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SUICÍDIO: Sozinhos em casa
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SUICÍDIO: Sozinhos em casa
Num país com 56 mil organizações sociais e mais umas 20 mil iniciativas público-privadas de resposta a problemas sociais, contam-se pelos dedos das mãos o número de projectos de prevenção ao suicídio.
“Se o Alentejo Litoral fosse um país independente, seria a nação com a taxa de suicídio mais alta do mundo, superando até os países eslavos. Na Lituânia, líder mundial, a taxa é de 42 suicídios por 100 mil habitantes. No Alentejo de Odemira e Santiago, os números podem chegar com facilidade aos 45,50 ou mesmo 60 suicídios por 100 mil habitantes”. Cito Henrique Raposo e um fragmento devastador de “Alentejo Prometido”, o livro que escreveu com admirável clareza e coragem para a colecção Retratos da Fundação (editada pela FFMS) e o Observador pré-publicou há dias.
Num tempo em que tanta coisa nos divide, une-nos ao menos o sofrimento dos outros e o pavor de nós próprios virmos a sofrer. O suicídio é um tema doloroso, ultra fracturante que, felizmente, não tem barricadas nem pessoas contra ou a favor. Somos todos derrotados quando alguém ao nosso lado, na nossa família ou na nossa comunidade se suicida. Sempre que um de nós põe termo à vida por desespero, solidão, isolamento, desemprego ou pobreza, sentimo-nos trespassados. Morremos também um bocadinho. Falo por mim, que já passei pela perda de amigos e conhecidos a quem também não fui capaz de acudir, e muito menos salvar, por não terem dado sinais de um desespero tão fundo. Tudo nos quebra no momento em que nos dão a notícia, no minuto em que sabemos que a partir dali já não há nada a fazer.
No Alentejo, diz Henrique Raposo, “nunca encontrei uma pessoa sem uma história de suicídio na família”. Eu diria que poucos de nós conseguiremos atravessar o tempo de uma vida sem nos cruzarmos com alguém que desistiu. De acordo com as estatísticas da Sociedade Portuguesa de Suicidologia em Portugal matam-se mais de 5 pessoas por dia e esta é uma realidade lancinante. Obriga-nos a agir sobre ela, sejamos especialistas ou apenas cidadãos comuns. Os especialistas criam estratégias, observatórios, linhas de acção e prevenção que lhes permitem intervir, mas não chegam. Esta causa tem que ser nossa, de todos, sem prós nem contras. Até porque algumas das chamadas ‘guilhotinas’ que as pessoas em desespero mais usam são pontes e caminhos-de-ferro perto das nossas casas, e é terrível pensar que cada semana que passa se traduz na morte de pelo menos 4 pessoas que se atiram para a linha do comboio.
Poucos sabem que se suicidam mais pessoas por ano do que as que morrem em acidentes na estrada, e só alguns têm a noção dos elevados custos financeiros que correspondem a um suicídio, para não falar dos custos emocionais e morais brutais que jamais poderemos quantificar. Estatisticamente, cada suicídio envolve custos que oscilam entre 100 mil e 400 mil euros. Posta assim, desta forma fria e traduzida por números tão chocantes, a fractura fica ainda mais exposta. Infelizmente é a realidade nua e crua, e estes custos têm a ver com dívidas que ficam por pagar, depressões nos familiares, consequentes perdas de emprego e uma grande desestruturação que decorre de uma morte tão violenta.
Acontece que num país com 56 mil organizações sociais e mais cerca de 20 mil iniciativas público-privadas em matéria de respostas a problemas sociais, contam-se pelos dedos das duas mãos o número de projectos de prevenção ao suicídio. É aqui que temos que parar para pensar, mas também para olhar à nossa volta, tentando identificar os que andam mais frágeis. Os que vivem mais sozinhos e os que se chegam cada vez mais à beira de precipícios que podem ser fatais.
Numa tentativa de perceber, identificar e cartografar milimetricamente as necessidades sociais do nosso país, no sentido de mapear também as soluções mais urgentes, o IES – Instituto de Empreendedorismo Social, está há 4 anos no terreno a passar o país a pente fino, elencando os principais problemas sociais e as respostas que já existem ou têm que passar a existir. Numa lógica de procura/oferta, as equipas do IES elencaram as maiores carências em áreas tão sensíveis como o desemprego de longa duração, mas também de jovens qualificados; o envelhecimento das populações; o isolamento provocado pelo êxodo rural; a cultura de apatia e indiferença; a incapacidade ainda tão portuguesa de fazermos parcerias e criarmos projectos conjuntos; a violência doméstica; a saúde mental; os cuidados com toda a espécie de cuidadores que facilmente vivem em estado de esgotamento e ‘burnout’ e, finalmente, o suicídio. Para cada um destes problemas existem respostas boas e menos boas, mas aparentemente ainda escassas.
Voltando ao Alentejo, que é uma realidade urgente, é bom saber que há pessoas que criam projectos de proximidade e não se importam de percorrer 100 kms por dia para ir buscar 6 pessoas a seis aldeias diferente, para passarem o dia em actividades num centro onde se encontram com gente da sua geração. O projecto “A Vida Vale” é uma destas iniciativas que nos tranquilizam um pouco e inspiram muito, porque apostam numa teia de relações que só se pode tecer em presença. E é por causa desta proximidade e desta presença que os utentes reconhecem em entrevistas que se podem ver na net, que deixaram de ter ‘ideias fracas’ que lhes vinham à cabeça quando estavam condenados à solidão, num isolamento total. “Cheguei a passar semanas e semanas à janela sem ver ninguém, sem ter ninguém a quem dizer um olá!”
Em Lisboa ou no Porto, nas pequenas e grandes cidades também há muita gente sozinha. Tremendamente isolada por morar em prédios antigos sem elevador, por viver sem rendimentos mínimos, por não ter saúde, não ter família nem amigos, e não conhecer sequer os próprios vizinhos. Há uns anos todos nos detivemos na triste história da senhora velhinha que esteve 9 anos morta em sua casa, sem que ninguém desse pela sua falta. Afligiu-nos, mortificou-nos saber isto. O problema é que ainda na semana passada ficamos a saber de mais uma senhora que mora no centro de Lisboa, num prédio dito normal, num bairro aparentemente sem problemas, que ficou 3 dias e 3 noites estendida no chão, sem se alimentar, cuidar, dormir ou pedir socorro, porque tropeçou no tapete de casa caiu no chão. Desta vez foram ‘só’ 3 dias e 3 noites, mas também ninguém deu pela sua falta. Para mim, que ainda não atingi a condição de idosa, três dias e três noites de inverno estendida no chão, sozinha, sem me conseguir alimentar, cuidar ou chamar por ajuda seria radicalmente dramático. Nem consigo imaginar a aflição de uma senhora com mais de 80 anos…
E é por estas pessoas e por todos aqueles que estão à beira de desistir que não podemos baixar os braços nem perpetuar a tal cultura de apatia e indiferença que cria uma distância perversa entre mim e o meu vizinho. Entre mim e o que sofre ao meu lado. Tal como no Alentejo e noutras regiões em que a sociedade civil começa a dar respostas, também nós podemos agir. Dar passos e fazer caminho no sentido de alertar, de recorrer a serviços que já existem e pedir ajudas, mas também no sentido de vermos se está nas nossas mãos, ao nosso alcance, cuidar. Ou, pelo menos, saber quem são os que moram sozinhos em casa, perto de nossa casa.
Laurinda Alves
16/2/2016, 0:26
Observador
“Se o Alentejo Litoral fosse um país independente, seria a nação com a taxa de suicídio mais alta do mundo, superando até os países eslavos. Na Lituânia, líder mundial, a taxa é de 42 suicídios por 100 mil habitantes. No Alentejo de Odemira e Santiago, os números podem chegar com facilidade aos 45,50 ou mesmo 60 suicídios por 100 mil habitantes”. Cito Henrique Raposo e um fragmento devastador de “Alentejo Prometido”, o livro que escreveu com admirável clareza e coragem para a colecção Retratos da Fundação (editada pela FFMS) e o Observador pré-publicou há dias.
Num tempo em que tanta coisa nos divide, une-nos ao menos o sofrimento dos outros e o pavor de nós próprios virmos a sofrer. O suicídio é um tema doloroso, ultra fracturante que, felizmente, não tem barricadas nem pessoas contra ou a favor. Somos todos derrotados quando alguém ao nosso lado, na nossa família ou na nossa comunidade se suicida. Sempre que um de nós põe termo à vida por desespero, solidão, isolamento, desemprego ou pobreza, sentimo-nos trespassados. Morremos também um bocadinho. Falo por mim, que já passei pela perda de amigos e conhecidos a quem também não fui capaz de acudir, e muito menos salvar, por não terem dado sinais de um desespero tão fundo. Tudo nos quebra no momento em que nos dão a notícia, no minuto em que sabemos que a partir dali já não há nada a fazer.
No Alentejo, diz Henrique Raposo, “nunca encontrei uma pessoa sem uma história de suicídio na família”. Eu diria que poucos de nós conseguiremos atravessar o tempo de uma vida sem nos cruzarmos com alguém que desistiu. De acordo com as estatísticas da Sociedade Portuguesa de Suicidologia em Portugal matam-se mais de 5 pessoas por dia e esta é uma realidade lancinante. Obriga-nos a agir sobre ela, sejamos especialistas ou apenas cidadãos comuns. Os especialistas criam estratégias, observatórios, linhas de acção e prevenção que lhes permitem intervir, mas não chegam. Esta causa tem que ser nossa, de todos, sem prós nem contras. Até porque algumas das chamadas ‘guilhotinas’ que as pessoas em desespero mais usam são pontes e caminhos-de-ferro perto das nossas casas, e é terrível pensar que cada semana que passa se traduz na morte de pelo menos 4 pessoas que se atiram para a linha do comboio.
Poucos sabem que se suicidam mais pessoas por ano do que as que morrem em acidentes na estrada, e só alguns têm a noção dos elevados custos financeiros que correspondem a um suicídio, para não falar dos custos emocionais e morais brutais que jamais poderemos quantificar. Estatisticamente, cada suicídio envolve custos que oscilam entre 100 mil e 400 mil euros. Posta assim, desta forma fria e traduzida por números tão chocantes, a fractura fica ainda mais exposta. Infelizmente é a realidade nua e crua, e estes custos têm a ver com dívidas que ficam por pagar, depressões nos familiares, consequentes perdas de emprego e uma grande desestruturação que decorre de uma morte tão violenta.
Acontece que num país com 56 mil organizações sociais e mais cerca de 20 mil iniciativas público-privadas em matéria de respostas a problemas sociais, contam-se pelos dedos das duas mãos o número de projectos de prevenção ao suicídio. É aqui que temos que parar para pensar, mas também para olhar à nossa volta, tentando identificar os que andam mais frágeis. Os que vivem mais sozinhos e os que se chegam cada vez mais à beira de precipícios que podem ser fatais.
Numa tentativa de perceber, identificar e cartografar milimetricamente as necessidades sociais do nosso país, no sentido de mapear também as soluções mais urgentes, o IES – Instituto de Empreendedorismo Social, está há 4 anos no terreno a passar o país a pente fino, elencando os principais problemas sociais e as respostas que já existem ou têm que passar a existir. Numa lógica de procura/oferta, as equipas do IES elencaram as maiores carências em áreas tão sensíveis como o desemprego de longa duração, mas também de jovens qualificados; o envelhecimento das populações; o isolamento provocado pelo êxodo rural; a cultura de apatia e indiferença; a incapacidade ainda tão portuguesa de fazermos parcerias e criarmos projectos conjuntos; a violência doméstica; a saúde mental; os cuidados com toda a espécie de cuidadores que facilmente vivem em estado de esgotamento e ‘burnout’ e, finalmente, o suicídio. Para cada um destes problemas existem respostas boas e menos boas, mas aparentemente ainda escassas.
Voltando ao Alentejo, que é uma realidade urgente, é bom saber que há pessoas que criam projectos de proximidade e não se importam de percorrer 100 kms por dia para ir buscar 6 pessoas a seis aldeias diferente, para passarem o dia em actividades num centro onde se encontram com gente da sua geração. O projecto “A Vida Vale” é uma destas iniciativas que nos tranquilizam um pouco e inspiram muito, porque apostam numa teia de relações que só se pode tecer em presença. E é por causa desta proximidade e desta presença que os utentes reconhecem em entrevistas que se podem ver na net, que deixaram de ter ‘ideias fracas’ que lhes vinham à cabeça quando estavam condenados à solidão, num isolamento total. “Cheguei a passar semanas e semanas à janela sem ver ninguém, sem ter ninguém a quem dizer um olá!”
Em Lisboa ou no Porto, nas pequenas e grandes cidades também há muita gente sozinha. Tremendamente isolada por morar em prédios antigos sem elevador, por viver sem rendimentos mínimos, por não ter saúde, não ter família nem amigos, e não conhecer sequer os próprios vizinhos. Há uns anos todos nos detivemos na triste história da senhora velhinha que esteve 9 anos morta em sua casa, sem que ninguém desse pela sua falta. Afligiu-nos, mortificou-nos saber isto. O problema é que ainda na semana passada ficamos a saber de mais uma senhora que mora no centro de Lisboa, num prédio dito normal, num bairro aparentemente sem problemas, que ficou 3 dias e 3 noites estendida no chão, sem se alimentar, cuidar, dormir ou pedir socorro, porque tropeçou no tapete de casa caiu no chão. Desta vez foram ‘só’ 3 dias e 3 noites, mas também ninguém deu pela sua falta. Para mim, que ainda não atingi a condição de idosa, três dias e três noites de inverno estendida no chão, sozinha, sem me conseguir alimentar, cuidar ou chamar por ajuda seria radicalmente dramático. Nem consigo imaginar a aflição de uma senhora com mais de 80 anos…
E é por estas pessoas e por todos aqueles que estão à beira de desistir que não podemos baixar os braços nem perpetuar a tal cultura de apatia e indiferença que cria uma distância perversa entre mim e o meu vizinho. Entre mim e o que sofre ao meu lado. Tal como no Alentejo e noutras regiões em que a sociedade civil começa a dar respostas, também nós podemos agir. Dar passos e fazer caminho no sentido de alertar, de recorrer a serviços que já existem e pedir ajudas, mas também no sentido de vermos se está nas nossas mãos, ao nosso alcance, cuidar. Ou, pelo menos, saber quem são os que moram sozinhos em casa, perto de nossa casa.
Laurinda Alves
16/2/2016, 0:26
Observador
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