Aviões

Na infância, íamos ver os aviões. Não íamos vê-los: encontrávamo-los a meio de passeios auspiciosos cujos rumos só os nossos pais conheciam. Restava pouco deles, já: o Aviocar de Santa Bárbara, o C-130 das Lajes. As suas carlingas jaziam entre o musgo. Nós coleccionávamos recordações.

Só anos mais tarde vim a saber que a primeira noiva de Hugo Chávez morrera naquele C-130, em 1976, com o restante coro da sua universidade. Foi a primeira vez que me ocorreram as pessoas.


É longa a história dos desastres aéreos nestas ilhas, embora apenas num caso recente com passageiros açorianos (o infortunado ATP da SATA, em São Jorge, em 1999). Houve um C-54 Skymaster da Força Aérea Portuguesa, em 1951, aqui nas Lajes. Um Lockheed da Avianca, em 1954, nas Lajes também. Um 707 da Independent Air, em 1989, na ilha de Santa Maria.

Em nenhum caso me lembrei das pessoas antes de saber da noiva de Chávez. Sempre repudiei Chávez - de repente, tudo se humanizou. De maneira que já não foi estranho quando, há dias, o Urbano me falou de Constellation, o romance de Adrien Bosc sobre a queda de outro Lockheed - aquele que, em 1949, embateu no Pico da Vara, em São Miguel, matando o pugilista Marcel Cerdan, namorado de Piaf.

Alguém devia traduzi-lo. Mas o romance, o grande romance, continuará por escrever. Foi protagonizado por Robert Piché, um canadiano louco que, em 2001, salvou a vida a 306 pessoas planando um A330 da Air Transact ao longo de 120 km, sem combustível, até aterrar nas Lajes a 600 km/h.

Conheci-o mais tarde, já depois de os media terem ido desenterrar do seu passado uma série de falcatruas, incluindo uma prisão por tráfico de droga com um Piper. Curvei-me ao cumprimentá-lo. Ainda acho que esse romance será meu. Estou nessa fase da vida: quero escrever sobre a superação.

por JOEL NETO
Diário de Notícias