O Estado e a corrupção

A corrupção parece estar em evidência em muitas partes do mundo, é noticiada mas não se analisa o quadro político e social que favorece o seu desenvolvimento

Fora da nossa terra, tendemos a olhar para certos aspectos da vida de uma maneira diferente. Quando no país, por muito que nos informemos sobre o que se passa além-fronteiras - e, hoje, isso é relativamente fácil, ainda que nem sempre fiável - continuamos, por norma, a ler a realidade sobretudo do ponto de vista dos interesses e problemas nacionais.

Só quando fora, obrigados a outras leituras e conversas, nos apercebemos quão estreita é, por norma, essa perspectiva.

2. Sem acesso a jornais nacionais em papel - modalidade que continuo a apreciar, sobretudo quando, de manhã, viajo de autocarro ou me sento para tomar um café - comecei a ler "El País".

Porquê este e não um jornal francês ou inglês?

Por causa do espanhol, de que gosto e que me distrai da língua de trabalho - o inglês -, mas, especialmente, porque posso comungar de uma cultura que sempre me foi próxima.

Nestes últimos dias, porém, «El País» desassossegou-me bastante: fez-me mergulhar, abruptamente, no vasto e agitado mar da corrupção que parece grassar, agora sem disfarces, no país vizinho.

A sua leitura não fornece, nestes dias, apenas o panorama aterrador do que se passa em Espanha.

Talvez para amenizar o desconforto e a revolta que os seus leitores espanhóis, por certo, sentem quando percorrem as desenvolvidas notícias nacionais, «El País» vem relatando, com igual profundidade, os muitos casos de corrupção que se vão desvendando na Europa, na América Latina, na África e mesmo na Ásia.

A corrupção parece pois estar em evidência em muitas partes do mundo.

A maior parte das abordagens que, no "El País", os correspondentes ou articulistas de diversas origens e nacionalidades fazem deste fenómeno centram-se, curiosamente e quase sempre, numa mesma e limitada perspectiva jornalística.

Descreve-se aí as detenções, as apreensões de dinheiro sujo, os nomes e cargos políticos dos imputados e os transtornos que tais investigações trazem para os partidos do poder ou da oposição.

Tudo isso é importante. É mesmo essencial que se noticie e se analise juridicamente os casos e a sua sustentabilidade, que, enfim, se saliente o esforço, os riscos e perseguições que sempre sofrem os polícias e os magistrados que os investigam.

Um aspecto, todavia, fica quase sempre por estudar: o do quadro económico, político e social que parece propiciar o grau de corrupção que grassa pelo mundo.

Pouco se reflecte, de facto, sobre o que gera realmente esse fenómeno omnipresente e global.

3. Elogia-se, frequentemente, as vantagens da simplificação dos negócios e das práticas burocráticas que favorecem a competitividade: e é verdade que elas têm, felizmente, esse efeito.

Discute-se o aligeiramento e o peso financeiro de uma administração pública profissional, mesmo que honrada, tecnicamente prestigiada e independente: e, é certo, ela custa dinheiro e sai cara aos contribuintes.

E o que se diz dos efeitos que a renúncia a tais exigências produz no controlo dos negócios públicos e privados e, sobretudo, dos cada vez mais frequentes negócios público-privados?

E quem estuda e quantifica os custos da corrupção que daí resultam para o erário público?

E quem se interroga sobre a perniciosa influência da corrupção sobre o estado, sobre a sua actual estrutura e dinâmica, sobre os fins e os interesses que ele, legitimamente, deve prosseguir?

Ou será que, afinal, consideramos já a corrupção como um facto natural e inerente ao nosso modelo social, cujos limites nos compete apenas controlar?

Jurista e presidente da MEDEL

Escreve à terça-feira

Por António Cluny
publicado em 4 Nov 2014 - 05:00