinheiro é algo com que se efectua um pagamento, salda uma dívida, enquanto crédito é uma promessa de pagamento, uma forma de o adiar. Se eu for ao café da minha rua tomar qualquer coisa posso pagar imediatamente – com moeda (entenda-se notas e moedas) ou com cartão, transferindo da minha conta bancária para a conta bancária do café – ou posso pedir para pôr na minha conta (um passivo meu), adiando assim esse pagamento e prometendo pagar numa data futura.
Tanto para mim como para qualquer outra pessoa ou empresa – membros do nível mais baixo da hierarquia – moeda e depósitos bancários são dinheiro, ou seja, entre pessoas e empresas, moeda e depósitos bancários saldam dívidas e servem de meio de pagamento.
Subindo na hierarquia – e no caso dos bancos? Um depósito bancário é um passivo dos bancos, uma promessa de o converter em moeda. Entre bancos um depósito bancário não constitui um modo final de pagamento, ou seja uma dívida de um banco a outro banco não pode ser paga com um depósito bancário. Da mesma forma que eu posso adiar um pagamento aumentando a minha dívida no café, os bancos podem fazer o mesmo entre eles, expandindo os seus balanços. Porém, para efectuar um pagamento ou saldar uma dívida estes necessitam de transferir reservas ou moeda (muito raramente), ambas emitidas pelo Banco Central e portanto seus passivos. São estes os instrumentos financeiros que são dinheiro para os bancos.
Subindo uma vez mais na hierarquia – e no caso dos Bancos Centrais? Na altura do padrão ouro, o passivo dos Bancos Centrais (reservas e moeda) era convertível em ouro, era uma promessa de pagar o verdadeiro meio de pagamento. Ou seja, entre Bancos Centrais, moeda e reservas eram o equivalente à minha conta no café, sendo o ouro o meio de pagamento. Hoje em dia, dependendo da transacção, uma das principais moedas internacionais é normalmente exigida como modo de pagamento, com grande predominância do dólar.
Obviamente que a realidade é bem mais complexa que esta simples hierarquia de três patamares, mas já é possível perceber o carácter hierárquico do sistema. O que é considerado dinheiro num nível é apenas crédito (um passivo) num nível superior e à medida que se vai subindo na hierarquia mais credíveis são as promessas de pagamento, “melhor” é o dinheiro. O que é ou não é dinheiro depende do nível em que nos encontramos.
Entre pessoas e empresas, depósitos são dinheiro; entre bancos, reservas são dinheiro; entre Bancos Centrais, as principais moedas internacionais são dinheiro. Para uma descrição mais clara e muito mais rica recomendo esta “aula” da melhor cadeira que tive oportunidade de assistir (apesar de online): “The Economics of Money and Banking”, de Perry Mehrling.
Num país com moeda própria, o governo também se encontra no topo da hierarquia uma vez que o Banco Central, detido pelo Estado, garante a credibilidade das suas promessas de pagamento, da sua dívida. Isto significa que não enfrenta problemas de insolvência a nível doméstico, mas apenas nas suas relações com o exterior. Era esta a nossa situação antes do Euro.
Com o Euro, o governo português passou do topo da hierarquia do sistema monetário do nosso país para o nível mais baixo, semelhante a uma qualquer empresa, com os mesmos problemas de financiamento. Desta forma é fácil de perceber que o “não há dinheiro” dos resgates pré-euro e da mais recente vinda do FMI são muitíssimo diferentes. No primeiro caso, o dinheiro que nos faltava referia-se apenas às nossas despesas com o exterior, à dificuldade em obter dólares para financiar as nossas importações, dinheiro no topo da hierarquia.
No último caso, as dificuldades de financiamento estendiam-se a todo o tipo de despesas – o que faltava era dinheiro no nível mais baixo da hierarquia. A perda de soberania e as limitações na governação que isto significa são óbvias e muito provavelmente premeditadas. Não é por acaso que Wynne Godley dizia em 1992, sobre a moeda única, que sem o poder de emitir moeda, um país adquire o estatuto de uma autoridade local ou de uma colónia.
O autor escreve segundo a antiga ortografia.
Pedro Pratas, Economista
00:06
Jornal Económico
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