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CONSTITUIÇÃO: Este país não é para matemáticos
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CONSTITUIÇÃO: Este país não é para matemáticos
A minha falta de humanismo diz-me que a lógica é aquilo que faz da lei justa e que, talvez, com mais respeito pela lógica seríamos um país europeu de facto e não por caridade dos nossos vizinhos.
Nas várias discussões que tenho com os meus amigos, de uma forma ou de outra, vem muitas vezes à conversa a falta de apetência dos nossos compatriotas para o raciocínio lógico. Eu digo que os nossos compatriotas não têm apetência para a lógica representada pela matemática, isto é, para levarem um raciocínio de uma ponta à outra, de causa para consequência, até que se atinge uma conclusão que representa a mesma coisa que os pressupostos iniciais, mas que nos diz muito mais e nos traz muito mais conhecimento. Eles dizem que me falta um espírito humanista, palavra que sempre entendi na minha adolescência como sinónimo de burro e cresci com essa certeza. Hoje, sou um calhau desprovido de humanismo, razão pela qual nunca entenderei este país onde vivo. E é desta incompreensão causada pela minha ignara escravidão às regras da lógica de que vos quero falar. Por isso, nem vou falar de matemática particularmente complicada. Vou falar de leis, aquelas regras que, supostamente, governam a nossa vida em sociedade.
Como não percebo nada de Direito, até me posso dar ao atrevimento de ver pela lógica algo que, nos últimos cinco anos, assumiu um protagonismo anormal para aquilo que deveria ser: a lei fundamental da República Portuguesa. Quando algo que é fundamental não precisa de grande explicação. Já a Constituição da República Portuguesa gera um bombardeamento diário de explicações. E, se tal acontece, é porque não tem lógica, as regras não se deduzem em consequência dos princípios. Moisés recolheu os mandamentos de Deus há milénios e não precisam de explicação. Já a Assembleia Constituinte fez a CRP há 40 anos e aquilo parece ter sido escrito em aramaico antigo, de onde aparecem surpresas de três em três meses, depois da interpretação das escrituras por vestais certificadas. Reparem que não estou a dizer que é (ou não é) diferente das outras, só estou a dizer que não me faz sentido que assim seja, talvez pela minha imunidade ao humanismo. Nem consigo imaginar o mundo que teríamos se Euclides ou Kolmogorov tivessem um “talento” igual aos constituintes.
Senão, vejamos. Por exemplo, algo que é tendencialmente ou progressivamente gratuito, não sobe de preço. Que discussão é que isto pode trazer? Se o preço sobe, violou a tendência ou o progresso. Podem por 13 juízes a votar sobre o assunto, a lógica não vai mudar. Eu percebo o argumento de que quando as propinas foram definidas o valor da propina era um e, agora, por causa da desvalorização da moeda, é outro. Sim, desde que a propina foi definida, esta foi tendencialmente gratuita e, por isso, está certo. Quando subo o preço, deixa de estar. Logo, subir de preço nas propinas das universidades está errado. É, pela lógica, inconstitucional, independentemente do número de juízes que jurem o contrário. Parece matemática demais para os órgãos de soberania nacionais? A história diz que sim, apesar de só estar em causa um sinal de “maior”. Mas, insisto, se calhar um calhau ignorante dos princípios humanistas como eu pode estar-lhe a escapar “outras lógicas”.
Todos somos iguais perante a lei e o Estado. Este é um princípio civilizacional tão básico, que até consta das leis fundamentais dos estados que não o praticam, como é o caso da República Portuguesa. Agora, vamos começar a preencher as nossas declarações de impostos e uns têm uma taxa sobre os rendimentos menores do que os outros. Como é que isto se pode justificar? Dizem-me que é porque existe outro artigo na Constituição que diz que os impostos sobre o rendimento são progressivos. Sim, se tivermos todos a mesma taxa, desde que esta seja maior que zero, então os impostos são, de facto, progressivos. Bem sei que já não envolve só um sinal de maior ou menor, mas continuamos na aritmética simples. O meu filho mais novo poderia concluir que a mesma taxa para todos não só cumpre com a lei fundamental, como é a única forma de cumprir. Mas ele herdou a incapacidade do pai de entender estas coisas, dado que ele também é mais dado à lógica, apesar de estar ainda no 8º ano.
Já sei que me vão perguntar, mas, então, quem é mais rico não devia pagar mais impostos? Se a taxa é a mesma, repito, paga de facto mais impostos. É claro que ficamos um pouco aquém do princípio não escrito dos “ricos que paguem a crise”, mas a verdade matemática é essa.
Podemos, para salvar a coisa, argumentar que é um princípio genérico, uma orientação genérica para o legislador – desculpa que se ouve sempre quando a lógica já foi ao tapete – que o que se quer é que as pessoas sejam “genericamente iguais em riqueza”. Mas então, porque é que os juízes não aceitaram a redução dos salários na função pública sabendo que o salário médio, aí, é muito maior que no privado e o problema do défice está no estado?
Certamente, todos nos recordamos do episódio em que o Tribunal Constitucional redefiniu, para nós escravos da lógica matemática, o conceito de igualdade. Este passou a ser entendido, pelo menos no edifício legal português, como “igualdade na primeira derivada”. Já é matemática do 11º ano, mas eu explico. Não temos que ser iguais no instante em que fazemos uma lei, mas a variação introduzida na lei tem que ser igual para todos. Ou seja, se corto nuns 10%, tenho que cortar 10% em todos, independentemente de uns poderem ganhar mais que os outros.
Esperem, mas isso não é exatamente a mesma coisa que uma taxa igual para todos? É. Do ponto de vista matemático, é exatamente a mesma coisa. E é aqui que nós, ignaros escravos da lógica, começamos a patinar. É, talvez, por isso, que os desígnios do país são entregues a pessoas com um nível de raciocínio humanista muito para lá das nossas capacidades. Até porque nós nos iríamos questionar sobre o princípio da igualdade nas outras derivadas, na de ordem zero, ou na de segunda ordem, isto é, se se justifica impostos progressivos em pessoas que tiveram cortes iguais na primeira derivada, embora suspeite que o resultado seria basicamente o mesmo: aquele que fosse mais proveitoso para quem trabalha para o Estado, que parece a solução mais humanista.
Se calhar o leitor já está confuso com tanta matemática, ou falta dela, mas acho que já deu para um primeiro cheirinho. A minha falta de humanismo diz-me que a lógica é aquilo que faz da lei justa e que separa os países do terceiro mundo dos países do primeiro. Que, talvez, com mais respeito pela lógica seríamos um país europeu de facto e não por caridade dos nossos vizinhos. Mas que sei eu destas coisas do primado do homem sobre a lógica?…
PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer
João Pires da Cruz
19/4/2016, 0:05
Observador
Nas várias discussões que tenho com os meus amigos, de uma forma ou de outra, vem muitas vezes à conversa a falta de apetência dos nossos compatriotas para o raciocínio lógico. Eu digo que os nossos compatriotas não têm apetência para a lógica representada pela matemática, isto é, para levarem um raciocínio de uma ponta à outra, de causa para consequência, até que se atinge uma conclusão que representa a mesma coisa que os pressupostos iniciais, mas que nos diz muito mais e nos traz muito mais conhecimento. Eles dizem que me falta um espírito humanista, palavra que sempre entendi na minha adolescência como sinónimo de burro e cresci com essa certeza. Hoje, sou um calhau desprovido de humanismo, razão pela qual nunca entenderei este país onde vivo. E é desta incompreensão causada pela minha ignara escravidão às regras da lógica de que vos quero falar. Por isso, nem vou falar de matemática particularmente complicada. Vou falar de leis, aquelas regras que, supostamente, governam a nossa vida em sociedade.
Como não percebo nada de Direito, até me posso dar ao atrevimento de ver pela lógica algo que, nos últimos cinco anos, assumiu um protagonismo anormal para aquilo que deveria ser: a lei fundamental da República Portuguesa. Quando algo que é fundamental não precisa de grande explicação. Já a Constituição da República Portuguesa gera um bombardeamento diário de explicações. E, se tal acontece, é porque não tem lógica, as regras não se deduzem em consequência dos princípios. Moisés recolheu os mandamentos de Deus há milénios e não precisam de explicação. Já a Assembleia Constituinte fez a CRP há 40 anos e aquilo parece ter sido escrito em aramaico antigo, de onde aparecem surpresas de três em três meses, depois da interpretação das escrituras por vestais certificadas. Reparem que não estou a dizer que é (ou não é) diferente das outras, só estou a dizer que não me faz sentido que assim seja, talvez pela minha imunidade ao humanismo. Nem consigo imaginar o mundo que teríamos se Euclides ou Kolmogorov tivessem um “talento” igual aos constituintes.
Senão, vejamos. Por exemplo, algo que é tendencialmente ou progressivamente gratuito, não sobe de preço. Que discussão é que isto pode trazer? Se o preço sobe, violou a tendência ou o progresso. Podem por 13 juízes a votar sobre o assunto, a lógica não vai mudar. Eu percebo o argumento de que quando as propinas foram definidas o valor da propina era um e, agora, por causa da desvalorização da moeda, é outro. Sim, desde que a propina foi definida, esta foi tendencialmente gratuita e, por isso, está certo. Quando subo o preço, deixa de estar. Logo, subir de preço nas propinas das universidades está errado. É, pela lógica, inconstitucional, independentemente do número de juízes que jurem o contrário. Parece matemática demais para os órgãos de soberania nacionais? A história diz que sim, apesar de só estar em causa um sinal de “maior”. Mas, insisto, se calhar um calhau ignorante dos princípios humanistas como eu pode estar-lhe a escapar “outras lógicas”.
Todos somos iguais perante a lei e o Estado. Este é um princípio civilizacional tão básico, que até consta das leis fundamentais dos estados que não o praticam, como é o caso da República Portuguesa. Agora, vamos começar a preencher as nossas declarações de impostos e uns têm uma taxa sobre os rendimentos menores do que os outros. Como é que isto se pode justificar? Dizem-me que é porque existe outro artigo na Constituição que diz que os impostos sobre o rendimento são progressivos. Sim, se tivermos todos a mesma taxa, desde que esta seja maior que zero, então os impostos são, de facto, progressivos. Bem sei que já não envolve só um sinal de maior ou menor, mas continuamos na aritmética simples. O meu filho mais novo poderia concluir que a mesma taxa para todos não só cumpre com a lei fundamental, como é a única forma de cumprir. Mas ele herdou a incapacidade do pai de entender estas coisas, dado que ele também é mais dado à lógica, apesar de estar ainda no 8º ano.
Já sei que me vão perguntar, mas, então, quem é mais rico não devia pagar mais impostos? Se a taxa é a mesma, repito, paga de facto mais impostos. É claro que ficamos um pouco aquém do princípio não escrito dos “ricos que paguem a crise”, mas a verdade matemática é essa.
Podemos, para salvar a coisa, argumentar que é um princípio genérico, uma orientação genérica para o legislador – desculpa que se ouve sempre quando a lógica já foi ao tapete – que o que se quer é que as pessoas sejam “genericamente iguais em riqueza”. Mas então, porque é que os juízes não aceitaram a redução dos salários na função pública sabendo que o salário médio, aí, é muito maior que no privado e o problema do défice está no estado?
Certamente, todos nos recordamos do episódio em que o Tribunal Constitucional redefiniu, para nós escravos da lógica matemática, o conceito de igualdade. Este passou a ser entendido, pelo menos no edifício legal português, como “igualdade na primeira derivada”. Já é matemática do 11º ano, mas eu explico. Não temos que ser iguais no instante em que fazemos uma lei, mas a variação introduzida na lei tem que ser igual para todos. Ou seja, se corto nuns 10%, tenho que cortar 10% em todos, independentemente de uns poderem ganhar mais que os outros.
Esperem, mas isso não é exatamente a mesma coisa que uma taxa igual para todos? É. Do ponto de vista matemático, é exatamente a mesma coisa. E é aqui que nós, ignaros escravos da lógica, começamos a patinar. É, talvez, por isso, que os desígnios do país são entregues a pessoas com um nível de raciocínio humanista muito para lá das nossas capacidades. Até porque nós nos iríamos questionar sobre o princípio da igualdade nas outras derivadas, na de ordem zero, ou na de segunda ordem, isto é, se se justifica impostos progressivos em pessoas que tiveram cortes iguais na primeira derivada, embora suspeite que o resultado seria basicamente o mesmo: aquele que fosse mais proveitoso para quem trabalha para o Estado, que parece a solução mais humanista.
Se calhar o leitor já está confuso com tanta matemática, ou falta dela, mas acho que já deu para um primeiro cheirinho. A minha falta de humanismo diz-me que a lógica é aquilo que faz da lei justa e que separa os países do terceiro mundo dos países do primeiro. Que, talvez, com mais respeito pela lógica seríamos um país europeu de facto e não por caridade dos nossos vizinhos. Mas que sei eu destas coisas do primado do homem sobre a lógica?…
PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer
João Pires da Cruz
19/4/2016, 0:05
Observador
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