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Mensagem por Admin Sáb Fev 18, 2017 11:33 am

Uma pessoa lê um jornal online e escreve a primeira coisa que lhe vem à cabeça. Parvoíces, boçalidades e até - e é isso que justifica a publicação - ideias inteligentes

O Alfa Pendular estava parado entre estações e só minutos depois percebemos que havia um corpo na linha, a umas centenas de metros. Não entro em pormenores sobre o que vi, o que vimos os que ali passámos no momento, atraídos pela irremediável curiosidade da tragédia. Nasceu entre nós, primeiro na estação, depois no comboio em que seguíamos, uma cumplicidade estranha cheia de silêncio, tristeza e compaixão. Compaixão: esse impulso de nos colocarmos na pele do outro e sofrermos com ele.

A notícia apareceu no jornal, na versão online. "Uma pessoa colhida pelo Alfa Pendular em Lisboa." Os pormenores conhecidos eram muito poucos: era um homem, os bombeiros estavam no local, o movimento ferroviário ficou temporariamente afetado. Nada mais, nem havia nada mais para dizer no momento.

Então os comentários começaram, essa doença que atinge súbita e irracionalmente alguns leitores. Que estava errado, porque a pessoa não tinha sido colhida pelo comboio, tinha sido ela a colher o comboio em movimento. Que o Alfa Pendular não apita. "Estragou muito o Alfa?"

Numa tarde, era eu uma criança, estava num daqueles pavilhões em Algés que eram belos cafés à antiga onde se passava a tarde na conversa e se encontrava os amigos, na Marginal, quando um comboio parou de repente, com grande barulho de metal. O alvoroço começou, havia alguém caído na linha. O meu avô levantou-se e correu para lá, porque era médico e podia ser necessário. Mas as toneladas de um comboio em movimento são uma força implacável. Não havia nada a fazer. Ficámos perturbados, tal como aconteceu há dias no meu caminho para o trabalho. Sentimos o que é normal sentir: uma pessoa morrera e alguém ia sofrer terrivelmente essa perda.

Antigamente escrevia-se cartas, postais ilustrados com paisagens dos sítios visitados, um postal branco timbrado para dar notícias de longe. Aerogramas, mas isso é outra história. Refletíamos sobre o que íamos escrever, fazíamos até rascunhos para a mensagem não ficar suja de correções. Sabíamos que as palavras escritas ficavam para sempre, testemunhavam o que sentíamos ou o que queríamos transmitir. Aos jornais chegavam cartas de leitores e algumas eram publicadas, quando consideradas pertinentes (em caso de falta de material, havia cartas escritas no próprio jornal para ocupar o espaço, pequeno pecado do universo da imprensa sem consequências de maior).

É um facto estudado que escrevemos com menos filtros quando usamos o e-mail, o Facebook, o Twitter ou outra ferramenta eletrónica do que quando o fazemos num texto, à mão ou datilografado, que vemos impresso e temos consciência nítida de que vai persistir. Há um imediatismo que nos impele a carregar na tecla send sem, como é costume dizer, dormir sobre o assunto. Na maior parte das vezes, isso é um gesto sem qualquer consequência negativa.

Toda esta semana girou em Portugal em torno de sms e e-mails, debatidos e comentados até à exaustão, mas não é desses que falo agora. Os seus conteúdos terão sido devidamente pensados e medidos, pelo menos espero eu que sim, e as consequências estão à vista. O Twitter e o Facebook têm estado aliás no centro das atenções em todo o mundo porque podem ser - têm sido - formas de intervenção política, até mesmo de governar e de combater governações.

Agora é tudo muito imediato: uma pessoa lê um jornal online e escreve a primeira coisa que lhe passa pela cabeça. Parvoíces, boçalidades e até, e é isso que justifica a publicação, ideias inteligentes - concordando ou discordando, mas acrescentando algo que nos faz pensar e pode abrir novas perspetivas. "Estragou muito o Alfa?", não faz parte desta última coleção. Uma pessoa morreu de uma forma violentíssima e alguém acha que é engraçado perguntar se a pintura do comboio ficou riscada.

Caro leitor, caros leitores: não sei se o comboio ficou amarrotado nem que consequências a paragem forçada teve para os passageiros do Alfa. Mas o seu comentário, os vossos comentários, incomodaram-me e muito, incomodaram-me logo que li e continuam a irritar-me. Não sei quem é, quem são, nem o que faz, o que fazem na vida, mas não é demasiado imaginar que terá, terão, família e amigos.

Pare um pouco para pensar antes de escrever comentários idiotas que não gostaria de ler se a situação de alguma forma se aplicasse a si. Uma graçola estúpida pode ser sentida como uma enorme crueldade e magoar seriamente.

Os comentários à notícia foram todos apagados, como deve acontecer quando o limite da decência é ultrapassado. É uma questão de bom senso, de respeito. A memória de um homem é sagrada para a sua família e os seus amigos, é sagrada para todos, e um jornal não pode colaborar nem ser condescendente com atitudes destas. Não pode acentuar ainda mais a dor de uma perda que já de si é irreparável.

18 DE FEVEREIRO DE 2017
00:00
Ana Sousa Dias
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