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Turista em casa
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Turista em casa
Estar casada com um estrangeiro, que sonha com Lisboa mais do que eu própria, tem vantagens insuspeitas
Estamos a descer a Calçada da Estrela. Deslizando sobre os carris do eléctrico, apontando cada uma das fachadas, festivos com a familiaridade: olha! A casa de jogos, a mercearia, a tasca, o alfarrabista da esquina! Não estamos lá, estamos em Londres, mas é como se estivéssemos. É um truque muito bem conseguido. Resulta da forma como é filmado este documentário sobre os eléctricos 28 e 15. A câmara vai junto ao condutor, filmando de dentro para fora, do início ao fim da rota. O Street View seria uma comparação sofrível: elevados à posição do cameraman, fluímos a uma velocidade constante e, acima de tudo, ouvimos os sons - do próprio eléctrico a rolar sobre os carris, da sua campainha, da rua cada vez que a porta se abre e uma voz em off anuncia o nome da estação. É um locutor inglês e provoca-nos uma gargalhada colectiva por não conseguir pronunciar correctamente boa parte das paragens. Por exemplo, Martim Moniz passou a Mártin Móniz e Praça da Alfândega igualmente a palavra grave: Alfandéga. Sim, o que vemos é um documentário para estrangeiros: "Lisbon trams". Que português se lembraria de comprar um DVD sobre eléctricos? Nem eu estaria a mirá-lo, a milhares de quilómetros de distância, não fosse o meu marido ser um apaixonado de Lisboa. E não haver vez que a pise que sossegue na pressa de apanhar o 28 e de se extasiar pela quinquagésima vez: "Beautiful"! "Great"! "What a gem"!
O que "Lisbon trams" nos proporciona é um simulacro. Num dia gelado de recolher ao sofá, gozamos em diferido algo aproximado à luz, às cores, aos sons de Lisboa. O que falta é amplamente suprido pela imaginação e pela memória dos sentidos. O filme data de há quatro anos, o que cedo se comprova. Chegados à Praça do Comércio, admirada a luz coada pelas arcadas, vemos tapumes em roda da praça, a rua revolvida, e sabemos que foram as horas finais da calçada portuguesa: "how sad"!
"Gostava de alugar um eléctrico só para o encher de amigos e dar uma volta por Lisboa. Achas que era possível?", pergunta o meu marido. Como aqui em Londres se faz com os double-deckers, acrescenta a desfazer o insólito da ideia. Em dia de boda, alguns noivos ingleses têm à porta da igreja ou do registo civil um desses autocarros de dois andares, praticamente saídos de circulação. Os convidados imediatamente trepam por ali acima, a fim de serem transportados em pândega e delongas ao copo-d'água.
Talvez proponha isto à Carris. Dentro do 28, o meu marido sugere que se ouça fado e aguçaria o apetite se fosse ao vivo. Não acham que poderia ser um sucesso? Pena, pois rapidamente se transformaria em acantonamento turístico. Há algo de triste em a memória de um povo ser preservada mais para degustação do turista do que dos nativos.
Estar casada com um estrangeiro, que sonha com Lisboa mais do que eu própria, tem vantagens insuspeitas. Exploraria eu, por auto-recreação, a cidade em que nasci, além da sua rala superfície, neste querer perfurar camadas de história? Vamos a descer a S. Domingos à Lapa. Deslizando sobre os carris do 25, apeando-nos na Praça de S. Paulo. E desta vez é real. Entro em igrejas que durante anos ignorei ou apenas conheci de fachada. A Igreja de Santa Catarina e a sua vazia biblioteca. A de Nossa Senhora da Oliveira. A da Conceição Velha. Infelizmente, algumas destas excursões esbarram em portas fechadas. A Igreja da Pena está fechada; o Convento da Encarnação é um lar. No Palácio Foz, os guardas são incapazes de precisar quando as visitas serão reatadas: aquele "não sabemos", desafrouxando tentativas e ânimos, fica a ribombar-nos sobre as cabeças como amostra de um mal terrível.
O meu marido pergunta-me, em provocação: "Mas tu viveste mesmo nesta cidade?" É bem sabido que um nativo não explora a sua cidade do modo como um estrangeiro o faz, vive na presunção de a conhecer. Vivi aqui, sim, nesta cidade que se transmudou em descampado, sulcado pelo empobrecimento e pelo envelhecimento, com o rasgão maior do desinteresse pela sua memória. E não dói apenas a degradação da Baixa, onde, salvo o uso dado às lojas de r/c, nos perguntamos quanto tempo mais poderão sobreviver os telhados dos prédios da Praça da Figueira, da Praça do Rossio, da Rua da Conceição. Se vou para as Avenidas Novas, quantos outros edifícios não encontro selados à espera de tombar? A cidade é cada vez mais um tecido desigual; na terça-feira de Carnaval, os passeios de Alvalade, Avenida de Roma e Areeiro estão vazios, na sexta-feira à noite o centro comercial deserto está, e a única excepção ao despovoamento são dois quilómetros quadrados entre o Chiado e o Príncipe Real.
Se desço a Rua do Carmo, estranho nova mudança. A população com que me cruzo. Os estrangeiros que em pleno Fevereiro atulham os eléctricos e o comércio do Chiado. O que me faz pensar no bem que fomos programados. Desejamos viver entre a nossa geração ou com a geração com a qual formámos laços, à qual nos une uma certa memória, mesmo que ela seja fugaz, esquiva, um trapo de ilusões, coro de migalhas dissonantes. O que nos prende aos lugares, a Lisboa ou a Londres, senão a força da memória e dos elos às pessoas que ali conhecemos? Se numa hipotética viagem ao futuro aqui pousasse centenas de anos mais tarde, passada a curiosidade e o assombro, que pesadelo não seria. Experiência por certo gélida.
Foi tudo bem programado.
Escritora, a viver em Londres
Por Clara Macedo Cabral
publicado em 27 Fev 2015 - 08:00
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