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O recorde de usuários online foi de 864 em Sex Fev 03, 2017 11:03 pm
CONTO I
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CONTO I
Durante o mês de Agosto presenteamos os leitores com um conto de ficção, sobre uma investigação contada pelo testemunho de um dos seus protagonistas, que se passa num verão quente do Alentejo "Verão de 1975". Uma história contada em quatro partes ao longo deste mês, pelas palavras de um inspetor frio, reformado, que relembra quando foi chamado para resolver o desaparecimento de uma criança em 2004, da autoria de João M. Pereirinha.
ARQUIVADOS
PRIMEIRA PARTE
- Você tem filhos?
- Não…
- É casado?
- Divorciado, há cinco anos.
- Dá para perceber, tem irmãos mais novos?
- Duas irmãs, cinco e quinze anos de diferença…
- Então serve para o trabalho! Trouxe o gravador e a cerveja?
- Sim, claro, mas porquê a cerveja?
- Eu chameio-o aqui para escrever as minhas memórias, se fôssemos ficar os dois sentados a beber vinho era capaz de ficar um pouco romântico de mais – puxou de um cigarro, meteu-o na boca, e com as duas mãos levou o zippo metalizado até ao cigarro para o acender, soltou o fumo depois de inalar e olhou de lado para o jornalista do outro lado da mesa, com um sorriso sínico e fechado – não acha…?
- Porque é que acha que eu sou o homem certo para isto?
- Você mesmo disse ao telefone, que precisava do dinheiro, é divorciado e não tem filhos que o possam preocupar ou que possam ser um dia utilizados contra si, mas ao mesmo tempo tem quinze anos de diferença da sua irmã mais nova. Por isso, consegue compreender ou chegar lá perto, do que um homem e uma mulher sentem quando uma criança de oito anos desaparece sem deixar rasto.
- Aquela criança desaparecida há dez anos?
- Sim, como lhe disse, é provável que eu desapareça em breve… seja de causas ditas “naturais” (como se um cancro na cabeça tivesse alguma coisa de natural), seja porque sei, vi ou disse demais… de qualquer forma – deu uma passa demorada no cigarro – não há nada que me prenda aqui durante muito mais tempo… a vida precisa de um propósito para ser vivida, caso contrário mais vale desistirmos. Eu já esgotei os meus propósitos…
- Mas segundo me lembro…
- Ou segundo foi investigar antes de vir para aqui?
- Seja como for, segundo sei, o caso foi dado como encerrado naquela altura…
- Não vamos cortar atalhos sim?! Afinal de contas, se toda a gente soubesse tudo, ninguém teria um propósito qualquer de vida, como eu estava a dizer. É o facto de que nos convencemos que precisamos de saber, de resolver uma coisa qualquer, ou de arranjar uma desculpa para qualquer acontecimento que faz de nós os estúpidos sociopatas que somos. Acordamos todos os dias viciados na crença de que vai ser diferente, de que há um qualquer futuro melhor, de que essa ilusão do tempo muda tudo e, no fim, todos os dias foram o mesmo dia. E acabamos por morrer em cima da vala de lama que nunca deixámos de ser, insignificantes perante o Universo.
- Lembra-se daquele dia? Do dia em que foi chamado para o caso?
- Claro que lembro! 16 de Agosto de 2004. Apesar de estar completamente ressacado, quando acordei, às 6h o telefone começou a tocar. Eu tinha tirado o dia de folga, há dois anos que não tirava férias, desde o divórcio – deu uma passa profunda no cigarro queimando-o quase de uma só vez e enchendo a sala, com um ambiente lúgubre entre iluminado com um castiçal pendurado do teto, de fumo – fazer muitas horas de vigia, de noite, andar em bairros problemáticos dos arredores de Lisboa, e ter traficantes a invadirem-nos a casa quando temos uma filha de seis anos, não é bom para nenhum casamento… Acontece que naquele dia fazia precisamente dois anos que tinha deixado de ver a minha mulher e a minha filha, e ligam-me a meio da folga para ir ao Alentejo coordenar uma equipa sobre um alerta de uma criança desaparecida.
Eu nunca gostei do campo, e menos ainda do calor. Já tentou usar um fato preto num ambiente desértico com 40º C. à sombra e 50º C. ao sol? O dia tinha nascido há duas horas quando cheguei e mais parecia que tinha desembarcado no inferno. Aliás, eu nem sabia que existia um sítio assim em Portugal: para todo o lado que olhava só via crateras, gruas ferrugentas, e o vento além de queimar carregava um pó branco com sabor a calcário, era mármore. Já tinha ouvido falar em Vila Viçosa, mas quando vimos as fotografias da palácio onde os duques e os reis de Bragança enchiam a pança e iam fazer caçadas – bebeu um gole longo da segunda cerveja – não imaginamos sequer as condições nem a vida dos desgraçados que descem até duzentos metros de profundidade a céu aberto para arrancar pedra branca do coração da terra e empilha-la novamente na parede de um monárquico, burguês, maçon ou ditador árabe qualquer. Já alguma vez sentiu vertigens tendo os pés bem assentes no chão? Foi o que eu senti quando cheguei àquele sítio.
Àquela hora, quando tive um súbito vislumbre do que tinha à minha espera, com toda aquela vastidão de terra abandonada, serrações descativadas, enfim, se a criança não tinha já sido levada para fora da fronteira, podia ser que só tivesse fugido dos pais, ou que se tivesse perdido, mas no meio daquele cenário dantesco, bem que podia ficar caída no fundo de um daqueles poços, ou no meio daquelas montanhas de pedra abandonadas durante meses até que alguém desse pelo cheiro, ou tropeçasse literalmente nela… Comecei a achar que estava a perder tempo.
- E o seu companheiro? Foi sozinho até lá?
- Essa ideia de que o protocolo manda que estejamos sempre acompanhados por alguém não passa disso mesmo, uma ideia que vem nos manuais, normalmente escritos e feitos em países ricos, por gente que nunca saiu da secretária. Eu não me aguento a mim próprio em alguns dias, acha que um companheiro ia aguentar…? Enfim… seja como for, era Agosto e a maioria estava de barriga para cima no Algarve a entornar cerveja, a aturar os filhos, a fazer a vontade às mulheres e a convencerem-se de que só porque estavam de férias o mundo era menos azedo e o mal, aquela força impiedosa que nos fez lutar pela sobrevivência durante milhões de anos e que fez de nós a porcaria que somos, tirou folga. Não tirou. Nunca tira, e é ele que nos vai consumir um dia. E a prova disso foi o que encontrei quando entrei na casa dos pais.
- O que viu?
- Os desgraçados viviam num anexo de uma casa grande numa daquelas aldeias em redor de Vila Viçosa, Bencatel. Aquilo deve ter umas 2 mil pessoas, se tanto. Dois ou três são donos de mais de metade daquilo. Um quarto tem vivendas do tamanho da casa do Presidente, e os restantes vive em cubículos arrendados. Estes viviam nas traseiras da casa de um dos donos de umas quantas pedreiras. Ela trabalhava na casa e ele numa serração.
A porta dava para a cozinha, e eles estavam na divisão do lado esquerdo, na sala, a chorar abraçados um ao outro enquanto um GNR tentava acalmá-los. Conheciam-se, mas ali toda a gente se conhece, sem que seja de vista. Já tentou investigar seja o que for e ter de entrevistar milhares de pessoas?! Cada um com a sua mentira, cada um com a sua verdade, e nenhum tem merda alguma de útil para dizer! Ao fundo, no canto direito havia uma porta que dava para um corredor, o quarto dos pais era a primeira porta e o quarto da menina a porta do fundo, depois da casa de banho. Estava um cheiro nauseabundo e eu não sabia porquê, calculei que fosse do local, dos esgotos, enfim, a única vez que uma cena de um crime cheirava bem era uma perfumaria, por isso a princípio ignorei, até ter entrado no quarto.
“O que é que aconteceu aqui?!”, gritei eu para os GNR’s à porta! O que estava na sala com o casal veio a correr com a boina na mão, pálido – também não tinha dormido – “diga inspetor!”, “foda-se, disseram-me que era um desaparecimento de uma criança, não uma carnificina!!!!”, “pois inspetor, por isso é que o chamámos!”, disse-me ele com os olhos bem abertos. O primeiro local do crime que visitei era um quadro de horror e provas: um miúdo de 17 anos tinha esfaqueado um padre no abdómen, cortado os testículos do homem e tinha-o crucificado na cama. Quase vomitei. Quando interrogámos o miúdo ele limitou-se a dizer que não se arrependia de ter limpado o cebo a um pedófilo. Ficou preso quase vinte anos e saiu há meia dúzia de anos, para morrer num tiroteio num assalto a uma caixa multibanco. A justiça é isto. E o meu trabalho era olhar para um quarto cheio de sangue no chão e na colcha, os móveis partidos, uns desenhos escritos nas paredes com sangue, a janela partida e um caderno de desenhos que se afogava numa poça de sangue no chão. Todas as bonecas estavam sem cabeça. As molduras partidas, e uma vela com um crucifixo na cama. Chamou-me a atenção ainda o facto de o crucifixo ser apenas isso, isto é, não tinha a imagem de Cristo lá, e como nessas alturas há epifanias que nos vêm à memória, pensei “mais um desaparecido… há milhares de anos”.
- Não é religioso?
- As únicas drogas que tomo, atualmente, só o álcool e o tabaco.
CONITNUA
Última edição por Admin em Sáb Set 05, 2015 3:44 pm, editado 1 vez(es)
CONTO II
ARQUIVADOS
SEGUNDA PARTE
- Não estava perante um desaparecimento, aquilo parecia mais um homicídio sem corpo, uma completa borrada: os pais continuavam a contaminar a cena do crime; entretanto foram buscar um padre exorcista da zona não sei com que pretexto e estava fechado numa cela à espera de ser interrogado há horas; as buscas no terreno não tinham avançado mais do que meio quilómetro; havia caçadores aos tiros em montes ali próximos e ninguém se tinha lembrado de fechar as fronteiras… Mais do que nunca tudo aquilo me parecia perdido. Quando me passaram as informações da família, ainda pior: só viviam ali há menos de um ano, ela era natural de uma outra vila a vários quilómetros dali, e ele era ucraniano. Tinham-se mudado desde que ele arranjara trabalho na serração.
- O que é que resolveu fazer?
- O que é que eu fiz? Meti os pais dentro de um jipe da GNR, disse-lhes que ia ficar tudo bem, mas a mulher não parava de chorar e ele mandou-me um olhar gélido, quase indiferente, denunciava que sabia da minha mentira mas sabia que eu só queria acalmar aquele berreiro, e dei ordens que fossem para o quartel mais próximo e ficassem lá sem comunicar com ninguém, mas sem serem presos, até que eu voltasse.
- Suspeitava dos pais naquela altura?
- Nada, além daquele espetáculo de gritos e choradeira, me dizia que os podia excluir de terem sido eles a fazer alguma coisa à miúda. Além disso, aquilo tudo estava-me a dar dores de cabeça, estava a explodir e não tinha a certeza se era do barulho, se da incompetência ou da ressaca. Provavelmente era tudo misturado. Pedi também que recolhessem testemunhos dos vizinhos, dos donos da casa, o que tinham visto, o que tinham ouvido, enfim… mas sabe para que é que isso serviu? Para nada… cada um dizia o que lhe apetecia, faziam juízos de valor porque eles não iam à igreja; porque eles não eram portugueses; porque isto e porque aquilo… sobre a beleza da menina, “era um anjo”, dizia uma velha cínica que se topava que estava a mentir…
- Estava a mentir porquê?
- As outras vizinhas diziam que ela não se dava bem com ninguém e muito menos com eles, era uma alcoviteira, e esforçava-se demais no tom de voz, na forma como olhava para quem a interrogava, era óbvio que o excesso de elogios não passavam de uma forma de tentar exclui-la da investigação. Mas até então não tinha ninguém que incluir ou excluir. Precisava de falar com os pais, e saber o que se tinha passado. Precisava de saber que sangue era aquele no quarto, e de quem… Entretanto fui falar com os pais.
Ao que parece a mãe foi quem deu com aquele cenário dantesco… Tinham ido tomar café depois de jantar, num daqueles tascos com esplanada quase no meio da estrada, não muito longe, a menos de cinco minutos, e tinham deixado a menina em casa, deitada. Estava uma noite fria e ela resolveu ir buscar um casaco e foi quando deu com aquilo. Suspeitos, pessoas que não gostassem deles, objetivamente, não sabia, dívidas não tinha, brigas recentes, nada, pessoas estranhas a rondar a casa também não… enfim um beco sem saída.
O pai foi ainda pior. Já pensou atravessar a porra de um continente, não sei quantas fronteiras, pagar a uma quantidade enorme de gente por coisas insignificantes, desde o transporte a comida ou documentos, para acabar a trabalhar a talhar pedra no meio do inferno abrasador que é o Alentejo? Eu também não e estou-me a borrifar para isso, mas dava para ver que era uma pessoa muito mais ambiciosa do que o que aparentava. Ele tinha formação superior, era advogado na Ucrânia e, embora não dominasse a nossa língua inteiramente apesar de estar cá há imenso tempo, sabia esquivar-se. Que nós soubéssemos não tinha antecedentes. Diz que estranhou a demora da mulher e foi ter com ela a casa quando deu com aquilo tudo. A fraqueza dele não era a forma como respondia ou aquilo que dizia, mas sim aquilo que não podia dizer – puxou de outro cigarro e acendeu-o dando-lhe duas passas e libertando o fumo sob a mesa – afinal de contas, não há nenhum comboio direto que ligue Lisboa a Kiev e o caminho é cheio de atalhos…
- Pensava que o pai estava envolvido, ou que se tratava de algum ajuste de contas?
- Não… não exatamente, embora fosse preciso descartar essa hipótese. Afinal de contas, não são todos os emigrantes que têm um carro todo preto, vidros fumados e sem o símbolo da marca ou a referência do modelo, nem à frente nem atrás… aliás, o carro que eles conduziam nem sequer era deles. De uns amigos… “e se nós formos investigar esses amigos, vamos encontrar alguma coisa invulgar”, e ele calava-se, ou então tentava centrar a questão no desaparecimento da miúda, no cenário da casa… Esse tal amigo era um moldavo e pelos vistos tinha muitos carros em nome dele… enfim, podia perfeitamente ter sido um ajuste de contas, uma dívida à organização, mas isso não explicava o cenário nem havia nada que indicasse uma relação entre as duas coisas. Durante os dez anos que estava no país, casado há oito, tinha tido sempre emprego, tinha descontado impostos, enfim, tudo certo. Decidi voltar à casa…
- Que horas eram?
- Já era meio-dia, não tinha comido nada ainda e precisava de pensar. Entretanto informaram-me que já tinham fechado a fronteira e começaram a revistar todos os carros suspeitos, e tinham começado a fazer operações stop nos caminhos para Lisboa. Era melhor do que nada. Parei o carro no início da aldeia, num cruzamento logo à entrada e atravessei aquilo a pé, entrei num café e pedi uma bifana e um café. Toda a gente sabia que eu era o inspetor e toda a gente ficou calada os cinco minutos que estive lá dentro… comecei a achar que mesmo que alguém soubesse de alguma coisa nunca me iam dizer… um sítio daqueles é como uma ceita, todos sabem dos segredos uns dos outros, e todos parecem conspirar por algo, mas se algum intruso tenta penetrar no seu seio, ninguém vai colaborar! Ninguém vai trair a confiança da comunidade, ninguém vai compactuar com os interesses do intruso, transformam-se em lobos que querem proteger a alcateia e que estão prontos para te morder e ver morrer de desespero por tentar… Esquivam-se como um cardume sem ninguém ao leme mas com todos na mesma direção e quando era preciso que alguém tivesse que dizer alguma coisa só estão autorizados a falar alguns tipos de pessoas: as autoridades; os políticos; os padres; e os ricos. E rapidamente me tentaram engolir no meio daquela avalanche de ataques, sobretudo porque tinham acabado de chegar as carrinhas da televisão...
O local do crime parecia um circo, e se antes não conseguia encontrar um depoimento decente, o que não faltavam agora era gente a falar em direto para um canal qualquer… Incluindo pessoas que ainda nem tinham prestado declarações à polícia. Desde o presidente da junta, ao presidente da câmara, ao padre, todos prestavam “as suas orações para que a pequenina fosse encontrada rapidamente e que nada de mal lhe tivesse acontecido”… hipócritas de merda.
- Não acreditava na boa-fé?
- Qual boa-fé? Estar a atrapalhar a investigação implantando uma versão dos acontecimentos na opinião das pessoas e possíveis testemunhos através do palanque da televisão que garantiriam fieis, votos, clientes, etc.?! Há alguma boa-fé em querer impor-me uma versão dos acontecimentos contraditória ao que os factos me apresentavam… Como é que ninguém tinha ouvido nada, com a janela rebentada e o quarto todo ensanguentado... Esta gente queria tudo menos que o caso terminasse rapidamente e em bem… quantos mais dias se prolongassem as buscas sem sucesso, mais vigílias seriam feitas à porta da igreja, mais tempo de antena seria concedido aos políticos, e mais difícil se tornaria, para mim, chegar a qualquer ideia com sentido.
Eles não queriam um investigador… Queriam uma solução que não responsabilizasse ninguém e nesse mesmo dia chegara a informação de que não estava sozinho no caso. Estava agora sob o comando de um Major da GNR, encarregado de gerir o teatro de operações, entre a PJ, a GNR e os Bombeiros. Já estava à minha espera na casa dos avós maternos da criança, num monte que ficava entre o Redondo e Évora. Viviam da produção de hortícolas, algumas cabeças de gado, ovelhas e porcos, nos vários hectares de terra que tinham arrendados ao mesmo dono da casa onde a filha morava, e talvez tenha sido daí que conseguiram os empregos… eu ia anotando esta teia de influências, mas o tal Major assim que me viu ficou mais interessado em mim do que no caso, “andou a beber hoje, inspetor?”, não era uma pergunta, era uma acusação, “tem a certeza que está em condições de conduzir o caso, parece agastado”, “tem a certeza de que temos um caso”, perguntei-lhe eu… filho da mãe, era suposto ter esperado por mim, mas “já falei com o casal, não têm como provar que estavam em casa, mas parece que souberam do caso pela televisão instantes antes de eu ter chegado” o telefone tocou e ele olhou para o visor, afastou-se e foi atender.
- Desconfiou de alguma coisa?
- Eu dei uma volta à casa. Era um daqueles montes retangulares que estamos habituados a ver nos quadros e nas fotografias, sabe, branco, rodapé azul, telhado baixo, no ponto mais alto da planície ondulada, no meio de uma paisagem pincelada de sobreiros e oliveiras. A Este do monte estava o gado solto, a Norte as ovelhas numa redoma e a Oeste a porqueira, depois disso nada… vazio, em toda a volta, não dava para avistar mais do que cercas, nem o monte se via da estrada, nem a estrada desde o monte, nem uma vila ou aldeia… Havia uma imagem de uma santa por cima da ombreira da porta, em azulejo, um poço a uns quinze metros, aberto e com um balde do lado de fora. Dirigi-me até lá, tinha a roupa empapada de suor e a uma sede interminável, senti tanto uma cede enorme como um impulso de me dirigir até aquela fonte.
Era um poço com um muro de xisto, um arco por cima com uma roldana por onde passava o cordel atado ao balde e preso a um gancho lateral, não havia água no balde, mas o poço tinha água lá em baixo. Atirei-o lá para dentro e quando ia içá-lo, do lado contrário, fiquei virado para a casa e vi o GNR sair de lá com a mulher a chorar e a gritar que não tinha feito nada à sua frente, algemada atrás das costas. “O que é o cabrão está a fazer?” pensei eu, e larguei o balde. No momento em que este bateu no fundo deu-se um disparo vindo da porta do monte, e o Major foi fuzilado com uma rajada de chumbos nas costas, caiu ele e a mulher à frente dele. Eu vi o velho sair de dentro da casa, mas ele não sabia onde eu estava, aliás, nem devia saber que eu ali estava, deu um passo em frente com a espingarda a fumegar até que reparou no meu carro e olhou à volta. Eu estava atrás do poço, apontei-lhe a arma e gritei que largasse a espingarda, e ele disparou outro cartucho na minha direção, senti o impacto dos chumbos no muro do poço e ouvi o zumbido passar à volta, espreitei pela lateral e disparei… houve miolos por todo o lado… - apagou o cigarro e fez uma pausa enquanto passou as mãos pelo rosto.
Corri em direção a ele, estava morto, depois vi que o GNR e a mulher ainda se mexiam, fui até ele. O gajo tinha sido varado e a mulher tinha apanhado com uma parte da nuvem dos chumbos que, àquela distância, não tinha aberto muito, puxei pelo rádio dele para pedir ajuda e liguei através do telemóvel, disse para o gajo estar quieto e não falar, mas enquanto soluçava sangue puxou-me pelo braço, olhou para mim e disse-me “foram… foram os velhos… o sangue, o sangue era de porco… era sangue de porco na cena… há roupas da miúda lá dentro”, enquanto se esvaia em sangue. Fui até ao interior da casa. Cozinha e sala com fumeiro e lume de chão, corredor para os quartos e no topo um vazio claro em forma de cruz na ombreira do corredor, faltava ali qualquer coisa… entrei e vi um saco aberto à porta do quarto, eram roupas de criança cheias de sangue. Voltei a sair, e vi a arma do velho, estava descarregada…
(CONTINUA)
CONTO III
ARQUIVADOS
TERCEIRA PARTE
- Quando toda a gente chegou, foi uma confusão tremenda. Acho que havia uns três jornalistas para cada GNR a tentar invadir o perímetro de segurança; acabaram-se-me os cigarros até ter sido levado numa carrinha celular para um posto em Évora, e daí para Lisboa; o que mais me lembro é do ritmo com que tudo aconteceu, é como se estivesse a ver tudo em câmara lenta, quando tudo aconteceu à velocidade de uma bala perdida que me atingiu sem eu saber. Primeiro fui afastado do caso; depois abriram-me um processo disciplinar por negligência no apoio ao Major e no disparo fatal no velho; entretanto deram-me 15 dias de férias; e quando voltei estava tudo resolvido… lembra-se de como foi? – recostou o cotovelo direito sobre a mesa, com um cigarro na mão a fumegar, e encostou a cabeça ao polegar e olhou diretamente para o jornalista.
- Sim, do que sei e do que me lembro, o polícia que o substituiu no caso conseguiu uma confissão da mãe passados uns dias, sobre a morte acidental da criança por uma briga em casa, encoberta com a ajuda dos avós, que deram o corpo da criança a comer aos porcos. Ao que consta, terão depois simulado toda a cena para que parecesse um rapto ou algum tipo de ritual, e daí o sangue encontrado na cena do crime ser de porco e inclusive até deixaram um crucifixo em cima da cama, que seria um que faltava na casa dos avós…
- E não acha nada disso estranho? Quer dizer, eu não o culpo, naquela altura também só queria esquecer o caso… e acabei por esquecer, por uns tempos… mas não acha que falta qualquer coisa?
- Bem, à primeira vista é óbvio que falta o corpo da criança, mas face à confissão da mãe…
- Pois, sabe, confissões há muitas… enfim, não acha estranho, por exemplo, que o pai não tenha sequer aberto a boca uma única vez em tribunal, nem para confessar nem para se defender e, passado um mês, vão dar com ele enforcado na cela?
- Sim, mas não terá sido o sentido de culpa?
- E também foi o sentido de culpa que matou a velha ao cair da maca no hospital? E esta pessoa, reconhece-a? – tirou uma fotografia de dentre de uma pasta de arquivo e passou-lha para o outro lado da mesa com suavidade, levou o cigarro à boca e deu uma grande passa soltando o fumo para o lado e olhando pela janela sobre a cidade, com os olhos entreabertos sem olhar para a mesa.
- Espere… esta, esta é a mãe?
- Irreconhecível não está? – continuando a olhar pela janela.
- Mas a onde foi a isto?
- Quando o chamei aqui, disse-lhe que tinha uma história, achou que se resumia tudo às minhas memórias? Mas não se trata apenas das minhas memórias ou o que eu vi naquele dia. O que interessa mesmo foi o que eu não vi nesses dias. A história, se ela existir, cabe-lhe a si decidir, começa agora. Sabe, cada vez mais me convenço de que eu não devia ter ido trabalhar naquele dia, eu não era para estar ali, mas por algum motivo estranho atendi o telefone e fui, matei uma pessoa e foi o caso em que tive menos horas e o que vi resolver-se mais depressa. – virou-se novamente para a mesa, abriu outra cerveja, encheu o copo e deu um gole e depois outra passa no cigarro – Ás vezes temos tudo à nossa frente e escolhemos olhar para as coisas erradas, ou não olhamos sequer… esse costuma ser o maior pesadelo de um inspetor, e o maior erro também…
- É esse o seu maior pesadelo, é por isso que voltou a investigar esta história?
- Não! Não costumo ter problemas em olhar para o que devo, nunca tive… O meu maior defeito sempre foi aquilo que eu não consigo aceitar, mesmo tendo consciência daquilo que estou a ver. Quer mesmo saber quais são os meus pesadelos, pois eu digo-lhe: todos os dias sonho que entro numa casa, umas vezes vamos fazer uma apreensão, outras vezes capturar alguém, resgatar alguém, seja o que for, os motivos mudam conforme o dia, assim como a casa (acho que a minha mente prevê que eu não vou acreditar no sonho se a história for sempre a mesma), mas por mais que mudem os pormenores é sempre a mesma história, e depois de entrar vou entrando num labirinto de portas e corredores escuros, sem janelas, e vou perdendo contacto com toda a gente, até ficar sozinho, aí ouço alguém gritar numa sala, preparo-me para arrombar a porta, entro, aponto a arma e lá está, sempre uma sinistra criança, uma menina com os seus 14 ou 15 anos, não mais, a esfaquear alguém, e quando eu entro aponta-me uma arma carregada e destravada com a outra mão… acordo sempre com o disparo… mas sou sempre eu que disparo primeiro. – deu um gole na cerveja que quase despejou o copo.
Enfim, seja como for, naquela altura não liguei muito ao que aconteceu, mas é como naqueles policiais de suspense, sabe, onde nos vão dando pequenas pistas até que, quando chegamos ao fim tudo nos parece fazer muito sentido graças a uma grande pista que liga todas as outras… Ainda não cheguei a essa pista. Mas desde então que comecei a sentir uma pequena comichão com algumas coisas. Olhemos para trás, por exemplo, para tudo o que aconteceu novamente. A mãe confessa ter morto a filha acidentalmente, com a ajuda dos avós que deram a criança para comer aos porcos que, em menos de um dia, comeram tudo sem deixar rasto, os avós guardam as roupas da criança em casa, o avô morre num tiroteio à porta de casa, matando um Major com tiro de caçadeira que levava a mulher algemada e que acaba por morrer no hospital, e o pai não diz nada e enforca-se passado um tempo. E a mãe, a única sobrevivente, a que fechou o caso, está hoje numa ala psiquiátrica a bater com a cabeça nas paredes e com uma camisa-de-forças depois de já se ter tentado matar umas 18 vezes… sabe o que falta aqui, além do corpo? Um motivo…?! Foi isso que ninguém apresentou nunca, nem nas audiências em tribunal, nem na confissão, nem em parte alguma!
Mas nem foi por isso que comecei a investigar tudo de novo. Naquela altura também achei razoável, durante um tempo, que estando muita gente de férias ou deslocada, se tivesse chamado um rapaz novo para me substituir, mesmo quem foi, um miúdo que estava ali há menos de um ano, seja como for, ele era apenas um representante da PJ e o caso estava a ser coordenado pela GNR. Foi ele que conseguiu a confissão sabia…? Assim como foi ele que fez a maior apreensão de coca do ano, ao largo da costa vicentina, dois meses depois; e foi ele que coordenou um tiroteio de sniper em Bragança que liquidou cinco traficantes que iam numa carrinha para Espanha; E foi ele que, um ano e meio depois disto, se candidatou isoladamente a substituir o chefe de departamento e, mesmo com a pouca experiência que tinha, ficou no cargo. Uma carreira exemplar para Ministro do Interior, não acha? Uma estrela em ascensão… E tudo começou com aquele caso… com aquele mediatismo todo, aquela eficiência, aquele fechar de pontas quando o país estava sob o olhar estrangeiro, após ter organizado um europeu de futebol um mês antes… Mas sabe o que é que ele nunca mais investigou…? Desaparecimentos, homicídios, detenções, interrogatórios… o rapaz foi escalando de cargo em cargo mais depressa do que um carro de fórmula um! E hoje é ministro…
- Mas acha que ele foi negligente?
- Mais do que negligente, foi demasiado objetivo, acertivo. Quando se está perante um caso destes só há duas hipóteses à nossa escolha: ou se investiga todas as pontas soltas; ou se arranja um bode expiatório que feche todas as pontas!
- E você o que escolhe?
- Eu não tive hipótese de escolha na altura… quando fui julgado acabei absolvido, e com um louvor, mas aconselhado a dedicar-me mais ao trabalho de secretaria, por causa da idade, do trauma, etc., etc., etc.. Balelas! Até que numa dessas noites, depois de acordar com o disparo no sonho, vou à cozinha fumar um cigarro, ligo a televisão e lá estava o mesmo caso: uma criança desaparecida, que tinha sido acidentalmente morta pelos pais, que ocultaram o cadáver. Sem corpo, sem motivos, e com uma confissão. Era exatamente o mesmo caso, passados cinco anos. Coincidência? Impossível…
- Foi a partir daí que resolveu voltar a investigar o caso?
- Mais do que investigar o caso, voltar a ouvir e a rever tudo… você gosta de ler, ou de ir ao cinema? Não sei onde posso, ou podemos chegar com isto… a alguma verdade, a alguma denúncia, a uma espécie de suicídio involuntário? É um pouco como aquele famoso filme, “Vertigo”, quando despertamos para novas pistas sobre velhos casos, começamos a desconfiar de tudo e de todos, inclusive das nossas motivações, que muitas vezes não são meramente instrumentalizadas para chegar a um determinado resultado. É aí que os nossos medos se dissipam, como no livro “O Velho e o Mar”…
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer que o mais importante não é conseguir trazer a baleia para terra, o mais importante é conseguir vencê-la e derrota-la, independentemente do tempo que isso demorar, mesmo que depois esta seja comida pelos tubarões no regresso a casa… O que importa é fechar o caso, encontrar a ponta de verdade do novelo e desenleá-la até que a névoa da ilusão se dissipe. Eu comecei a fazer isso nesse dia, a meses de me reformar.
- E por onde começou?
- Sabe quantas crianças têm desaparecido em Portugal? Nas últimas três décadas há mais de 100 crianças desaparecidas por década… A larga maioria volta a aparecer, não passam de adolescentes com uma crise de identidade, ou envolvidos em disputas conjugais. Há uma pequena parte que nunca mais ouvimos falar, 48 na última década. E depois há uma coisa curiosa: encontrei, ao longo de trinta anos, 20 casos idênticos a este: uma criança desaparecida, com ocultação de cadáver por parte da família e a confissão de um dos envolvidos. Mas o mais surpreendente não fica por aqui…
- Então, há mais?
- De todos os condenados nesses casos, há apenas uma pessoa viva: a mãe da miúda... – acendeu um outro cigarro e deu-lhe várias passas, quase ofegante – foi aí que tentei falar com ela, mas está irreconhecível, não diz uma única palavra e ficou uma hora numa sala comigo, com um olhar vazio, sem responder a nada… Essa fotografia conseguia-a através do advogado dela… Inicialmente disse-me que não queria falar, etc., tive de seguir o gajo até a uma casa de putas e apanhá-lo com as calças na mão, tirei-lhe uma fotografia com flash e a partir daí a nossa conversa ficou iluminada. Nessa noite levou-me ao escritório, o homem transpirava como um ciclista na volta a frança, com medo do escândalo… deu-me uma cópia dos arquivos do processo, disse-me que nunca percebeu o que aconteceu, que a mulher nunca quis alterar o testemunho ou negar a confissão mesmo quando ele foi dar com ela espancada na cela, tirou-lhe fotografias (essas que aqui tenho) e tinha tudo para conseguir uma absolvição ou pelo menos lançar a dúvida sobre os factos, mas ela mostrou-se impassível… depois de me dar a cópia do processo dei-lhe a máquina fotográfica, “mas e o rolo”, disse-me ele, a máquina nunca chegou a ter rolo nenhum…
Depois de ler tudo, voltei a confirmar outra coisa. Naquele dia o Major tinha recebido um telefonema. Voltou a entrar dentro de casa. Saiu com a mulher algemada. Houve o tiroteio. E depois disse-me que o sangue na casa era de porco. Mas em todo o processo nunca foram apresentadas análises nenhumas que comprovassem isso. Aliás, não há nem uma única prova forense nesse sentido….
- Quer dizer que afinal a única prova que sustentou o caso foi a confissão?
- Sim, e não. Veja esta fotografia – tirou outra fotografia da pasta e passou-lha, e deu outra passa no cigarro – está a ver quem são?
- É a família toda junta, os avós e a criança…
- Sim, e pelo tamanho da miúda, era recente. Depois de ler tudo o que o advogado me deu e disse, voltei ao Alentejo. Está tudo exatamente igual. Quase tudo… A casa onde viviam, o pequeno anexo nas traseiras do casarão, foi transformado numa garagem. Bati à porta, ninguém me abriu. Fiquei à espera que alguém entrasse e nada. Percebi que não estava ninguém por lá, e entrei por uma janela nas traseiras, a que antes era do quarto da criança. Tudo vazio, literalmente, as divisões tinham sido deitadas abaixo e havia apenas algumas ferramentas penduradas de uma parede. Sai, fui até ao monte. Completamente abandonado. A pintura era penas um toque leve, os animais tinham desaparecido, e o poço não tinha balde. Mas o calor continuava abrasador. Dei uma volta ao monte, era como se tivesse chegado ao fim do mundo, a lugar de ninguém, a um deserto verde, um paraíso abandonado… Arrombei a porta e ouvi um barulho, e como se fugisse da morte passou-me um coelho por baixo das pernas, voltei a meter a pistola no coldre. Não havia ninguém na casa, estava tudo cheio de pó, e tal qual como tinha sido deixado naquele dia. Numa gaveta do quarto, encontrei um álbum de fotografias, onde estava essa. Voltei para a porta, onde havia luz par ver todas as fotografias com atenção e foi aí que reparei neste pormenor, consegue ver qual é?
- Não, ao que é que se refere?
- Repare com atenção, na ombreira, antes do corredor, lá encima, um crucifixo, pode descrevê-lo?
- Sim, madeira escura, uns quinze centímetros, com uma imagem de cristo em cobre por cima, agastada…
- Exatamente! O mesmo crucifixo cuja mancha na parede denunciava a ausência, em 2004, e que na confissão foi dito que tinha sido intencionalmente, e especificamente esse crucifixo, deixado sobre a cama da miúda…
- Mas…
- Mas acontece que eu estive na cena do crime e o crucifixo que estava lá, quando cheguei, não era esse! Lembra-se, era um crucifixo sem imagem. Mas olhe para esta fotografia, tirada à cena na mesma tarde do tiroteio e apresentada em tribunal – passou-lhe outra fotografia.
- É o mesmo…
- O que significa que…
- Que alguém adulterou a cena do crime!
(CONTINUA)
CONTO IV
ARQUIVADOS
QUARTA PARTE
- Já consegui captar a sua atenção agora? Enfim, apesar de não conseguir provar nada disso, quando constatei esse facto, juntamente com tudo o resto, fiquei com uma sensação amarga, as minhas suspeitas de que algo estava realmente mal contado aprofundaram-se. Sabe, não sei se está familiarizado com o termo de sinestesia…?
- Desculpe-me, não de todo…
- Bem, lembra-se de quando lhe falei daquele sabor a terra que sentia na boca quando visitei o sítio pela primeira vez?
- Sim, era por causa da extração de mármore da zona…
- Correto! Então, imagine que, mais do que sentir o sabor na boca, sentisse simultaneamente as cores e os sons que lhe transmitissem essa sensação de dor, morte, cansaço e desolação… É isso que é a sinestesia ter várias sensações só através de uma única impressão. Era aquele sabor na boca… da primeira ignorei, mas agora senti-o como nunca e tinha finalmente a certeza de que algo de profundamente errado se passava ali. Sabe, há muita gente que descreve o fim do mundo a partir de sonhos, a desolação, o esquecimento dos sítios, o som do vento a passar por entre as ervas que nasceram selvagens por entre a ferrugem do metal abandonado, contraposto com o silêncio de uma superfície terreste desabitada. Mas foram poucos os que tiverem a oportunidade de pintar essa visão sem ser em filmes ou quadros, mas na vida real, e menos ainda queles que têm a desgraça de o presenciar… Aquele sítio só me fazia lembrar o fim do mundo…
- Mas o Alentejo em geral?
- Não, refiro-me em específico àquela zona, àquele aglomerado de municípios bombardeados pela desolação dos efeitos industriais esgotados, com aquelas crateras abertas e abandonadas, as montanhas artificiais de pedra erguidas ao longo das estradas, com aquele pó branco a voar em partículas minúsculas, a infiltrar-se na água, na pele, no cabelo, e como em todas as visões apocalípticas, com uma enorme mancha de esperança no meio – o inspetor olhou pela janela e ficou em silêncio durante um bocado, sem se mexer, com o cigarro a transformar-se em cinzas, lentamente, que caiam sobre o soalho de madeira que escutava atentamente a conversa entre os dois.
- Está a referir-se ao quê?
- Desculpe, deve achar que estou a divagar e que nada disto é útil ou serve para qualquer coisa…
- Não, você é que está a pagar este trabalho, e estou simplesmente à escuta, a recolher a matéria-prima. Mas a esperança, ao que se refere?
- Imagino que não conheça Vila Viçosa…. Quer dizer, não me refiro às fotografias, aos vídeos, refiro-me a ter lá estado.
- Não, infelizmente não, nunca fui lá.
- Pois é, no centro de tudo o que acebei de lhe dizer há uma espécie de oásis monumental, erguido em mármore, desde as pedras da calçada, aos degraus da entrada e ombreiras das casas, até a um palácio com uma fachada tremenda, em frente ao panteão dos seus donos, a família de bragança, não menos opulente… Ao andar naquelas ruas chegamos a achar razoável todo o tipo de aberrações possíveis entre os homens e a terra que lhes oferece os recursos necessários para construir aquele pedaço de harmonia arquitetónica. Enfim, todos os momentos apocalípticos têm um instante de redenção total, e aquela vila é essa possibilidade… Não será à toa que uma dinastia inteira a escolheu para viver, precisamente os bragança, ou que mesmo o último rei tenha decidido passar por lá os seus últimos dias de vida certo de que seria assassinado mais cedo ou mais tarde… também não será por acaso que é mãe de tantos poetas e artistas… fiquei a saber de tudo isto nos dias em que lá passei.
- Decidiu passar lá uns dias?
- Sim, mais precisamente um mês… a ideia era recolher mais informações sobre o caso, sobre as pessoas, sobre quem é quem. Mas num sítio tão pequeno como aqueles, seja na vila como nas aldeias em redor, se queremos uma coisa temos de começar a perguntar por outra… Não podemos ir diretos ao assunto, sobretudo se somos forasteiros por aquelas bandas, é o primeiro passo para o boicote.
- Então como é que fez?
- O que acha? Um tipo sinistro, que não é dali, a fazer perguntas, com um bloco de notas e um gravador na mão para trás e para a frente, não é a coisa mais discreta do mundo. Aliás, é impossível ser discreto numa terra onde metade dos eleitores é vizinho do presidente da câmara, por exemplo. Então decidi apresentar-me como escritor, interessado em escrever um romance sobre a ilustre poetisa de Vila Viçosa: Florbela Espanca… isso abriu-me as portas a tudo no início e permitiu-me ouvir todo o tipo de histórias sobre tudo e mais alguma coisa, menos sobre a poetiza…
- Incluindo sobre o desaparecimento da criança…
- Precisamente! Nem era preciso muito para chegar lá, e que todos contassem muito mais do que me tinha contado anos antes quando apareci como PJ… Enfim, e é precisamente o que descobri desde então, que lhe trago nesta caixa, detalhadamente, para que leia, ouça, analise por si e possa comprovar as conclusões a que cheguei. Mas continuando. As pessoas faziam precisamente a mesma pergunta que eu “como é que é possível, uma mãe fazer uma monstruosidade daquelas à própria filha, já imaginou? Ah, desculpe, o senhor é escritor, deve imaginar muitas coisas dessas, claro…”. Mas não, nem a mim me passava pela cabeça que a mãe tivesse feito algo à miúda, nem os avós, e ainda menos o pai. E talvez ainda esteja viva…
- O que o faz pensar nisso??? – interrompeu o jornalista pousando a caneta e olhando muito admirado para o inspetor.
- Calma… captei a sua atenção agora?
- Sim, mas claro… quer dizer, até agora pensa que se tratava apenas…
- Do devaneio de um inspetor reformado, falido e que quer ganhar dinheiro à pala de suposições e delírios sobre um caso antigo que ninguém contestará mas que todos irão querer comprar…
- Quer dizer, mais ou menos…
- Claro, é precisamente isso que eles vão dizer, os seus editores, os críticos, toda a gente a quem apresentar esta história sem provas. É por isso que eu preciso que escute tudo até ao fim e depois deixo-lhe uma cópia de todas as provas que consegui arranjar, para que fale com elas e veja por si mesmo. Eu não quero que escreva um romance, quero que denuncie uma história, cuja maior prova eu ainda vou encontrar… – deu duas passas no cigarro até chegar ao filtro e apagá-lo – mas é provável que morra no caminho, por isso é que preciso de si, entendeu?
- Continuo todo ouvidos…
- Então, avançando, quando fui ter uma reunião com o presidente, que ao saber da estadia de um escritor na vila para falar sobre a poetiza local me convidou imediatamente para me dar todas as ajudas possíveis logo ali na esplanada. A formalidade e a informalidade ali andam de mãos dadas e é preciso ter cuidado para perceber quando e qual está uma ou outra em cima da mesa. Enfim, tive sorte de o homem não me reconhecer, porque naquela altura não cheguei a falar com ele, mas lembrava-me dele na televisão. Os mandatos nas nossas pequenas vilas e juntas não são a coisa mais rotativa do mundo, normalmente são uma espécie de pequenas dinastias, interrompidas por escândalos ou a morte, e ali não és exceção.
Foi numa conversa com aquele tipo – roliço, de bigode farto, um ar enfadonho e uma pose de estado constante, com pessoas a dar-lhe vénias constantemente, a tratá-lo por doutor, apesar de ter menos escola do que a maioria – que fiquei a saber que a empresa da família dona da casa e das terras onde a miúda desapareceu e onde toda a família vivia e trabalhava, era a maior exploradora de mármore da região. Eram uma espécie de semideuses do olimpo por ali… entre os sinais externos de grandeza, e os soslaios de bondade, eram patrocinadores da vida farta de toda a gente: os maiores empregadores; os donos da praça de touros; os maiores patrocinadores das festas populares; os maiores patrocinadores das duas associações de caridade do concelho; enfim, aquela porcaria parecia que não existia sem eles, e claro, o nosso amigo presidente, apesar de comunista de fachada, não teria ganho nenhuma eleição sem eles, “a vinda da família Ramon foi uma bênção para todos nós há trinta anos…”. Até tinham a própria igreja numa das vivendas que tinham por lá, e um padre na família… E sabe quem era o padre?
- Não…
- Aquele exorcista que esteve detido durante um dia… Ora, é claro que quando se lembrou, o tal presidente exclamou “não sei quem terá sido o imbecil da PJ que se lembrou de prender o Sr. Padre, enfim, uma blasfémia para um homem e uma família tão bons?! É natural que nunca mais tenham cá voltado como antes, mas ainda bem que mantém por cá todos os negócios…”, realmente era uma pena, porque o gordinho não apreciava nada ter de se deslocar a Leiria pra os visitar, “é sempre uma maçada, e eu detesto conduzir… mas sabe como é, temos de manter as nossas amizades a bem do futuro do município…”. Hipócrita de merda! Enfim, mas isto é Portugal, e não seria de esperar outra coisa de um gordo farto de 25 anos de poleiro, à pala de favores e cedências aos donos da maior pedreira da zona e do país, da maior empresa de maquinaria de fio de diamante da península e donos de mais de 20 serrações e outras tantas pedreiras ao longo do país inteiro… os donos da “Santos & Ramon, SGPS”.
Mas não é só ali que os tipos são poderosos. Aquilo é um império nebuloso, como um lago lamacento que não conseguimos ver com nitidez por entre a bruma da madrugada. Uma fortuna que começou com a venda de mármore italiano: há trinta anos os tipos levavam o mármore até Itália para ser exportado de lá como mármore italiano, apesar de ter saído do fundo dos montes alentejanos… Enfim, não há fortuna que não seja de herança ou conseguida à custa de um crime qualquer. E foi aí que me perguntei, e se foram aqueles filhos da mãe a fazer mal à criança?
- Foram?
- É mais complicado do que isso. E às vezes temos tudo à nossa frente mas não ligamos às coisas certas. E só despertei para isso quando pedi informações sobre a família a um amigo que trabalha nas finanças e me enviou cópias dos dados fiscais da empresa e da família. Você não vai acreditar nisto – abriu a última cerveja – os tipos são os maiores patrocinadores políticos do país, entram em todas as campanhas políticas, mas é ainda melhor do que isso, eles não se limitam a querer ganhar com um candidato ou partido, eles patrocinam todos os partidos com assento parlamentar e com somas iguais!!!! Ganham sempre!!! Mas é claro, o dinheiro nunca vai no nome de uma só empresa, quem tem mais de vinte empresas pode disfarçar isso muito facilmente, e quando vi a localização das empresas que me lembrei de outra coincidência… Por mais absurdo que isto possa parecer, e demorei algum tempo, olhe para esta lista – tirou uma lista da caixa e entregou-a ao jornalista.
- Sim… isto, são nomes de empresas, são as empresas da família?
- Veja com mais atenção, as moradas…
- Sim…
- Então agora olhe para esta lista – tirou um conjunto de folhas atadas com um elástico e meteu-as em cima da mesa.
- Isto são casos arquivados, são…
- Sim, são todos aqueles casos em que uma criança desapareceu, e alguém confessou ter assassinado a criança, desfeito do corpo e por ai fora, consegue perceber a relação? As moradas são uma correspondência exata!
- Mas acha que…
- Não acho, eu tenho a certeza! Estamos a lidar com um mais do que simples desaparecimentos ou homicídios aleatórios, e essa família está envolvida nisso até ao pescoço! É possível até que estejamos perante um assassino em série, e alguém se está a dar a muito trabalho para o encobrir! E eu vou descobrir porquê!
FIM
A HISTÓRIA CONTINUA
Inicialmente publicado como Conto no jornal TribunaAlentejo.pt, a história continua no "wattpad", sob a forma de romance: "ARQUIVADOS - Ouro Branco de Sangue Azul", onde pode acompanhar a história capítulo a capítuloa e deixar os seus comentários e sugestões. Clique no Link ou na Imagem, inscreva-se e participe.
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