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A moral dos offshores
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A moral dos offshores
Estão as elites políticas e empresariais das sociedades democráticas mais próximas dos interesses da sua própria população, ou estão mais próximas dos interesses de outras elites, incluindo as de sociedades autocráticas?
1. Nietzsche desprezava as actividades económicas e empresariais. Via-as como manifestação da mediocridade liberal-burguesa e da degenerescência democrática, ambas indignas da elite superior dos übermensch ou sobre-humanos. Ironicamente, o pensamento de Nietzsche sobre a moral poderia ser muito útil aos actuais senhores do mundo. Também a Mossack Fonseca — a empresa de serviços jurídicos e gestão de fortunas com sede no Panamá, fundada por Jürgen Cossack e Ramón Fonseca —, poderia justificar as suas actividades e a conduta dos seus clientes face à pressão e condenação da opinião pública democrática. No século XXI os übermensch não são as bestas louras, nem os guerreiros bárbaros do passado, retratados por Nietzsche. Não são, também, o homem novo do fascismo ou do nazismo, inspirados na sua retórica grandiosa e violenta. Hoje são os triunfadores da “vontade de poder” num mundo globalizado — donos de grandes empresas multinacionais, políticos democráticos e autocráticos, estrelas do desporto, da música ou do cinema. Sentem-se, a si próprios, “para além do bem e do mal”, com regras próprias — morais e jurídicas —, sem um problema de consciência pois o mundo é deles.
2. Nietzsche explica a origem e diferenças entre a moral de senhores e a moral de escravos numa linguagem crua. A primeira, é intrinsecamente nobre, apanágio de uma elite. A segunda, a da populaça em geral, deriva do ressentimento dos fracos e dos falhados face à elite dominadora. “O tipo aristocrático de homem sente-se a si próprio como determinador dos valores, não necessita que o aprovem, opina que ‘o que prejudica a mim, é prejudicial em si’, sabe que é só ele quem confere honra às coisas, quem é criador de valores. Honra tudo o que conhece em si: semelhante moral é autoglorificação […] Diferente é o segundo tipo de moral, a moral de escravos. Admitindo-se que os violentados, os oprimidos, os sofredores, os servis, os inseguros e cansados de consigo mesmos moralizem: o que haveria de comum nas suas apreciações morais? […] O olhar do escravo é desfavorável às virtudes do poderoso, tem uma subtil desconfiança contra tudo o que aquele honra como ‘bom’. […] Inversamente, salientam-se e inundam-se de luz as qualidades que servem para aliviar a vida dos que sofrem: aqui prestam-se honras à compaixão, à mão obsequiosa e auxiliadora [...] Por toda a parte onde prepondera a moral de escravo, a linguagem tem tendência a aproximar as palavras ‘bom’ e ‘estúpido’. (Ver Friedrich Nietzsche, Para Além de Bem e Mal, trad. port., Guimarães Editores, 8ª ed., 2004, p.186 e ss).
3. Um estudo elaborado por James S. Henry para a Tax Justice Network, publicado em 2012 (Ver The Price of Offshore Revisited), denunciava a forma como elite global estava a usar as zonas cinzentas da legislação fiscal, nacional e internacional. O estudo calculava que entre 21 a 32 triliões de dólares estivessem colocados em offshores. É imoral? Ofende a ideia de justiça? Para Nietzsche, provavelmente não seria. Eis o seu possível argumentário. “Correndo o risco de desgostar ouvidos inocentes eu afirmo: o egoísmo pertence à natureza da alma aristocrática, ou seja, àquela fé inabalável segundo a qual a um ser como ‘nós somos’, os outros seres têm por natureza de sujeitar-se e sacrificar-se. A alma aristocrática aceita esse facto do seu egoísmo sem qualquer ponto de interrogação e mesmo sem a sensação de dureza, coacção, arbitrariedade, antes pelo contrário como algo que possa estar fundamento na lei primordial das coisas: — se procurasse um nome para tal diria que ‘é a própria justiça’” (Nietzsche, idem, p. 198).
4. Grão-Ducado do Luxemburgo, Principado do Mónaco, Principado do Liechtenstein, Gibraltar, lhas de Jersey e Guernsey. Locais da nobreza do passado e dos senhores do mundo do presente. Os offshores são contra a democracia? Mas como — questionarão cinicamente —, se estão sob a jurisdição de Estados democráticos e até atraem investimento estrangeiro para o país? Não são os representantes do povo que legislam? Não querem criar emprego e riqueza para a população? Tal como é evidenciado em The Price of Offshore Revisited, há toda uma indústria à volta dos offshores, largamente lucrativa, envolvendo os grandes bancos internacionais, inúmeras empresas de serviços de consultadoria legal e uma miríade de actividades de gestão. “Embora existam milhões de empresas e milhares de bancos pouco capitalizadas nesses paraísos fiscais, poucas pessoas ricas querem depender deles para gerir e proteger sua riqueza” (p. 19). Em última análise os seus detentores precisam de ter acesso aos benefícios dos mercados desenvolvidos, tais como mercados regulamentados de valores mobiliários, bancos garantidos por grandes populações de contribuintes e companhias de seguros, legislação e serviços legais sofisticados, etc. Onde se encontram estes? Não é no Panamá, nas Bermudas, nas Ilhas Caimão ou em Antígua, mas nos EUA, Reino Unido, Suíça, Holanda ou Alemanha, entre outros.
5. Quando pensamos em tudo isto uma dúvida perturbadora vem à mente. Estão as elites políticas e empresariais das sociedades democráticas mais próximas dos interesses da sua própria população, ou estão mais próximas dos interesses de outras elites, incluindo as de sociedades autocráticas? A existência de uma duplicidade de códigos morais e jurídicos não é um acaso. Sugere pontos de contacto e partilhas de interesses entre ambas. A diferença fundamental é que nas democracias isso isso não é aceite na moralidade política pública — daí a atrapalhação do Primeiro-Ministro da Islândia e também do britânico, face às recentes revelações sobre os offshores. Não podem fazer, por exemplo, como Vladimir Putin na Rússia ou Ilham Aliyev no Azerbeijão. Mas, em democracias, a discrepância da moralidade pública face à prática política e empresarial pode ser grande. Nenhum político democrático assume, abertamente, ser seguidor dos princípios amorais de Maquiavel. Podem nem o ter lido. Mas não faltam exemplos de que a prática política ande perigosamente próxima. Os senhores do mundo podem também nunca ter lido, ou ouvido, sequer, falar de Nietzsche. Mas sentem-se e actuam como sobre-humanos saídos dos seus livros. Com regras morais e jurídicas à medida do seu "bem" e "mal". O resto é ressentimento das massas.
Post scriptum. Alguns leitores mais entusiastas de Nietzsche — e há muitos no mundo académico e fora dele — ficarão incrédulos. Este não é o verdadeiro pensamento do seu filósofo. Mas saber qual é o verdadeiro pensamento de Nietzsche é uma questão sem resposta — ou melhor, com múltiplas respostas subjectivas e contraditórias: “Contra o positivismo que se detém antes dos fenómenos dizendo que ‘há apenas factos’, eu diria: não, são precisamente os factos que não existem, apenas há interpretações… A vulgata usual desta citação é “não há factos, apenas interpretações”. (Ver The Portable Nietzsche, editado e traduzido por Walter Kaufmann, Penguin, 1988, reimpressão, p. 458).
Investigador
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES
12/04/2016 - 19:20
Público
1. Nietzsche desprezava as actividades económicas e empresariais. Via-as como manifestação da mediocridade liberal-burguesa e da degenerescência democrática, ambas indignas da elite superior dos übermensch ou sobre-humanos. Ironicamente, o pensamento de Nietzsche sobre a moral poderia ser muito útil aos actuais senhores do mundo. Também a Mossack Fonseca — a empresa de serviços jurídicos e gestão de fortunas com sede no Panamá, fundada por Jürgen Cossack e Ramón Fonseca —, poderia justificar as suas actividades e a conduta dos seus clientes face à pressão e condenação da opinião pública democrática. No século XXI os übermensch não são as bestas louras, nem os guerreiros bárbaros do passado, retratados por Nietzsche. Não são, também, o homem novo do fascismo ou do nazismo, inspirados na sua retórica grandiosa e violenta. Hoje são os triunfadores da “vontade de poder” num mundo globalizado — donos de grandes empresas multinacionais, políticos democráticos e autocráticos, estrelas do desporto, da música ou do cinema. Sentem-se, a si próprios, “para além do bem e do mal”, com regras próprias — morais e jurídicas —, sem um problema de consciência pois o mundo é deles.
2. Nietzsche explica a origem e diferenças entre a moral de senhores e a moral de escravos numa linguagem crua. A primeira, é intrinsecamente nobre, apanágio de uma elite. A segunda, a da populaça em geral, deriva do ressentimento dos fracos e dos falhados face à elite dominadora. “O tipo aristocrático de homem sente-se a si próprio como determinador dos valores, não necessita que o aprovem, opina que ‘o que prejudica a mim, é prejudicial em si’, sabe que é só ele quem confere honra às coisas, quem é criador de valores. Honra tudo o que conhece em si: semelhante moral é autoglorificação […] Diferente é o segundo tipo de moral, a moral de escravos. Admitindo-se que os violentados, os oprimidos, os sofredores, os servis, os inseguros e cansados de consigo mesmos moralizem: o que haveria de comum nas suas apreciações morais? […] O olhar do escravo é desfavorável às virtudes do poderoso, tem uma subtil desconfiança contra tudo o que aquele honra como ‘bom’. […] Inversamente, salientam-se e inundam-se de luz as qualidades que servem para aliviar a vida dos que sofrem: aqui prestam-se honras à compaixão, à mão obsequiosa e auxiliadora [...] Por toda a parte onde prepondera a moral de escravo, a linguagem tem tendência a aproximar as palavras ‘bom’ e ‘estúpido’. (Ver Friedrich Nietzsche, Para Além de Bem e Mal, trad. port., Guimarães Editores, 8ª ed., 2004, p.186 e ss).
3. Um estudo elaborado por James S. Henry para a Tax Justice Network, publicado em 2012 (Ver The Price of Offshore Revisited), denunciava a forma como elite global estava a usar as zonas cinzentas da legislação fiscal, nacional e internacional. O estudo calculava que entre 21 a 32 triliões de dólares estivessem colocados em offshores. É imoral? Ofende a ideia de justiça? Para Nietzsche, provavelmente não seria. Eis o seu possível argumentário. “Correndo o risco de desgostar ouvidos inocentes eu afirmo: o egoísmo pertence à natureza da alma aristocrática, ou seja, àquela fé inabalável segundo a qual a um ser como ‘nós somos’, os outros seres têm por natureza de sujeitar-se e sacrificar-se. A alma aristocrática aceita esse facto do seu egoísmo sem qualquer ponto de interrogação e mesmo sem a sensação de dureza, coacção, arbitrariedade, antes pelo contrário como algo que possa estar fundamento na lei primordial das coisas: — se procurasse um nome para tal diria que ‘é a própria justiça’” (Nietzsche, idem, p. 198).
4. Grão-Ducado do Luxemburgo, Principado do Mónaco, Principado do Liechtenstein, Gibraltar, lhas de Jersey e Guernsey. Locais da nobreza do passado e dos senhores do mundo do presente. Os offshores são contra a democracia? Mas como — questionarão cinicamente —, se estão sob a jurisdição de Estados democráticos e até atraem investimento estrangeiro para o país? Não são os representantes do povo que legislam? Não querem criar emprego e riqueza para a população? Tal como é evidenciado em The Price of Offshore Revisited, há toda uma indústria à volta dos offshores, largamente lucrativa, envolvendo os grandes bancos internacionais, inúmeras empresas de serviços de consultadoria legal e uma miríade de actividades de gestão. “Embora existam milhões de empresas e milhares de bancos pouco capitalizadas nesses paraísos fiscais, poucas pessoas ricas querem depender deles para gerir e proteger sua riqueza” (p. 19). Em última análise os seus detentores precisam de ter acesso aos benefícios dos mercados desenvolvidos, tais como mercados regulamentados de valores mobiliários, bancos garantidos por grandes populações de contribuintes e companhias de seguros, legislação e serviços legais sofisticados, etc. Onde se encontram estes? Não é no Panamá, nas Bermudas, nas Ilhas Caimão ou em Antígua, mas nos EUA, Reino Unido, Suíça, Holanda ou Alemanha, entre outros.
5. Quando pensamos em tudo isto uma dúvida perturbadora vem à mente. Estão as elites políticas e empresariais das sociedades democráticas mais próximas dos interesses da sua própria população, ou estão mais próximas dos interesses de outras elites, incluindo as de sociedades autocráticas? A existência de uma duplicidade de códigos morais e jurídicos não é um acaso. Sugere pontos de contacto e partilhas de interesses entre ambas. A diferença fundamental é que nas democracias isso isso não é aceite na moralidade política pública — daí a atrapalhação do Primeiro-Ministro da Islândia e também do britânico, face às recentes revelações sobre os offshores. Não podem fazer, por exemplo, como Vladimir Putin na Rússia ou Ilham Aliyev no Azerbeijão. Mas, em democracias, a discrepância da moralidade pública face à prática política e empresarial pode ser grande. Nenhum político democrático assume, abertamente, ser seguidor dos princípios amorais de Maquiavel. Podem nem o ter lido. Mas não faltam exemplos de que a prática política ande perigosamente próxima. Os senhores do mundo podem também nunca ter lido, ou ouvido, sequer, falar de Nietzsche. Mas sentem-se e actuam como sobre-humanos saídos dos seus livros. Com regras morais e jurídicas à medida do seu "bem" e "mal". O resto é ressentimento das massas.
Post scriptum. Alguns leitores mais entusiastas de Nietzsche — e há muitos no mundo académico e fora dele — ficarão incrédulos. Este não é o verdadeiro pensamento do seu filósofo. Mas saber qual é o verdadeiro pensamento de Nietzsche é uma questão sem resposta — ou melhor, com múltiplas respostas subjectivas e contraditórias: “Contra o positivismo que se detém antes dos fenómenos dizendo que ‘há apenas factos’, eu diria: não, são precisamente os factos que não existem, apenas há interpretações… A vulgata usual desta citação é “não há factos, apenas interpretações”. (Ver The Portable Nietzsche, editado e traduzido por Walter Kaufmann, Penguin, 1988, reimpressão, p. 458).
Investigador
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES
12/04/2016 - 19:20
Público
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