Abril

Em que mundo ainda se pode dormir o sono dos justos? Todavia, é mais realidade da Europa

Novas qualidades 

Abril, o mais primaveril dos meses, tacteia-se numa Europa a braços com a crise económica, o absurdo dos refugiados e a ameaça do terrorismo. Em verdade, tal tríade problemática, com mais ou menos intensidade, é realidade global. Em que mundo ainda se pode dormir o sono dos justos? Todavia, é mais realidade na Europa. Para uns, trata-se de um determinismo civilizacional, premonição a cumprir-se, posto cíclica a crise como outro lado da moeda ao bem-estar, à estabilidade e à paz. Para outros, esta tempestade não passa de corolário da sementeira do vento. Talvez um caminho do meio abordasse a atual ordem mundial, incorporando em si-própria a sua contradição. Uma espécie de dialética. Olha-se para este mês de Abril, quiçá porque há primavera, com alguma esperança. E, se assim for, preparemo-nos para novos cenários. Afinal, Luís Vaz de Camões, sábio poeta da epopeia do morfismo das realidades, já dizia que “Todo o Mundo é composto de mudança,/?Tomando sempre novas qualidades”. Oxalá os tempos vindouros nos tragam ‘novas qualidades’.

Esplendorosos navios 

No alto da ilha, como se fosse o vigia de um forte e tivesse baluartes por cuidados, o Poeta vê chegar os esplendorosos navios de cruzeiro. Esventrando a Baía, as naves descarregam turistas que, ao longo do dia, percorrem a cidade e os arrabaldes. Andam em bandos, tiram fotografias, utilizam as casas de banho dos bares e restaurantes e recolhem-se ao fim do dia para o próximo destino. Quando partem os navios, o Poeta consegue descortinar o sino da igreja e dar de comer aos pombos na calçada. O horizonte, se pelo crepúsculo, ganha cores fantásticas e, se de noite, estrelas para o espetáculo do zodíaco. Alguém dirá, sem fazer as contas do dia, que a economia não se faz com quietude e que o desenvolvimento tem os custos da invasão. Não querendo fazer as vezes do Velho de Restelo, lá porque o Colunista vem revisitando Camões, aquiesce o Poeta pela beleza de só haver reminiscência do esplendor que, agora a fazer parte do roteiro internacional, aporta à ilha. Entrementes, tão logo amanheça, eis que, em solilóquio pelo miradouro, qual vigia de um forte e cuidador de baluartes, assíduo e pontual...que venham os esplendorosos navios de cruzeiro.


‘Omeros’

Não se pode recusar à ilha a propositura da Odisseia. As ínsulas são uma rapsódia e é poder cantá-las, circum-navegá-las. Tenha-se, aos ínfimos cuidados a fé à deusa da sabedoria, da razão e da guerra, para que, em mendigo e entre o povo, possa triunfar a viagem. De vez em quando, um homem com a cabeça de touro e a viver preso no labirinto nos ressurge para que a lenda se repita. Desde Homero, muitos foram os testemunhos de seus ‘rapsodos’, qual Camões em viagens mais ao largo, Joyce com a cidade-personagem de Dublin ou Walcott com os pescadores negros de Santa Lúcia. Afinal, tudo é Ulisses, Bloon e Sete Mares. Tudo é ilha e seu incessante redor. Abril que nos enlaça com o seu ardil.

Filinto Elísio
Diário de Notícias da Madeira 
Segunda, 4 de Abril de 2016