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Corrupção dourada

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Mensagem por Admin Qua Nov 19, 2014 11:30 am

Corrupção dourada Alexandre-abreu-0b3a

Um Governo que promove a corrupção geral dos valores não tem o direito de se mostrar surpreendido com a corrupção em sentido estrito.



Desde a sua introdução em 2012 que os vistos gold me repugnam. Conceder autorizações de residência a troco de dinheiro, em vez de fazê-lo com base em critérios de universalidade, solidariedade e reciprocidade, é da imoralidade mais rasteira - e é bem representativo dos valores de um Governo para o qual tudo se vende, especialmente se se tratar de empresas públicas, e para o qual tudo se compra,  incluindo a integridade dos cidadãos .

Neste caso concreto, o espírito de mercantilização sem limites que encontrou nos vistos gold mais um dos seus avatares foi antecipado nalguns anos por Gary Becker, economista norte-americano recém-falecido que, em termos intelectuais e políticos, é com certeza uma das figuras mais sinistras da história do pensamento económico. Becker celebrizou-se pela aplicação dos princípios da análise microeconómica neoclássica (individualismo e dedutivismo metodológicos, racionalidade optimizadora como axioma) a interacções sociais anteriormente consideradas estranhas à análise económica (em virtude de não serem conceptualizadas como mercados, sendo a economia vista como a ciência das interacções mercantis por excelência).

Becker foi um pioneiro na análise económica da família, do casamento, do crime, da discriminação racial e de muitos outros fenómenos e interacções sociais como sendo escolhas optimizadoras tomadas por indivíduos racionais e auto-interessados: pratico o crime se o desconforto da pena, ponderado pela probabilidade de ser apanhado, exceder a utilidade do que tiver a ganhar com o crime; decido casar-me se considerar que os ganhos de utilidade que advêm dos bens produzidos pelo agregado familiar, os quais incluem crianças, prestígio, companheirismo, amor, saúde acrescida, etc, excedem a "desutilidade" associada ao casamento.

Como teoria, isto está algures entre o vazio e o erro. Vazio, se tivermos em conta que se limita a enunciar, de forma ligeiramente mais sofisticada, uma banalidade óbvia: que, de uma forma geral, praticamos as acções e tomamos as decisões que consideramos preferíveis. Erro, na medida em que remete a explicação de fenómenos intrinsecamente sociais para a esfera estritamente individual, não permitindo apreender os determinantes verdadeiramente relevantes dos fenómenos em causa:. Porque é que o casamento tem umas características numas sociedades e outras caracteristicas noutras sociedades? Porque é que certas comunidades ou sociedades são mais violentas, ou apresentam níveis de criminalidade mais elevados? O que é que explica as diferentes configurações do parentesco e as diferentes obrigações familiares em diferentes contextos culturais? A ciência económica de tudo, levada ao paroxismo por Becker, a nada disto dá resposta. É, na melhor das hipóteses, uma ciência económica de nada, uma anedota de ciência.

Mas na pior das hipóteses é algo bem mais perigoso, pois a crescente expansão do objecto da economia axiomática-dedutiva ao longo das últimas décadas, num programa de investigação que pretende ocupar o espaço das outras ciências sociais - processo por vezes apelidado de " imperialismo da Economia " - não é isenta de uma dimensão ética e moral. Num primeiro momento, apresenta-se as relações sociais como se fossem relações mercantis (uma metáfora); num segundo momento, apresenta-se essas relações sociais como sendo relações mercantis (um juízo de facto); num terceiro momento, apresenta-se essas relações sociais como devendo ser relações mercantis (um juízo normativo), em virtude da putativa superioridade moral intrínseca das relações mercantis, elevadas a tipo-ideal da eficiência, por sua vez elevada a valor supremo.

Não é por isso surpreendente que Becker e os seus correligionários não se tenham limitado a elaborar modelos das relações sociais, ou a pretender explicar essas relações sociais. Como seria de esperar, foram sempre lestos a dar o passo seguinte em direcção à prescrição normativa: "transforme-se tudo em mercado". No caso da regulação dos fluxos migratórios, foi o próprio Becker quem o fez  através de uma comunicação em 2010 ao Institute of Economic Affairs , em Londres, no qual recomendou a adopção de princípios económicos na atribuição de vistos - e em particular a criação de leilões de vistos ou a venda dos mesmos ao preço que limite a procura ao nível desejado.

Como se vê, portanto, os vistos gold têm na sua genealogia ideológica toda uma linhagem de imoralidade e venalidade. É o reino da mercantilização absoluta, onde tudo se compra e tudo se vende. Um reino onde não há cidadãos iguais perante a lei ou seres humanos iguais na sua humanidade - apenas consumidores e produtores iguais perante o mercado na desigualdade da sua capacidade económica.

Assim, bem pode o Ministro Poiares Maduro, na sua falsa ingenuidade, querer afastar qualquer relação entre a imoralidade dos casos criminais de corrupção agora identificados e a imoralidade mais ampla dos vistos gold e da venalidade insidiosa que este Governo transmite a tudo em que toca.

Mas quando, cada vez mais, tudo se compra e tudo se vende - da educação à saúde, das autorizações de residência à cidadania fiscal -, porque não há-de vender-se também a integridade?


Qual o espanto com a cada vez maior prevalência da corrupção em sentido estrito numa sociedade em que a corrupção dos valores em sentido lato encontra no Governo o seu mais entusiástico promotor?

Alexandre Abreu |
7:00 Quarta feira, 19 de novembro de 2014
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