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DIREITOS HUMANOS: Direitos universais? Quando o relativismo é uma forma de absolutismo.
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DIREITOS HUMANOS: Direitos universais? Quando o relativismo é uma forma de absolutismo.
O universalismo dos direitos humanos não incita os seres humanos a abdicarem da sua cultura. Diremos mais: a diversidade cultural é enriquecedora para a concetualização dos direitos humanos universais
Basta folhear as constituições dos Estados, um pouco por todo o Mundo, para verificarmos que existe uma enorme diversidade quantitativa e qualitativa no catálogo de direitos fundamentais. Se alguns Estados optam por catálogos prolixos e repletos de promessas, de que são exemplo as Constituições brasileira, colombiana ou argentina, outros Estados, tal como os Estados Unidos da América, a Áustria ou a Bélgica, possuem constituições frugais e minimalistas. Em termos qualitativos, enquanto a maioria dos Estados assume um compromisso genuíno na proteção dos seus direitos fundamentais, outros Estados consagram-nos apenas como declarações poéticas, sem os dotar de efetividade prática. É o caso da Constituição da Coreia do Norte, que funcionaliza e instrumentaliza a dignidade dos seus cidadãos aos padrões “socialistas” de vida.
Nas últimas décadas, o desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos e de modelos constitucionais supraestaduais fez cair por terra o paradigma vestefaliano de soberania absoluta dos Estados. Com efeito, a positivação de direitos humanos em normas universais, tais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, ou a criação de um Tribunal Penal Internacional e de outras jurisdições de alcance regional, desafiam o equilíbrio entre a proteção dos direitos humanos e a soberania estatal.
Será que poderemos continuar a falar em universalidade dos direitos humanos, isto é, em direitos comuns a todas as pessoas e a todos os lugares? Não serão estes direitos humanos universais, pelo contrário, uma intolerável intromissão na soberania dos Estados? Não dependerão os direitos humanos de um contexto cultural específico, perdendo, por isso, o seu caráter geral?
A tese do relativismo dos direitos humanos parte de um raciocínio que cria alguma empatia social. A principal objeção filosófica ao universalismo é a ideia de que, se a cultura não é universal, então os direitos também não o poderão ser. Basta contrapormos a cultura ocidental, de génese antropocêntrica (primazia da pessoa) à cultura asiática ou africana, que adere a ideologias comunitaristas, para atestarmos um mundo inteiro de diferenças na perspetivação dos direitos e deveres fundamentais.
Os relativistas argumentam que a linguagem dos direitos humanos mais não seria do que uma imposição de um modelo civilizacional – o modelo liberal e ocidental (mais concretamente e para quem aprecia teorias de conspiração, a visão da política externa norte-americana e das principais potências europeias) aos restantes povos. Portanto, identificar-se-ia aqui uma lógica arrogante e neocolonialista escondida num suposto universalismo, que nada mais seria do que um unilateralismo, através da imposição de uma única verdade. Mas será mesmo assim?
Nada mais errado. O universalismo dos direitos humanos não incita os seres humanos a abdicarem da sua cultura. Diremos mais: a diversidade cultural é enriquecedora para a concetualização dos direitos humanos universais. A existência de direitos humanos universais deixa espaço considerável para particularidades nacionais ou regionais e para outras formas de diversidade.
Por tais razões, a universalidade não é sinónimo de uniformidade. Defender a universalidade dos direitos humanos não terá necessariamente de ser um exclusivo daqueles que acreditam na existência de um Direito Natural e que, por isso, sustentam ética, axiológica ou filosoficamente a pertinência de uma fórmula universal que transcenda todas as diferenças culturais, religiosas ou mundividenciais dos povos.
Não se tratará também de defender uma regulação exaustiva de todos os direitos (e dimensões de direitos) possíveis e imagináveis. Pelo contrário, na definição daquilo que é universal e que nos une enquanto seres humanos, o freio deverá ser o respeito pelo princípio da essencialidade. Nestes termos, os Estados acordam entre si um último denominador comum de direitos e liberdades, de tal forma conexionados com a dignidade da pessoa humana, que deverão ser sempre salvaguardados, independentemente da cultura do Estado ou da maioria política do momento. Daí a sabedoria de René Cassin, Prémio Nobel da Paz, quando defendia uma noção de dignidade da pessoa humana numa “dimensão universal”.
O principal risco de cedermos à retórica do “tudo é relativo” é cairmos no absolutismo da relatividade. Então, se tudo é relativo, daremos de bandeja aos Estados que perpetram violações de direitos humanos uma justificação intelectual para aquilo que é indefensável, por instrumentalizar a pessoa humana. Em boa verdade, se tudo é relativo, teremos de aceitar que os Estados se escudem em justificações, tais como o “relativismo cultural”, os “assuntos internos do Estado” ou a sua “identidade cultural e nacional”, para conservarem tradições grosseiramente violadoras da dignidade da pessoa humana. Eis uma enorme falácia do mundo contemporâneo e que importa desmascarar: o sentido pejorativo que assumiu a fórmula “universalismo dos direitos humanos”.
Ainda que tal possa parecer contraditório, tantas vezes será a universalidade que nos permitirá viver a diversidade e o multiculturalismo, ao postular pelo igual respeito pelas diversas identidades culturais. Paradoxo? Nem por isso. É em nome da universalidade – e não do relativismo dos direitos – que poderá atribuir-se o direito a uma jovem de, no exercício da sua autodeterminação pessoal, não sofrer a “tradição” cultural da mutilação sexual feminina; ou que a mulher terá o direito a não ser discriminada em relação ao homem, apesar de leituras religiosas extremistas nesse sentido; ou que uma menor de idade poderá recusar contrair matrimónio forçado, ainda que essa seja a tradição no local onde habita; ou que o homossexual poderá exprimir a sua sexualidade, mesmo que isso ofenda uma determinada conceção comunitária de moralidade; ou que o cidadão poderá usufruir da sua liberdade de expressão, ainda que o seu Estado não permita o pluralismo partidário; ou que alguém poderá ter o número de filhos que bem entender, mesmo que isso vá contra a ideologia política de planeamento familiar do seu Estado.
Este elenco de exemplos pretende chamar a atenção para algo bem simples: a vida humana não é descartável, pelo que não poderá ser funcionalizada a um Governo, a uma tradição ou a uma religião, em nome de uma qualquer ideia de relativismo. A linguagem dos direitos humanos universais continua a ser o idioma adequado na defesa das particularidades de todos e de cada um.
Professora de Direito Constitucional na Universidade Católica Portuguesa
Catarina Santos Botelho
29/3/2017, 8:30
Observador
Basta folhear as constituições dos Estados, um pouco por todo o Mundo, para verificarmos que existe uma enorme diversidade quantitativa e qualitativa no catálogo de direitos fundamentais. Se alguns Estados optam por catálogos prolixos e repletos de promessas, de que são exemplo as Constituições brasileira, colombiana ou argentina, outros Estados, tal como os Estados Unidos da América, a Áustria ou a Bélgica, possuem constituições frugais e minimalistas. Em termos qualitativos, enquanto a maioria dos Estados assume um compromisso genuíno na proteção dos seus direitos fundamentais, outros Estados consagram-nos apenas como declarações poéticas, sem os dotar de efetividade prática. É o caso da Constituição da Coreia do Norte, que funcionaliza e instrumentaliza a dignidade dos seus cidadãos aos padrões “socialistas” de vida.
Nas últimas décadas, o desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos e de modelos constitucionais supraestaduais fez cair por terra o paradigma vestefaliano de soberania absoluta dos Estados. Com efeito, a positivação de direitos humanos em normas universais, tais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, ou a criação de um Tribunal Penal Internacional e de outras jurisdições de alcance regional, desafiam o equilíbrio entre a proteção dos direitos humanos e a soberania estatal.
Será que poderemos continuar a falar em universalidade dos direitos humanos, isto é, em direitos comuns a todas as pessoas e a todos os lugares? Não serão estes direitos humanos universais, pelo contrário, uma intolerável intromissão na soberania dos Estados? Não dependerão os direitos humanos de um contexto cultural específico, perdendo, por isso, o seu caráter geral?
A tese do relativismo dos direitos humanos parte de um raciocínio que cria alguma empatia social. A principal objeção filosófica ao universalismo é a ideia de que, se a cultura não é universal, então os direitos também não o poderão ser. Basta contrapormos a cultura ocidental, de génese antropocêntrica (primazia da pessoa) à cultura asiática ou africana, que adere a ideologias comunitaristas, para atestarmos um mundo inteiro de diferenças na perspetivação dos direitos e deveres fundamentais.
Os relativistas argumentam que a linguagem dos direitos humanos mais não seria do que uma imposição de um modelo civilizacional – o modelo liberal e ocidental (mais concretamente e para quem aprecia teorias de conspiração, a visão da política externa norte-americana e das principais potências europeias) aos restantes povos. Portanto, identificar-se-ia aqui uma lógica arrogante e neocolonialista escondida num suposto universalismo, que nada mais seria do que um unilateralismo, através da imposição de uma única verdade. Mas será mesmo assim?
Nada mais errado. O universalismo dos direitos humanos não incita os seres humanos a abdicarem da sua cultura. Diremos mais: a diversidade cultural é enriquecedora para a concetualização dos direitos humanos universais. A existência de direitos humanos universais deixa espaço considerável para particularidades nacionais ou regionais e para outras formas de diversidade.
Por tais razões, a universalidade não é sinónimo de uniformidade. Defender a universalidade dos direitos humanos não terá necessariamente de ser um exclusivo daqueles que acreditam na existência de um Direito Natural e que, por isso, sustentam ética, axiológica ou filosoficamente a pertinência de uma fórmula universal que transcenda todas as diferenças culturais, religiosas ou mundividenciais dos povos.
Não se tratará também de defender uma regulação exaustiva de todos os direitos (e dimensões de direitos) possíveis e imagináveis. Pelo contrário, na definição daquilo que é universal e que nos une enquanto seres humanos, o freio deverá ser o respeito pelo princípio da essencialidade. Nestes termos, os Estados acordam entre si um último denominador comum de direitos e liberdades, de tal forma conexionados com a dignidade da pessoa humana, que deverão ser sempre salvaguardados, independentemente da cultura do Estado ou da maioria política do momento. Daí a sabedoria de René Cassin, Prémio Nobel da Paz, quando defendia uma noção de dignidade da pessoa humana numa “dimensão universal”.
O principal risco de cedermos à retórica do “tudo é relativo” é cairmos no absolutismo da relatividade. Então, se tudo é relativo, daremos de bandeja aos Estados que perpetram violações de direitos humanos uma justificação intelectual para aquilo que é indefensável, por instrumentalizar a pessoa humana. Em boa verdade, se tudo é relativo, teremos de aceitar que os Estados se escudem em justificações, tais como o “relativismo cultural”, os “assuntos internos do Estado” ou a sua “identidade cultural e nacional”, para conservarem tradições grosseiramente violadoras da dignidade da pessoa humana. Eis uma enorme falácia do mundo contemporâneo e que importa desmascarar: o sentido pejorativo que assumiu a fórmula “universalismo dos direitos humanos”.
Ainda que tal possa parecer contraditório, tantas vezes será a universalidade que nos permitirá viver a diversidade e o multiculturalismo, ao postular pelo igual respeito pelas diversas identidades culturais. Paradoxo? Nem por isso. É em nome da universalidade – e não do relativismo dos direitos – que poderá atribuir-se o direito a uma jovem de, no exercício da sua autodeterminação pessoal, não sofrer a “tradição” cultural da mutilação sexual feminina; ou que a mulher terá o direito a não ser discriminada em relação ao homem, apesar de leituras religiosas extremistas nesse sentido; ou que uma menor de idade poderá recusar contrair matrimónio forçado, ainda que essa seja a tradição no local onde habita; ou que o homossexual poderá exprimir a sua sexualidade, mesmo que isso ofenda uma determinada conceção comunitária de moralidade; ou que o cidadão poderá usufruir da sua liberdade de expressão, ainda que o seu Estado não permita o pluralismo partidário; ou que alguém poderá ter o número de filhos que bem entender, mesmo que isso vá contra a ideologia política de planeamento familiar do seu Estado.
Este elenco de exemplos pretende chamar a atenção para algo bem simples: a vida humana não é descartável, pelo que não poderá ser funcionalizada a um Governo, a uma tradição ou a uma religião, em nome de uma qualquer ideia de relativismo. A linguagem dos direitos humanos universais continua a ser o idioma adequado na defesa das particularidades de todos e de cada um.
Professora de Direito Constitucional na Universidade Católica Portuguesa
Catarina Santos Botelho
29/3/2017, 8:30
Observador
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