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Orçamento participativo - o risco do populismo
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Orçamento participativo - o risco do populismo
Decidiu o governo criar um orçamento participativo nacional, parece que o primeiro do género.
Escrevo estas linhas por considerar ser útil refletir sobre a importância e os riscos desta decisão. Previamente, proponho, de uma forma talvez simplista, a definição de dois conceitos utilizados: orçamento participativo e populismo.
O populismo é uma forma de fazer política em que o agente político se dirige à população para lá dos quadros institucionais, acreditando no laço direto e afetivo entre governante e governados e na sua superioridade face aos restantes agentes políticos, colocando-se numa relação "pura" com o povo, sem intermediação de elites, instituições ou burocracias1.
O orçamento participativo é uma forma de participação direta dos cidadãos, consultiva ou deliberativa, na decisão a tomar por entidades públicas no que respeita à alocação de determinada verba para fins públicos. Considera-se que os orçamentos participativos são um mecanismo relevante para aumentar a participação política dos cidadãos. São utilizados, essencialmente, a nível municipal e inframunicipal. Em Portugal, há vários anos, diversos municípios e juntas de freguesia têm recorrido a este instrumento.
O governo diz que esta medida2, no quadro do seu programa, é uma das medidas que toma para "melhorar a qualidade da democracia".
Melhorar a qualidade da democracia é um objetivo nobre. Importa saber se esta medida pode contribuir para o cumprimento desse objetivo. De facto, a enunciação de uma medida associada a um objetivo nobre não faz dela, automaticamente, uma boa medida.
Um orçamento participativo, certas formas de "democracia participativa" podem encontrar similitudes na democracia ateniense, em que o plenário dos cidadãos podia participar diretamente, em certos momentos, nos processos decisórios da vida da cidade (a dimensão da cidade assim o permitia, o total dos cidadãos somava algumas dezenas de milhar).
As democracias liberais europeias contemporâneas estão organizadas em sistemas representativos: os cidadãos elegem os seus representantes e são esses que tomam as decisões de governo (nacional, regional, local) em nome dos cidadãos.
A nível de uma freguesia ou de um município, um processo de participação direta para a tomada de certas decisões ( por exemplo, reabilitar um jardim ou um teatro, construir uma piscina ou um campo de ténis, etc.), concorrendo com o processo de decisão por via da democracia representativa, pode corresponder a um estímulo para decisores e governados, pois a distância entre decisão e ato é pequena. Diferente a nível de uma região ou do país no seu todo.
Um orçamento participativo a nível nacional não é uma simples questão de replicação de alguma coisa que funcionou bem a nível local - além do mais, a demonstração sistemática de que as decisões tomadas em orçamentos participativos locais são concretizadas; de que os cidadãos acompanham os processos de implementação e os avaliam; de que tudo isso melhora os níveis de participação política, está por fazer.
Um orçamento participativo a nível nacional pode passar a ideia de que "o sistema não funciona". Os ministérios, os serviços dependentes, os institutos públicos não saberão quais as prioridades, o que os cidadãos querem. Será necessário criar sistemas alternativos para decidir e fazer melhor.
Repensar modelos de organização e ação da administração pública e de participação é necessário. Mas substituir a reforma do Estado por decisões plebiscitárias a nível orçamental (vote nos projetos que mais gosta, nós damos o dinheiro) não parece ser o melhor meio. Precisamente, por não corresponder a um reforço da legitimidade das instituições democráticas mas a um contributo para a ideia de que as mesmas não funcionam - os representantes democraticamente eleitos e os serviços da administração pública deles dependentes não serão capazes de perceber o que é o serviço público, o que os cidadãos querem. Substitua-se pois o sistema de representação democrática por dispositivos de ligação direta e "simpática" entre quem governa e quem é governado, à margem do sistema institucional.
No caso concreto do modelo de financiamento decidido pelo governo, o montante alocado revela que, a partir de uma ideia nobre - melhorar a qualidade da democracia e de um instrumento testado a nível local -, o orçamento participativo desvirtuou as duas coisas.
O governo afetou três milhões de euros para o orçamento participativo a nível nacional, a dividir pelas áreas de agricultura, ciência, cultura, educação e formação de adultos, o que corresponde a 600 000 euros por área, a dividir pelo todo do território nacional. O processo implica uma série de mecanismos de publicitação, ações de terreno, assembleias participativas, etc., em todo o país. O custo da operação será próximo do montante a distribuir (o que, como se percebe, é um paradoxo). Finalmente, a alocação de verbas do orçamento participativo nacional (uma verba que corresponde a um valor inferior a 0,01% do Orçamento do Estado) a projetos será anunciada no período das eleições autárquicas: setembro/outubro próximos.
É aqui que a ideia de orçamento participativo e populismo se encontram: os cidadãos ficam com a ideia de que têm poder de decisão; os governantes aparecem como próximos dos cidadãos - sem precisão da burocracia do Estado, das instituições da administração pública, meramente acessórias neste propósito.
Vendo fotografias recentes de governantes reunindo-se a nível local com jovens, em "assembleias participativas" para discutir projetos e utilização do dinheiro do orçamento participativo, fiquei com uma sensação de déjà vu. Finalmente lembrei-me: pareciam as sessões de dinamização cultural promovidas pelo MFA, em 1975.
professor universitário
26 DE JANEIRO DE 2017
00:00
Jorge Barreto Xavier
Diário de Notícias
Escrevo estas linhas por considerar ser útil refletir sobre a importância e os riscos desta decisão. Previamente, proponho, de uma forma talvez simplista, a definição de dois conceitos utilizados: orçamento participativo e populismo.
O populismo é uma forma de fazer política em que o agente político se dirige à população para lá dos quadros institucionais, acreditando no laço direto e afetivo entre governante e governados e na sua superioridade face aos restantes agentes políticos, colocando-se numa relação "pura" com o povo, sem intermediação de elites, instituições ou burocracias1.
O orçamento participativo é uma forma de participação direta dos cidadãos, consultiva ou deliberativa, na decisão a tomar por entidades públicas no que respeita à alocação de determinada verba para fins públicos. Considera-se que os orçamentos participativos são um mecanismo relevante para aumentar a participação política dos cidadãos. São utilizados, essencialmente, a nível municipal e inframunicipal. Em Portugal, há vários anos, diversos municípios e juntas de freguesia têm recorrido a este instrumento.
O governo diz que esta medida2, no quadro do seu programa, é uma das medidas que toma para "melhorar a qualidade da democracia".
Melhorar a qualidade da democracia é um objetivo nobre. Importa saber se esta medida pode contribuir para o cumprimento desse objetivo. De facto, a enunciação de uma medida associada a um objetivo nobre não faz dela, automaticamente, uma boa medida.
Um orçamento participativo, certas formas de "democracia participativa" podem encontrar similitudes na democracia ateniense, em que o plenário dos cidadãos podia participar diretamente, em certos momentos, nos processos decisórios da vida da cidade (a dimensão da cidade assim o permitia, o total dos cidadãos somava algumas dezenas de milhar).
As democracias liberais europeias contemporâneas estão organizadas em sistemas representativos: os cidadãos elegem os seus representantes e são esses que tomam as decisões de governo (nacional, regional, local) em nome dos cidadãos.
A nível de uma freguesia ou de um município, um processo de participação direta para a tomada de certas decisões ( por exemplo, reabilitar um jardim ou um teatro, construir uma piscina ou um campo de ténis, etc.), concorrendo com o processo de decisão por via da democracia representativa, pode corresponder a um estímulo para decisores e governados, pois a distância entre decisão e ato é pequena. Diferente a nível de uma região ou do país no seu todo.
Um orçamento participativo a nível nacional não é uma simples questão de replicação de alguma coisa que funcionou bem a nível local - além do mais, a demonstração sistemática de que as decisões tomadas em orçamentos participativos locais são concretizadas; de que os cidadãos acompanham os processos de implementação e os avaliam; de que tudo isso melhora os níveis de participação política, está por fazer.
Um orçamento participativo a nível nacional pode passar a ideia de que "o sistema não funciona". Os ministérios, os serviços dependentes, os institutos públicos não saberão quais as prioridades, o que os cidadãos querem. Será necessário criar sistemas alternativos para decidir e fazer melhor.
Repensar modelos de organização e ação da administração pública e de participação é necessário. Mas substituir a reforma do Estado por decisões plebiscitárias a nível orçamental (vote nos projetos que mais gosta, nós damos o dinheiro) não parece ser o melhor meio. Precisamente, por não corresponder a um reforço da legitimidade das instituições democráticas mas a um contributo para a ideia de que as mesmas não funcionam - os representantes democraticamente eleitos e os serviços da administração pública deles dependentes não serão capazes de perceber o que é o serviço público, o que os cidadãos querem. Substitua-se pois o sistema de representação democrática por dispositivos de ligação direta e "simpática" entre quem governa e quem é governado, à margem do sistema institucional.
No caso concreto do modelo de financiamento decidido pelo governo, o montante alocado revela que, a partir de uma ideia nobre - melhorar a qualidade da democracia e de um instrumento testado a nível local -, o orçamento participativo desvirtuou as duas coisas.
O governo afetou três milhões de euros para o orçamento participativo a nível nacional, a dividir pelas áreas de agricultura, ciência, cultura, educação e formação de adultos, o que corresponde a 600 000 euros por área, a dividir pelo todo do território nacional. O processo implica uma série de mecanismos de publicitação, ações de terreno, assembleias participativas, etc., em todo o país. O custo da operação será próximo do montante a distribuir (o que, como se percebe, é um paradoxo). Finalmente, a alocação de verbas do orçamento participativo nacional (uma verba que corresponde a um valor inferior a 0,01% do Orçamento do Estado) a projetos será anunciada no período das eleições autárquicas: setembro/outubro próximos.
É aqui que a ideia de orçamento participativo e populismo se encontram: os cidadãos ficam com a ideia de que têm poder de decisão; os governantes aparecem como próximos dos cidadãos - sem precisão da burocracia do Estado, das instituições da administração pública, meramente acessórias neste propósito.
Vendo fotografias recentes de governantes reunindo-se a nível local com jovens, em "assembleias participativas" para discutir projetos e utilização do dinheiro do orçamento participativo, fiquei com uma sensação de déjà vu. Finalmente lembrei-me: pareciam as sessões de dinamização cultural promovidas pelo MFA, em 1975.
professor universitário
26 DE JANEIRO DE 2017
00:00
Jorge Barreto Xavier
Diário de Notícias
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