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FUTURO: Fragilidades da democracia capitalista
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FUTURO: Fragilidades da democracia capitalista
Hoje em dia uma Democracia que não dá dinheiro não presta. E um capitalismo que não gera a prosperidade geral apenas serve os “ricos”. Mas se é assim, que futuro que teremos pela frente?
Estaremos perante uma nova deslegitimação da democracia capitalista?
As sequelas a Iª Grande Guerra, um episódio de barbaridade, violência e sofrimento como nunca houvera, abriram caminho à rejeição do clássico “laissez- faire” e da não menos clássica democracia liberal assente na elegibilidade do Poder, nos partidos e no Parlamento, dois sistemas – económico e político – ‘grosso modo’ historicamente geminados. Sobre as ruínas materiais da Guerra ergueu-se uma ciclópica crise económica, e, sobre as ruínas ideológicas, uma dramática crise política exemplificada pelo espectáculo caótico da República de Weimar. Em resultado da primeira, perdeu-se a crença na capacidade do liberalismo económico para superar a desolada miséria que cobriu a Europa, e em resultado da segunda nasceu um fundo cepticismo sobre a capacidade da democracia parlamentar para gerar a ordem no meio do caos político que se instalou.
As sequelas da Guerra despertaram angústias existenciais a respeito do destino individual e colectivo. As fundações normativas da Democracia, de carácter essencialmente “racional-legal”, não constituíam inspiração satisfatória para restituir um sentido de vida a quem se perdera nos escombros morais e éticos do pós-guerra. Os fascismos e totalitarismos instalaram-se neste vazio. Preencheram-no com um nacionalismo estridente que galvanizou as massas, e adoptaram uma rigorosa intervenção económica do Estado que limitou ou suprimiu os desmandos do mercado livre. O lançamento de grandes obras públicas, o proteccionismo e o dirigismo económico do Estado, permitiram ir suprindo gradualmente o enorme desemprego causado pela devastação da Guerra. O keynesianismo começou na prática a ser aplicado ainda antes de Keynes acabar de o explicar.
Não era de esquerda nem de direita. Nos EUA, o «New Deal» de Franklim Roosevelt já antecipara na prática as teorias económicas de John Maynard Keynes; Getúlio Vargas, no Brasil, foi ainda mais precoce, iniciando a experiência a partir de 1930; na Alemanha nazi, Hjalmar Schacht, o ministro da Economia do Reich, era um admirador das doutrinas de Keynes, que só em 1936 se explicou sistematicamente no famoso livro Teoria Geral do emprego, do juro e da moeda. Keynes viria a reconhecer que as suas ideias eram mais facilmente aplicáveis em regimes autoritários. Foi nestes que elas floresceram. Com efeito, o enorme intervencionismo do Estado na economia não era compatível com a concorrência em mercado livre sobre que assentava o capitalismo liberal. Entre as duas Grandes Guerras, este viu-se deslegitimado tanto pela inoperância económica como pela incapacidade de mobilizar a sociedade em torno de uma causa emocionante, de um desígnio colectivo grandioso que pudesse inscrever-se no horizonte de vida de cada um, conferindo-lhe sentido.
Depois da II Guerra, que foi ainda mais bárbara e mortífera do que a I, a precipitada (ainda que fugaz) reabilitação de Estaline aos olhos do Ocidente, pelo contributo indesmentível que dera a Rússia para a derrota da Alemanha nazi (depois de ter colaborado com ela), a URSS tornou-se uma referência mítica para os comunistas ocidentais. A suposta superioridade moral dos comunistas – a generalidade dos seduzidos não sabia ou não queria saber dos milhões de pessoas sacrificadas a esta descabida pretensão – captou a devoção de muita gente comum e até o respeito da maior parte da intelectualidade ocidental.
Mas mesmo por parte da que não se converteu vieram críticas à democracia, cujas fundações normativas apresentavam fragilidades morais, éticas e filosóficas que frustravam os intelectuais, ao mesmo tempo que nada tinha de emocionante para oferecer às massas: para estas, a liberdade não era uma prioridade. As democracias, restauradas na Europa após a derrota nazi em 1945, continuaram a ser vistas pela intelectualidade ocidental como um regime de legitimidade duvidosa. Quanto ao capitalismo, cuja perduração ficaria comprovada pelo “boom” económico iniciado a partir de 1950 (e só interrompido pela crise do petróleo de 1973), assentava na procura do lucro, na ânsia pelo dinheiro e outros valores da sociedade burguesa, frívolos e egoístas. Além disso, o capitalismo gerava aspirações “alienantes”, que pervertiam o que há de mais sublime na natureza humana, como o apetite para o consumo, já despertado por uma economia a caminho da pujança, capaz de absorver o desemprego e satisfazer as necessidades básicas e não básicas da população. Não obstante este sucesso, também o capitalismo era considerado pela esquerda em geral, comunista ou não comunista, como um sistema ilegítimo.
Nó pós-II Guerra, a partir de 1950, o Ocidente europeu pôde dar-se ao luxo de ir expandindo o Estado Social até proporções insuspeitadas. Contrariamente às previsões “científicas” do materialismo dialéctico, que garantiam a fatal extinção do capitalismo em virtude das suas insolúveis contradições internas, o sistema fez a partir dos anos cinquenta uma prova de vida convincente. Uma “Velha Esquerda” alinhada com Moscovo continuou aferrada à ortodoxia soviética. Mas uma “Nova Esquerda” que gradualmente se afirmou, reagiu ao sucesso económico do capitalismo deslocando a crítica para o campo sócio-cultural, e por fim, nos anos sessenta, sobretudo cultural ou até civilizacional. Nasceu nesta década uma “contracultura” romântica e libertária, que repudiava militantemente os valores e convenções da sociedade burguesa e capitalista.
Estão aqui os germes da explosão de Maio de 68, ateado pela revolta estudantil, e que, mau grado as aparatosas greves da Renault e o sucesso do jornal maoista “La Cause du Peuple”, vendido na rua por Jean Paul Sartre; mau grado a evocação ruidosa da “luta de classes”, constituiu, não a integração plena do operariado na vanguarda da contestação ao “sistema”, mas uma “revolução cultural” conduzida por uma juventude que deixou de “pensar economicamente” e odiava a sociedade burguesa precisamente porque esta “pensava economicamente” (I. Kristol, 1973). O Maio de 68 representou uma viragem fundamental em relação à forma como o liberalismo clássico pensava o indivíduo e a sua liberdade pessoal e civil. O que se tornou obsessivo foi uma absorção narcísica, híper-romântica, pela preocupação com um “eu” estritamente pessoal, íntimo e singular, independente da envolvência sócio-económica, um “eu” por assim dizer pré-cultural e certamente pré-político, quando muito penetrável pela psicologia ou a psicanálise.
Maio de 68 representou, em suma, o triunfo do subjectivismo e, por consequência, da arbitrariedade de todas as coisas, incluindo de todos os valores: foi o triunfo do relativismo, que veio para ficar e de que resultaria o pós-modernismo do século XXI, que não passa de um híper-romantismo actualizado pela globalização. Acontece que o problema do “eu” não se resolvia com a luta de classes, exigia uma total “libertação” das restrições de toda a ordem impostas pelas convenções sociais. Nasceu a obsessão contemporânea com a “Identidade” (pessoal, cultural, de género, étnica, sexual e por aí fora). Maio de 68 não foi um episódio de luta de classes, foi uma revolta contra toda a Autoridade, todo o Poder, em nome da “libertação” de cada indivíduo – não da sociedade sem classes. Era anti-capitalista simplesmente porque o capitalismo era “burguês”.
A Velha Esquerda nunca digeriu o Maio de 68: condenou-o como um surto de anarquia fomentada pelas cabeças estouvadas de jovens “deseducados”. Mas algo ficou da iconoclastia daquela juventude para quem “era proibido proibir”. Se a Velha Esquerda queria capitalizar a energia contestatária revelada em 68; se não queria permanecer acantonada à margem da ventania cultural levantada pela geração de 68, então teria de se renovar. Nos anos setenta, surgiu uma Nova Esquerda que percebeu que o colete-de-forças ideológico e político imposto por Moscovo a divorciava da realidade em permanente mutação que se impusera na Europa, uma realidade demasiado complexa e variada para ser analisada com ferramentas conceptuais elaboradas há mais de cem anos, mas que a cartilha soviética continuava a impor. O feminismo, a ecologia, as minorias, as questões de género, eram problemas intratáveis pelas ferramentas analíticas do marxismo. Santiago Carrilho ou Berlinguer tentaram um “aggiornamento” enveredando pelo eurocomunismo, numa rejeição da tutela soviética. Na Europa, a partir de agora, a marcha para o socialismo far-se-ia gradualmente, por via pacífica e em liberdade. Isto implicava abdicar da Revolução e significava uma transacção com o capitalismo e a “democracia burguesa”. Assim nasceu em Itália o “compromisso histórico” entre o Partido Democrata-Cristão liderado por Andreotti, e o Partido Comunista Italiano liderado por Berlinguer.
Apesar da crise petrolífera de 1973, o capitalismo recompôs-se com relativa rapidez e voltou a gerar prosperidade e recursos para os governos continuarem a expandir o Estado de Bem-Estar. Mais: nos anos oitenta colmatou a falha que feria a sua legitimidade engendrando um valor susceptível de conferir sentido e objectivo à vida de todos e cada um: o consumismo. Mas, por isso mesmo, a legitimidade do capitalismo ficou amarrada à exigência de um crescimento económico perpétuo. A crise económica e financeira desencadeada em 2007-8 trouxe de volta uma penúria de que já não tínhamos memória e diminuiu drasticamente a capacidade distributiva do Estado. As Esquerdas, velhas e novas, continuam a não pensar economicamente, e clamam, com mais ou menos franqueza, que “não paguemos” a Dívida que contraímos, um problema secundário a resolver pela “Europa” e por contabilistas criativos. O povo, muito compreensivelmente, também rejeita a Austeridade. Como já uma vez escrevi aqui, hoje em dia uma Democracia que não dá dinheiro não presta. E um capitalismo que não gera a prosperidade geral apenas serve os “ricos”, uma categoria de privilegiados que não param de enriquecer no meio da miséria geral. Os apertos financeiros do Estado e a denúncia dos “ricos” reabriram o caminho para que se insinuasse uma nova deslegitimação do capitalismo e, por associação, da democracia parlamentar “burguesa”.
A História não anda para trás e certamente não voltarão novos muros de Berlim. Mas o que teremos pela frente?
Maria Fátima Bonifácio
10/12/2014, 8:26
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