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Praxe académica: uma história longa e uma oportunidade única
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Praxe académica: uma história longa e uma oportunidade única
Substituir os valores da praxe, isto é, da verticalidade, da hierarquia e da obediência ao superior, pelos valores da horizontalidade, do companheirismo e da igualdade, é uma tarefa urgente.
No passado dia 5 de Fevereiro, a Assembleia da República aprovou um conjunto de recomendações relacionadas com a questão das praxes académicas. Nelas os grupos parlamentares procuraram ensaiar um conjunto de respostas novas para enfrentar um problema que está longe de ser novo na sociedade portuguesa. Na verdade, desde pelo menos 1727 que os rituais de receção aos novos alunos nas universidades são alvos de contestação. Lembremos-nos que foi nessa data que curiosamente o rei absolutista D. João V declarou que “mando que todo e qualquer estudante que por obra ou palavra ofender a outro com o pretexto de novato, ainda que seja levemente, lhe sejam riscados os cursos”. Mas a proibição não impediu que no século XIX os mais comuns rituais de receção aos estudantes fossem coisas tão bárbaras como o canelão, que consistia em dar pontapés nas canelas dos mais novos, o rapanço, no qual se cortava o cabelo, e a pastada, em que os novatos tinham que simular que eram animais comendo o seu pasto.
Estes rituais bárbaros, chamados de “praxe” na segunda metade do século XIX, haviam de suscitar enorme agitação nas universidades e na sociedade ao longo de todo o século XX. A abolição do canelão em 1902 chamou a atenção de republicanos e progressistas que, já depois da instauração da República, aboliram também a praxe académica. A praxe voltará a ser reposta em 1919 e nas décadas seguintes há-de ser recuperada como símbolo da academia e do seu conservadorismo durante o Estado Novo. Mas essa recuperação não resistiu aos ventos de liberdade que se fizeram sentir nos anos 60 e 70. A dissidência política e cultural dos meios estudantis, fortemente organizada em torno da crítica ao regime e à guerra colonial, e que teve nas crises académicas de 62 e 69 a sua melhor expressão, fez com que se acentuasse uma contradição entre o discurso fortemente politizado que se expandia no movimento estudantil, e as práticas mais conservadoras que persistiam na academia, pautando quer pelo elitismo em relação ao exterior, quer pela forte hierarquia no seu interior. Esse paradoxo crescente explica, em parte, que a praxe tenha entrado naturalmente em desuso no final dos anos 60, na sequência do luto académico, desaparecendo nos anos 70 quando, com a explosão do 25 de Abril, as universidades se transformaram num palco de agitação política, ocupações e transformações sociais e culturais profundíssimas.
A praxe como a conhecemos regressa nos 80, na sequência do fim do luto académico em Coimbra e do resfriamento da atividade política nos meios estudantis, acompanhando o projeto de reorganização da universidade portuguesa que começa com a abertura do sistema aos privados e com as primeiras intenções de mercantilização do ensino. É depois desta década que a praxe se expande ao conjunto do país e a muitas universidades onde nunca constituiu qualquer “tradição”.
O crescimento do movimento praxista desde os anos 90 teve como natural consequência a proliferação de inúmeros casos de violência. No livro Desobedecer à Praxe (Deriva, 2015) que escrevi com o realizador Bruno Morais Cabral, analisámos os casos que deram origem a denúncias públicas, entre 1999 e 2014, e constatámos que foram mais de duas dezenas as situações de violência, agressões, humilhações sexuais, lesões físicas profundas ou até de mortes trágicas ocorridas em contexto de praxe. Muitos outros casos não vieram a público, ficando abafados pelos pactos de silêncio das comissões de praxe, pela ausência de apoio às vítimas e pela falta de coragem de muitos direções estudantis e instituições de ensino superior.
A escalada de violência e os valores profundamente retrógrados que estão na raiz da praxe, têm sido alvo, ano após anos, de denúncia pública e agitação nas universidades e fora delas. Desta vez, essa agitação atravessou os muros da academia e chegou à Assembleia da República que, no passado dia 5 de Fevereiro, chegou a um compromisso sobre o combate às praxes académicas, aprovando sem votos contra um conjunto recomendações propostas pelo BE (Projeto de Resolução n.º 21/XIII/1.ª) PS (Projeto de Resolução n.º 124/XIII/1ª) e CDS (Projeto de Resolução n.º 122/XIII/1ª). Estas recomendações assentam em três objetivos: dar informação; proteger as vítimas; e responsabilizar as instituições e os estudantes pela criação de alternativas às práticas de praxe.
Quanto ao objetivo da informação, o parlamento propõe a realização de um estudo sobre a realidade da praxe a nível nacional, a distribuição de um folheto que alerte para as consequências disciplinares e penais que a praxe pode ter, a elaboração de um conjunto de documentos de apoio às instituições para a prevenção da violência, a realização de questionários periódicos e anónimos sobre as atividades de praxe e a criação de campanhas de tolerância zero aos abusos.
Quanto à proteção das vítimas, propõe-se a criação e reforço de redes de apoio, que permitam um acompanhamento dos estudantes ao nível psicológico e jurídico, garantindo igualmente o reforço dos mecanismos denúncia.
Quanto à responsabilização pelo combate ao fenómeno, o parlamento recomenda a obrigação das instituições realizarem atividades de receção alternativas para os novos alunos, de caráter lúdico e formativo, através de um gabinete de apoio à integração académica. Para além disso, propõe ainda que as instituições e associações académicas promovam uma ação pedagógica que defenda os estudantes e reforce os mecanismos de responsabilização e denúncia.
Mas não nos iludamos. Para que estas medidas saiam do papel é preciso que as direções das instituições de ensino superior e o movimento estudantil, no seu conjunto, assumam a sua responsabilidade. O parlamento pode, deve, e ainda bem que deu um sinal político claro sobre este assunto. Mas acabar com o espetáculo degradante das praxes e proteger as suas vítimas, implica, por um lado, que as reitorias se esforcem muito mais do que o estão a fazer agora, e por outro, que o movimento estudantil crie alternativas à praxe, preenchendo as universidades com outras formas de socialização estudantil.
Todas as pessoas querem que os novos alunos sejam integrados nas universidades. A pergunta que devemos fazer é quais são os valores que devem estar inerentes a essa integração. Substituir os valores da praxe, isto é, da verticalidade, da hierarquia e da obediência ao superior, pelos valores da horizontalidade, do companheirismo e da igualdade, é uma tarefa urgente para quem já se cansou de esperar e já não suporta continuar a viver no século passado. Já é tempo de não perdermos mais tempo.
Sociólogo, investigador e co-autor do livro “Desobedecer à Praxe” (Deriva, 2015)
JOÃO MINEIRO
18/02/2016 - 00:15
Público
No passado dia 5 de Fevereiro, a Assembleia da República aprovou um conjunto de recomendações relacionadas com a questão das praxes académicas. Nelas os grupos parlamentares procuraram ensaiar um conjunto de respostas novas para enfrentar um problema que está longe de ser novo na sociedade portuguesa. Na verdade, desde pelo menos 1727 que os rituais de receção aos novos alunos nas universidades são alvos de contestação. Lembremos-nos que foi nessa data que curiosamente o rei absolutista D. João V declarou que “mando que todo e qualquer estudante que por obra ou palavra ofender a outro com o pretexto de novato, ainda que seja levemente, lhe sejam riscados os cursos”. Mas a proibição não impediu que no século XIX os mais comuns rituais de receção aos estudantes fossem coisas tão bárbaras como o canelão, que consistia em dar pontapés nas canelas dos mais novos, o rapanço, no qual se cortava o cabelo, e a pastada, em que os novatos tinham que simular que eram animais comendo o seu pasto.
Estes rituais bárbaros, chamados de “praxe” na segunda metade do século XIX, haviam de suscitar enorme agitação nas universidades e na sociedade ao longo de todo o século XX. A abolição do canelão em 1902 chamou a atenção de republicanos e progressistas que, já depois da instauração da República, aboliram também a praxe académica. A praxe voltará a ser reposta em 1919 e nas décadas seguintes há-de ser recuperada como símbolo da academia e do seu conservadorismo durante o Estado Novo. Mas essa recuperação não resistiu aos ventos de liberdade que se fizeram sentir nos anos 60 e 70. A dissidência política e cultural dos meios estudantis, fortemente organizada em torno da crítica ao regime e à guerra colonial, e que teve nas crises académicas de 62 e 69 a sua melhor expressão, fez com que se acentuasse uma contradição entre o discurso fortemente politizado que se expandia no movimento estudantil, e as práticas mais conservadoras que persistiam na academia, pautando quer pelo elitismo em relação ao exterior, quer pela forte hierarquia no seu interior. Esse paradoxo crescente explica, em parte, que a praxe tenha entrado naturalmente em desuso no final dos anos 60, na sequência do luto académico, desaparecendo nos anos 70 quando, com a explosão do 25 de Abril, as universidades se transformaram num palco de agitação política, ocupações e transformações sociais e culturais profundíssimas.
A praxe como a conhecemos regressa nos 80, na sequência do fim do luto académico em Coimbra e do resfriamento da atividade política nos meios estudantis, acompanhando o projeto de reorganização da universidade portuguesa que começa com a abertura do sistema aos privados e com as primeiras intenções de mercantilização do ensino. É depois desta década que a praxe se expande ao conjunto do país e a muitas universidades onde nunca constituiu qualquer “tradição”.
O crescimento do movimento praxista desde os anos 90 teve como natural consequência a proliferação de inúmeros casos de violência. No livro Desobedecer à Praxe (Deriva, 2015) que escrevi com o realizador Bruno Morais Cabral, analisámos os casos que deram origem a denúncias públicas, entre 1999 e 2014, e constatámos que foram mais de duas dezenas as situações de violência, agressões, humilhações sexuais, lesões físicas profundas ou até de mortes trágicas ocorridas em contexto de praxe. Muitos outros casos não vieram a público, ficando abafados pelos pactos de silêncio das comissões de praxe, pela ausência de apoio às vítimas e pela falta de coragem de muitos direções estudantis e instituições de ensino superior.
A escalada de violência e os valores profundamente retrógrados que estão na raiz da praxe, têm sido alvo, ano após anos, de denúncia pública e agitação nas universidades e fora delas. Desta vez, essa agitação atravessou os muros da academia e chegou à Assembleia da República que, no passado dia 5 de Fevereiro, chegou a um compromisso sobre o combate às praxes académicas, aprovando sem votos contra um conjunto recomendações propostas pelo BE (Projeto de Resolução n.º 21/XIII/1.ª) PS (Projeto de Resolução n.º 124/XIII/1ª) e CDS (Projeto de Resolução n.º 122/XIII/1ª). Estas recomendações assentam em três objetivos: dar informação; proteger as vítimas; e responsabilizar as instituições e os estudantes pela criação de alternativas às práticas de praxe.
Quanto ao objetivo da informação, o parlamento propõe a realização de um estudo sobre a realidade da praxe a nível nacional, a distribuição de um folheto que alerte para as consequências disciplinares e penais que a praxe pode ter, a elaboração de um conjunto de documentos de apoio às instituições para a prevenção da violência, a realização de questionários periódicos e anónimos sobre as atividades de praxe e a criação de campanhas de tolerância zero aos abusos.
Quanto à proteção das vítimas, propõe-se a criação e reforço de redes de apoio, que permitam um acompanhamento dos estudantes ao nível psicológico e jurídico, garantindo igualmente o reforço dos mecanismos denúncia.
Quanto à responsabilização pelo combate ao fenómeno, o parlamento recomenda a obrigação das instituições realizarem atividades de receção alternativas para os novos alunos, de caráter lúdico e formativo, através de um gabinete de apoio à integração académica. Para além disso, propõe ainda que as instituições e associações académicas promovam uma ação pedagógica que defenda os estudantes e reforce os mecanismos de responsabilização e denúncia.
Mas não nos iludamos. Para que estas medidas saiam do papel é preciso que as direções das instituições de ensino superior e o movimento estudantil, no seu conjunto, assumam a sua responsabilidade. O parlamento pode, deve, e ainda bem que deu um sinal político claro sobre este assunto. Mas acabar com o espetáculo degradante das praxes e proteger as suas vítimas, implica, por um lado, que as reitorias se esforcem muito mais do que o estão a fazer agora, e por outro, que o movimento estudantil crie alternativas à praxe, preenchendo as universidades com outras formas de socialização estudantil.
Todas as pessoas querem que os novos alunos sejam integrados nas universidades. A pergunta que devemos fazer é quais são os valores que devem estar inerentes a essa integração. Substituir os valores da praxe, isto é, da verticalidade, da hierarquia e da obediência ao superior, pelos valores da horizontalidade, do companheirismo e da igualdade, é uma tarefa urgente para quem já se cansou de esperar e já não suporta continuar a viver no século passado. Já é tempo de não perdermos mais tempo.
Sociólogo, investigador e co-autor do livro “Desobedecer à Praxe” (Deriva, 2015)
JOÃO MINEIRO
18/02/2016 - 00:15
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