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Um conto de duas verdades
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Um conto de duas verdades
Todo o político é um mentiroso. Se não fosse mentiroso era cientista. Ou conservador do registo predial. As relações entre a política e a realidade são complicadas. Primeiro, porque quem faz política quer fazer uma nova realidade, depois porque quem quer fazer uma nova realidade não leva a sério a realidade que existe, e por fim, porque essa pessoa que quer uma nova realidade porque não respeita a realidade que está tem de ter o apoio de um conjunto de pessoas. E como o povo não arrisca uma realidade que não conhece (está-se tão bem aqui no serviço), o político não diz bem ao que vem. Isto que acabei de dizer é mais ou menos inspirado no texto "Lying in Politics", de Hannah Arendt, de 1971. Esta mentira, ou ocultação parcial, ou reserva mental, faz parte da política, como faz parte do amor, ou da família, e não é um mal em si, é o que é. A questão é complexa, eu sei.
Tudo isto vem a propósito de Mario Cuomo, antigo governador do Estado de Nova Iorque, que morreu na semana passada. Mario Cuomo é dos políticos mais fascinantes de sempre: culto, inteligente, sabedor, exemplo do sonho americano, duro, forte, enigmático. Cuomo era católico. Um político católico no verdadeiro sentido da palavra: alguém que procura transportar para a vida pública o exemplo da vida pública de Cristo discernindo as suas decisões com base na Bíblia. Mas também era um liberal que sabia a diferença entre viver a sua verdade e impor a sua verdade. E é aqui que a porta torce o rabo quando se misturam parlamentos com paramentos. Dois exemplos.
Uma das marcas cristãs de Cuomo, para alguns verdadeiras chagas, era a sua oposição feroz à pena de morte, numa altura em que a grande maioria dos americanos era a favor de fritar condenados. Para Cuomo, o Estado não podia em qualquer circunstância matar, matar de nada servia, não trazia os mortos de volta. Li em tempos que certo dia, tinha acabado de prometer outra vez aos seus assessores que não faria declarações em público contra a pena de morte, quando foi abordado por jornalistas que lhe perguntaram sobre as penalidades nos transportes públicos em Nova Iorque. Não percebendo a pergunta, ou fingindo não perceber, terá dito: "Se me pergunta pela pena de morte, sou contra."
Cuomo pensava pela sua cabeça, queria o que queria e não o que os outros queriam que quisesse. Nunca quis ser candidato à Presidência, um dos grandes mistérios da política americana, e recusou o convite para o Supreme Court feito por Bill Clinton. Voltando ao texto de Hannah Arendt, que é bem provável que tivesse lido, talvez Cuomo tenha recusado ser presidente dos Estados Unidos por não querer ser o homem com menos poder do mundo, como ela diz, um pobre ser que recebe toda a realidade filtrada por camadas e camadas sobrepostas de assessores e especialistas.
Cuomo foi um católico verdadeiro e foi um político liberal verdadeiro, para muitos coisa contraditória. Defendeu a despenalização do aborto. Condenando o aborto em termos morais, entendia que não tinha sido eleito para sujeitar os outros à sua moralidade, sobretudo os mais desfavorecidos, sempre os mais flagelados pelo aborto clandestino. Isto valeu-lhe forte oposição de muitos setores da Igreja católica, e valeu-lhe também ser um dos exemplos de verdadeiro liberalismo polí-tico escolhidos pelo filósofo John Rawls.
Cuomo morreu faz hoje oito dias, horas depois de o seu filho tomar posse no segundo mandato como governador de Nova Iorque, cargo que tinha ocupado entre 1983 e 1994. No funeral, na mais importante igreja jesuíta de Nova Iorque, o sacerdote elogiou a filosofia de Cuomo perante a vida (estaria a pensar na pena de morte e no aborto? Ou apenas naquela?) e o filho falou durante quarenta minutos, emocionado sobre o pai. Cuomo, o pai, tinha feito um dos mais belos discursos políticos de sempre. Em 1984, Reagan presidente gabava uma América próspera, como uma "shining city on a hill". Cuomo subiu ao palco do congresso democrata para falar da outra cidade, a cidade que não brilhava, que cheirava mal, a cidade baça dos pobres, dos desfavorecidos, dos latinos e dos negros. O tom, a cadência, as palavras. O trágico é que ambas as cidades eram verdade. E ambas eram mentira. E ambos sabiam isso. O que os distinguia era em qual das cidades, em qual das verdades, estava o seu coração.
Este texto foi originariamente publicado em 8 de janeiro de 2015. Republica-se porque um corte na linha de comboio me impediu de regressar a tempo a Lisboa vindo de Coimbra, onde, no encontro Fé e Cultura, falei, precisamente, sobre a difícil relação entre verdade e mentira.
02 DE ABRIL DE 2017
00:49
João Taborda da Gama
Diário de Notícias
Tudo isto vem a propósito de Mario Cuomo, antigo governador do Estado de Nova Iorque, que morreu na semana passada. Mario Cuomo é dos políticos mais fascinantes de sempre: culto, inteligente, sabedor, exemplo do sonho americano, duro, forte, enigmático. Cuomo era católico. Um político católico no verdadeiro sentido da palavra: alguém que procura transportar para a vida pública o exemplo da vida pública de Cristo discernindo as suas decisões com base na Bíblia. Mas também era um liberal que sabia a diferença entre viver a sua verdade e impor a sua verdade. E é aqui que a porta torce o rabo quando se misturam parlamentos com paramentos. Dois exemplos.
Uma das marcas cristãs de Cuomo, para alguns verdadeiras chagas, era a sua oposição feroz à pena de morte, numa altura em que a grande maioria dos americanos era a favor de fritar condenados. Para Cuomo, o Estado não podia em qualquer circunstância matar, matar de nada servia, não trazia os mortos de volta. Li em tempos que certo dia, tinha acabado de prometer outra vez aos seus assessores que não faria declarações em público contra a pena de morte, quando foi abordado por jornalistas que lhe perguntaram sobre as penalidades nos transportes públicos em Nova Iorque. Não percebendo a pergunta, ou fingindo não perceber, terá dito: "Se me pergunta pela pena de morte, sou contra."
Cuomo pensava pela sua cabeça, queria o que queria e não o que os outros queriam que quisesse. Nunca quis ser candidato à Presidência, um dos grandes mistérios da política americana, e recusou o convite para o Supreme Court feito por Bill Clinton. Voltando ao texto de Hannah Arendt, que é bem provável que tivesse lido, talvez Cuomo tenha recusado ser presidente dos Estados Unidos por não querer ser o homem com menos poder do mundo, como ela diz, um pobre ser que recebe toda a realidade filtrada por camadas e camadas sobrepostas de assessores e especialistas.
Cuomo foi um católico verdadeiro e foi um político liberal verdadeiro, para muitos coisa contraditória. Defendeu a despenalização do aborto. Condenando o aborto em termos morais, entendia que não tinha sido eleito para sujeitar os outros à sua moralidade, sobretudo os mais desfavorecidos, sempre os mais flagelados pelo aborto clandestino. Isto valeu-lhe forte oposição de muitos setores da Igreja católica, e valeu-lhe também ser um dos exemplos de verdadeiro liberalismo polí-tico escolhidos pelo filósofo John Rawls.
Cuomo morreu faz hoje oito dias, horas depois de o seu filho tomar posse no segundo mandato como governador de Nova Iorque, cargo que tinha ocupado entre 1983 e 1994. No funeral, na mais importante igreja jesuíta de Nova Iorque, o sacerdote elogiou a filosofia de Cuomo perante a vida (estaria a pensar na pena de morte e no aborto? Ou apenas naquela?) e o filho falou durante quarenta minutos, emocionado sobre o pai. Cuomo, o pai, tinha feito um dos mais belos discursos políticos de sempre. Em 1984, Reagan presidente gabava uma América próspera, como uma "shining city on a hill". Cuomo subiu ao palco do congresso democrata para falar da outra cidade, a cidade que não brilhava, que cheirava mal, a cidade baça dos pobres, dos desfavorecidos, dos latinos e dos negros. O tom, a cadência, as palavras. O trágico é que ambas as cidades eram verdade. E ambas eram mentira. E ambos sabiam isso. O que os distinguia era em qual das cidades, em qual das verdades, estava o seu coração.
Este texto foi originariamente publicado em 8 de janeiro de 2015. Republica-se porque um corte na linha de comboio me impediu de regressar a tempo a Lisboa vindo de Coimbra, onde, no encontro Fé e Cultura, falei, precisamente, sobre a difícil relação entre verdade e mentira.
02 DE ABRIL DE 2017
00:49
João Taborda da Gama
Diário de Notícias
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