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Amar o sistema
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Amar o sistema
As coisas não estão bem e a culpa é do sistema. Com economia em crise, governo enfraquecido, oposição maioritária mas dividida, esta é uma frase que ouviremos cada vez mais. Mas, por comum que seja, a inversa é bastante mais verdadeira e proveitosa. Neste momento crítico, graças ao sistema, as coisas estão muito melhor do que poderiam estar.
A lamentação habitual tem vantagens importantes. Primeiro é sempre verdadeira. De facto, por melhor que sejam as circunstâncias, as críticas são inevitáveis. Além disso, por definição, não existe qualquer possibilidade de o sistema estar inocente. Depois, sendo vaga e dirigida a réu indefinido, a crítica basta-se a si mesma, evitando pormenorização ou soluções. A culpa do sistema é de todos e de nenhum, pelo que ninguém se sente ferido ou responsável.
Para a generalidade dos comentadores as coisas estão pois muito mal e a culpa é do regime político, sistema económico, poderes empresariais, forças instaladas, governo, Europa, Alemanha, etc. Eles são culpados ou, pelo menos, responsáveis pelo nosso sofrimento injusto, merecendo ódio ou, pelo menos, desprezo. Tal é evidente, clamoroso, indiscutível, suscitando repúdio e até raiva.
Isto é verdade, mas não é a verdade toda. Além dos muitos defeitos evidentes, o sistema também tem benefícios, de que todos, mesmo os queixosos, gozamos largamente, e que poderiam desaparecer se, no meio das acusações, acabássemos por derrubar o odiado regime. É muito mais fácil protestar do que louvar mas, para lá das justas condenações, é preciso considerar a nossa dívida para com o sistema.
Antes de rejeitar a situação, é bom dizer que, apesar de tudo e por pior que as coisas estejam, tudo o que temos e somos devemos ao sistema. Foi aqui que vivemos, crescemos e nos desenvolvemos, por ele comemos todos os dias, obtemos o que precisamos e com ele fazemos tudo o que conseguimos fazer. Sem o sistema como ele é, não sobreviveríamos um dia.
O réu máximo das intervenções habituais, apesar de lamentável, tem uma vantagem enorme, que falta às alternativas: ele existe. É o que é, com todas as imperfeições, mas também com todas as excelências da realidade.
Devemos amar o sistema, não por ser bom, mas por ser nosso. Como os pais amam um filho, mesmo maldoso. É o que temos, é o que nos tem servido e, só por isso, por muito deficiente que seja, merece a nossa gratidão.
Aliás, amar o sistema é condição indispensável para o corrigir a fundo. Porque amar realmente não nega as falhas, as injustiças, as limitações e os abusos que confrontamos todos os dias. Esses males são bem reais, muitos são clamorosos e inaceitáveis, todos merecem o nosso repúdio e, mais relevante, o nosso empenho na solução. Há muita gente a sofrer que precisa de remédio urgente. Essa devia ser a nossa preocupação central. Mas só depois de reconhecer o bem que permanece no meio desse mal.
Amar não pode resultar em comodismo, apatia ou aceitação do dano. Isso aliás é hoje difícil, de tal modo a nossa cultura promove desilusão, censura, quase subversão. É mais fácil protestar do que aceitar. Mas destruir regime político, sistema económico, poderes empresariais, forças instaladas, governo, etc., é uma forma muito deficiente de lidar com os defeitos que eles têm. Só funcionaria bem se tivéssemos algo melhor para os substituir, o que está longe de ser óbvio, se conseguíssemos lá chegar, o que também é duvidoso, e ainda se os custos da transição fossem menores do que o ganho da transferência. Sem isso é muito melhor amar e corrigir o que temos.
Até porque, como os últimos séculos revolucionários mostraram, as alternativas ao sistema, por atraentes que sejam, acabam muito pior. Daí a célebre definição de Winston Churchill no discurso à Câmara dos Comuns de 11 de Novembro de 1947: "De facto tem sido dito que a democracia é a pior forma de governo, exceptuando todas as outras formas que têm sido tentadas ao longo dos tempos." O mesmo poderia dizer-se da democracia económica, o capitalismo.
Tempos perplexos mostram como o regime de abertura e autonomia pode cair na apatia, na confusão ou na desordem. Liberdade e diálogo são campo favorável a populismo, especulação, oportunismo, ganância, corrupção e tolice que vemos crescer, acabando na dor ou no horror. Não surpreendem os movimentos subversivos com alternativas alegadamente mais justas e seguras. Por isso é bom pensar naquilo que, apesar de tudo, o sistema nos tem dado, mesmo os mais desfavorecidos, e lembrar como as coisas já foram muito piores e facilmente poderão voltar a ser.
por JOÃO CESAR DAS NEVES
Diário de Notícias
A lamentação habitual tem vantagens importantes. Primeiro é sempre verdadeira. De facto, por melhor que sejam as circunstâncias, as críticas são inevitáveis. Além disso, por definição, não existe qualquer possibilidade de o sistema estar inocente. Depois, sendo vaga e dirigida a réu indefinido, a crítica basta-se a si mesma, evitando pormenorização ou soluções. A culpa do sistema é de todos e de nenhum, pelo que ninguém se sente ferido ou responsável.
Para a generalidade dos comentadores as coisas estão pois muito mal e a culpa é do regime político, sistema económico, poderes empresariais, forças instaladas, governo, Europa, Alemanha, etc. Eles são culpados ou, pelo menos, responsáveis pelo nosso sofrimento injusto, merecendo ódio ou, pelo menos, desprezo. Tal é evidente, clamoroso, indiscutível, suscitando repúdio e até raiva.
Isto é verdade, mas não é a verdade toda. Além dos muitos defeitos evidentes, o sistema também tem benefícios, de que todos, mesmo os queixosos, gozamos largamente, e que poderiam desaparecer se, no meio das acusações, acabássemos por derrubar o odiado regime. É muito mais fácil protestar do que louvar mas, para lá das justas condenações, é preciso considerar a nossa dívida para com o sistema.
Antes de rejeitar a situação, é bom dizer que, apesar de tudo e por pior que as coisas estejam, tudo o que temos e somos devemos ao sistema. Foi aqui que vivemos, crescemos e nos desenvolvemos, por ele comemos todos os dias, obtemos o que precisamos e com ele fazemos tudo o que conseguimos fazer. Sem o sistema como ele é, não sobreviveríamos um dia.
O réu máximo das intervenções habituais, apesar de lamentável, tem uma vantagem enorme, que falta às alternativas: ele existe. É o que é, com todas as imperfeições, mas também com todas as excelências da realidade.
Devemos amar o sistema, não por ser bom, mas por ser nosso. Como os pais amam um filho, mesmo maldoso. É o que temos, é o que nos tem servido e, só por isso, por muito deficiente que seja, merece a nossa gratidão.
Aliás, amar o sistema é condição indispensável para o corrigir a fundo. Porque amar realmente não nega as falhas, as injustiças, as limitações e os abusos que confrontamos todos os dias. Esses males são bem reais, muitos são clamorosos e inaceitáveis, todos merecem o nosso repúdio e, mais relevante, o nosso empenho na solução. Há muita gente a sofrer que precisa de remédio urgente. Essa devia ser a nossa preocupação central. Mas só depois de reconhecer o bem que permanece no meio desse mal.
Amar não pode resultar em comodismo, apatia ou aceitação do dano. Isso aliás é hoje difícil, de tal modo a nossa cultura promove desilusão, censura, quase subversão. É mais fácil protestar do que aceitar. Mas destruir regime político, sistema económico, poderes empresariais, forças instaladas, governo, etc., é uma forma muito deficiente de lidar com os defeitos que eles têm. Só funcionaria bem se tivéssemos algo melhor para os substituir, o que está longe de ser óbvio, se conseguíssemos lá chegar, o que também é duvidoso, e ainda se os custos da transição fossem menores do que o ganho da transferência. Sem isso é muito melhor amar e corrigir o que temos.
Até porque, como os últimos séculos revolucionários mostraram, as alternativas ao sistema, por atraentes que sejam, acabam muito pior. Daí a célebre definição de Winston Churchill no discurso à Câmara dos Comuns de 11 de Novembro de 1947: "De facto tem sido dito que a democracia é a pior forma de governo, exceptuando todas as outras formas que têm sido tentadas ao longo dos tempos." O mesmo poderia dizer-se da democracia económica, o capitalismo.
Tempos perplexos mostram como o regime de abertura e autonomia pode cair na apatia, na confusão ou na desordem. Liberdade e diálogo são campo favorável a populismo, especulação, oportunismo, ganância, corrupção e tolice que vemos crescer, acabando na dor ou no horror. Não surpreendem os movimentos subversivos com alternativas alegadamente mais justas e seguras. Por isso é bom pensar naquilo que, apesar de tudo, o sistema nos tem dado, mesmo os mais desfavorecidos, e lembrar como as coisas já foram muito piores e facilmente poderão voltar a ser.
por JOÃO CESAR DAS NEVES
Diário de Notícias
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