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A utopia de "1984" e o futuro da política
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A utopia de "1984" e o futuro da política
O clássico "1984", de George Orwell, tornou-se, de um momento para o outro, no livro mais vendido na Amazon. Talvez não seja uma surpresa.
Em "1984" encontram-se ecos do mundo de hoje: alguém nos está sempre a ver ou a escutar os outros, há guerras sem fim, o ódio e o medo cruzam-se numa espiral destrutiva, onde refugiados morrem no mar que funciona como um muro muito europeu. Em "1984" há um Ministério da Verdade, no mundo de Trump há "factos alternativos". O herói do livro de Orwell, Winston Smith sabe que o partido hegemónico disse para rejeitarmos a evidência que os olhos e os ouvidos nos transmitem. Nesse mundo há liberdade, mas para se dizer que dose dois fazem quatro. O governo define a sua realidade. E a de todos os que governa. Não deixa de ser curioso como um outro livro mais vendido neste momento é "As origens do totalitarismo" de Hannah Arendt.
Chegámos ao fim de um ciclo. Mas ainda não se percebe bem que mundo está a ser construído. Por um lado é evidente que a conjugação do nacionalismo económico com a desregulação dos mercados patrocinados por Trump e pelos seus mentores, a que se junta a tentativa de implosão dos pilares tradicionais da democracia (forte poder judicial e forte imprensa) tem uma lógica: está a jogar-se um novo estágio da luta entre o capitalismo de mercado e o capitalismo e Estado de que a Rússia e a China são símbolos maiores.
Por outro lado assiste-se a algo que a célebre capa da "Der Spiegel" (com Trump com uma espada na mão e a cabeça cortada da Estátua da Liberdade na outra) define: este é um presidente que não respeita as decisões judiciais, ou seja a divisão de poderes onde se sustenta o sistema democrático. Não há dúvidas: foi eleito por cidadãos que queriam castigar a política de Washington e que desejavam a eleição de um homem forte. Regressamos ao passado: "Queremos um Estado Forte!", dizia-se nos cartazes que apelavam ao voto na Constituição de 1933 em Portugal. O que se está a assistir é ao derrubamento do modelo político reinante no mundo ocidental desde há dois séculos, ligado a valores como a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Os EUA que eram o símbolo disso, o sonho do paraíso político na Terra segundo o legado de Tocqueville, estão a rechaçar o seu legado. Será o fim da política como a conhecíamos?
Num estimulante texto no "Times Litterary Supplement", Pankaj Mishra fala de uma nova era ideológica que chegou: a noção americana de que a modernidade era sinónimo do modelo dos EUA e de que o que funcionava no continente americano funcionava para todo o mundo, faliu. Durante anos a superioridade da sociedade e cultura americana, aliada as novas tecnologias fez com que a globalização parecesse infinita. E muito do trabalho de exportação desta "modernidade americana" e da sua ideologia de neoliberalismo foi feita por académicos e intelectuais formados nos EUA, que tinham ligações as elites dos seus países de origem.
Portugal sofreu com isso, como se viu no tempo da chegada da "troika". Só que o mundo real não era capaz de se adaptar aos modelos importados dos EUA, que ainda hoje por aí vagueiam como é visível nos "relatórios" das agências de "rating" ou nos documentos de organizações como o FMI, a OCDE ou a UE. Novas visões políticas estão na forja. Trump é um peão dessa mudança: busca uma nova pele para o capitalismo liberal fingindo ser a resposta aos deserdados da globalização. Mas o que propõe é um capitalismo sem fronteiras, como se John Wayne voltasse à Terra e tentasse conquistar novamente a última fronteira. Só que esta é hoje diferente.
Grande repórter
Fernando Sobral | fsobral@negocios.pt
09 de Fevereiro de 2017 às 19:31
Negócios
Em "1984" encontram-se ecos do mundo de hoje: alguém nos está sempre a ver ou a escutar os outros, há guerras sem fim, o ódio e o medo cruzam-se numa espiral destrutiva, onde refugiados morrem no mar que funciona como um muro muito europeu. Em "1984" há um Ministério da Verdade, no mundo de Trump há "factos alternativos". O herói do livro de Orwell, Winston Smith sabe que o partido hegemónico disse para rejeitarmos a evidência que os olhos e os ouvidos nos transmitem. Nesse mundo há liberdade, mas para se dizer que dose dois fazem quatro. O governo define a sua realidade. E a de todos os que governa. Não deixa de ser curioso como um outro livro mais vendido neste momento é "As origens do totalitarismo" de Hannah Arendt.
Chegámos ao fim de um ciclo. Mas ainda não se percebe bem que mundo está a ser construído. Por um lado é evidente que a conjugação do nacionalismo económico com a desregulação dos mercados patrocinados por Trump e pelos seus mentores, a que se junta a tentativa de implosão dos pilares tradicionais da democracia (forte poder judicial e forte imprensa) tem uma lógica: está a jogar-se um novo estágio da luta entre o capitalismo de mercado e o capitalismo e Estado de que a Rússia e a China são símbolos maiores.
Por outro lado assiste-se a algo que a célebre capa da "Der Spiegel" (com Trump com uma espada na mão e a cabeça cortada da Estátua da Liberdade na outra) define: este é um presidente que não respeita as decisões judiciais, ou seja a divisão de poderes onde se sustenta o sistema democrático. Não há dúvidas: foi eleito por cidadãos que queriam castigar a política de Washington e que desejavam a eleição de um homem forte. Regressamos ao passado: "Queremos um Estado Forte!", dizia-se nos cartazes que apelavam ao voto na Constituição de 1933 em Portugal. O que se está a assistir é ao derrubamento do modelo político reinante no mundo ocidental desde há dois séculos, ligado a valores como a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Os EUA que eram o símbolo disso, o sonho do paraíso político na Terra segundo o legado de Tocqueville, estão a rechaçar o seu legado. Será o fim da política como a conhecíamos?
Num estimulante texto no "Times Litterary Supplement", Pankaj Mishra fala de uma nova era ideológica que chegou: a noção americana de que a modernidade era sinónimo do modelo dos EUA e de que o que funcionava no continente americano funcionava para todo o mundo, faliu. Durante anos a superioridade da sociedade e cultura americana, aliada as novas tecnologias fez com que a globalização parecesse infinita. E muito do trabalho de exportação desta "modernidade americana" e da sua ideologia de neoliberalismo foi feita por académicos e intelectuais formados nos EUA, que tinham ligações as elites dos seus países de origem.
Portugal sofreu com isso, como se viu no tempo da chegada da "troika". Só que o mundo real não era capaz de se adaptar aos modelos importados dos EUA, que ainda hoje por aí vagueiam como é visível nos "relatórios" das agências de "rating" ou nos documentos de organizações como o FMI, a OCDE ou a UE. Novas visões políticas estão na forja. Trump é um peão dessa mudança: busca uma nova pele para o capitalismo liberal fingindo ser a resposta aos deserdados da globalização. Mas o que propõe é um capitalismo sem fronteiras, como se John Wayne voltasse à Terra e tentasse conquistar novamente a última fronteira. Só que esta é hoje diferente.
Grande repórter
Fernando Sobral | fsobral@negocios.pt
09 de Fevereiro de 2017 às 19:31
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