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A crise das ideias
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A crise das ideias
ILUSTRAÇÃO ALEX GOZBLAU
Todos procuram culpados para a crise. Mas é possível que estejamos apenas a sofrer o resultado de escolhas ao longo de séculos
Se há discussão sem fim é a que versa as origens da crise que vivemos, sem descanso nem tréguas, desde 2007. Na lista dos suspeitos estão os mercados, o capitalismo, as agências de rating, as enormes dívidas públicas e privadas, as políticas económicas erradas, o facto de vivermos acima das nossas possibilidades e mais uma caterva de factos e acontecimentos. Porém, raramente vamos mais atrás — como se a História tivesse começado na véspera e terminasse amanhã. A verdade é que uma crise desta dimensão demora muito tempo a formar-se. A fase em que estala, em que se dá a conhecer, pode ser um instante, como a falência do Lehman Brothers. Mas a questão pode ser colocada de outra maneira: Porque chegámos aqui? O que nos fez chegar aqui? Que ideias nos trouxeram até este ponto?
O sociólogo alemão Karl Mannheim (1893-1944) apresentou a história das ideias como um modelo oposto à história materialista, tipo marxista, na qual tudo, ou quase, deriva da Economia. Recusando o idealismo, aponta para outras direções, das quais o norte-americano Arthur Lovejoy (1873-1962) se apropria e desenvolve. Em resumo, que de modo nenhum é absolutamente rigoroso, dir-se-á que ambos partem do princípio de que as ideias têm consequências práticas concretas nas relações entre os indivíduos e nas sociedades de que eles participam. Mannheim, para não permitir qualquer confusão com relativismo, propôs a palavra ‘relacionismo’ para caracterizar esse tipo de relações. Já Lovejoy deixava claro que as ideias a que se refere na sua obra (que como toda a história das ideias engloba a história da ciência, a história da filosofia e a história da literatura, entre outras) são ideias concretas e não ‘ismos’.
Nesse sentido, acreditava que as revoluções americana ou francesa se deviam mais ao caminho que tinham tomado certas convicções de intelectuais provenientes da própria aristocracia do que à congeminação da historiografia marxista sobre as relações de produção ou outros aspetos da esfera económica. Lovejoy, que era bastante atacado por académicos ligados à esquerda, seria, mais tarde, justamente desprezado por concordar com o afastamento das Universidades dos membros do Partido Comunista, em plena era McCarthy. Acusava os comunistas (tal como os nazis e os fascistas) de procurarem impor uma ideia comum a uma organização universal não promovendo a liberdade de investigação, de opinião e de ensino.
A pouca atenção dada a ideias simples, em detrimento das grandes ideias, dos ‘ismos’ ou dos fluxos gerados pelas relações de produção (“toda a história é a história da luta de classes”, como postulou Marx), associada a uma ideia megalómana do positivismo, segundo a qual tudo pode ser cognoscível, deixou na esfera popular uma ideia: a de que tudo tem uma causa ou um culpado determinado — seja uma classe seja um acontecimento que coincide no tempo com o momento em que temos consciência do caminho que tomámos. E, no entanto, as grandes crises não podem ser vistas com esta facilidade.
Na atual crise o que tínhamos de subterrâneo para que ela aparecesse com tal fúria? Desde logo, a morte de Deus. “Se Deus está morto, então tudo é permitido”, como dizia um dos irmãos Karamazov no romance homónimo de Dostoievsky. Mas não foi apenas Deus que matámos; a ética republicana (entendendo-se neste caso ‘republicana’ como dizendo respeito à coisa pública, à res publica) também foi desprezada como um conjunto de conceitos antiquados; por fim, acabámos com o diferimento entre o esforço e a recompensa.
Penso que era Tocqueville quem afirmava que o “agnosticismo é um luxo a que se podem entregar as classes letradas”. Com isto, pretendia afirmar que a ideia de Deus e de recompensa divina era essencial ao funcionamento de uma sociedade mediana. Os protestantes foram sempre mais estritos (Max Weber, um dos fundadores da sociologia moderna, escreve “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, 1904), por acreditar, entre outras coisas, que a crença na recompensa celeste permitia que ela não fosse esperada de imediato. Ao mesmo tempo, Deus não permite que se trate mal os empregados como se lê em vários capítulos da Bíblia (não é por acaso que o combate ao esclavagismo se deveu em boa parte ao esforço de cristãos, nomeadamente do pastor protestante John Newton, que começou por ser comandante de navios negreiros e acabou a compor ‘Amazing Grace’, o mais famoso dos hinos antiesclavagistas).
Esta ética, que ‘obrigava’ em nome dos preceitos cristãos os crentes com dinheiro a tratar dos seus empregados muito para lá de eles poderem trabalhar, não era substancialmente diferente daquela que tinham os socialistas cristãos (leia-se Charles Dickens) e os muitos maçons que se dedicaram às primeiras obras sociais. Fosse na crítica social em forma de literatura, como o escritor de “Oliver Twist”, fosse na promoção dos próprios trabalhadores, como no caso do ‘nosso’ Bairro Grandella, por exemplo, o sentido do dever para com os outros era socialmente recompensador e constante.
A coisa pública, a res publica, era vista como algo acima de cada indivíduo, tal como os crentes colocam Deus acima de qualquer pessoa. A degradação da crença numa e noutra devoções deve-se a vários fatores, entre os quais a progressiva individualização das sociedades, o que em si é algo positivo, quando entendido que vivem num chão comum e debaixo de uma lei igual para todos. Mas, curiosamente, essa degradação deve-se, ainda a outra excelente ideia: a do Estado social.
O Estado social vem, de certa forma, institucionalizar o assistencialismo que só existia por vontade de cada patrão ou por ação de associações de classe, corporativas ou políticas, como no caso dos socialistas fabianos (o empresário socialista utópico Owen foi um dos precursores, criando escolas, centros médicos, habitações e clubes para os seus empregados nas fábricas têxteis). Mas muitos outros, na medida das possibilidades, lhe seguiram o exemplo.
No entanto, quando, em 1880, Bismarck, com o intuito de combater a social-democracia ascendente na Prússia, institui uma série de vantagens sociais (seguro de doença, acidente e invalidez, além do direito à reforma e reconhecimento do diálogo com sindicatos) e depois o Governo liberal inglês de Asquith e Churchill cria as pensões de reforma e aplica e reforça alguns desses direitos, caminhamos já no sentido do que viria a ser o Estado social. Verdadeiramente, só com Beveridge, depois da II Guerra Mundial e inspirado nas políticas keynesianas, que já tinham conduzido à criação de emprego com as grandes obras públicas nos EUA, é que se pode falar de Welfare State, Estado-providência ou Estado social.
Beneficiando cada vez mais pessoas, o Estado social tem um efeito colateral menos positivo: deixa de responsabilizar os que mais têm por esquemas de subsistência dos que não têm (a ausência de Estado social nos EUA permite que as chamadas charities ainda sejam comuns, seja através de fundações ou de indivíduos). Essa responsabilidade é passada para o Estado e o assistencialismo passa a fazer-se através dos impostos. É, claramente, mais justo e abrangente, mas permite que cada um se desresponsabilize. Por outro lado, o empregado, que paga igualmente impostos, sente-se menos ligado à empresa e ao patrão, de quem dependia a sua subsistência. Essa emancipação também permite a entrada em cena e em força dos sindicatos modernos e das organizações de trabalhadores. Por outro lado, populariza a ideia de que o Estado seria melhor patrão do que os privados, até porque tem recursos muito maiores. A famosa luta de classes de Marx trava-se em função da propriedade coletiva ser entendida como propriedade do Estado — e os resultados, obtidos na URSS, países satélites e outros onde a experiência foi feita, estiveram longe de ser positivos.
Poderíamos, ainda assim, dizer que acima de cada indivíduo subsistia uma entidade — depois da morte de Deus e da morte da causa pública entendida como dever daquilo a que se chamava “forças vivas da sociedade”. Essa entidade era o Estado. Na verdade, o Estado, durante algumas décadas do século XX, foi visto como aglutinador. Sobretudo quando se tratava do Estado-nação.
Porém, simultaneamente, duas ideias concretas e pequenas vieram minar essa e outras ideias.
A primeira foi o fim do diferimento entre esforço e recompensa. Mais uma vez não se trata de uma conspiração, mas de algo tão simples como o crédito. “Viaje agora e pague depois”. Eis uma linha simples de compreender. Temos a recompensa antes do esforço, algo que apenas acontecia a herdeiros de fortunas (uma pequeníssima percentagem de pessoas). Todos os outros teriam de aforrar, poupar, pôr de lado para a velhice e os tempos maus. Os seguros, as reformas e as pensões acabaram com essa necessidade. E o crédito deu cabo da poupança. Foi mau? Pelo contrário: permitiu a muita gente ter acesso a bens que nunca teria. O aumento da procura permitiu que esses bens fossem produzidos em massa e cada vez mais baratos, sendo acessíveis a mais pessoas. Então, qual é o problema?
O problema viu-se na década de 90 do século passado, quando uma ideia de Clinton repleta de boas intenções incentivou o crédito para aqueles que não tinham casa. Os bancos deram-no e os construtores civis ficaram com muito trabalho, mas isso conduziu à posterior crise do subprime. E não só nos EUA. O epítome dessa crise está na falência do Lehman.
Simultaneamente, outras ideias, noutros locais iam-se sedimentando. Por exemplo, a Teoria da Relatividade de Einstein, embora nada tenha que ver com isso, trouxe a ideia de que tudo é relativo. Mais tarde, o ‘Princípio da Incerteza’ (erradamente traduzido do título da obra do físico Heisenberg que, em alemão, se chama “Princípio da Indeterminação”) trouxe a ideia de que é impossível não ter dúvidas sobre a existência em si de algo e que esse algo depende do observador (na verdade a teoria diz, essencialmente, que não se pode determinar simultaneamente o lugar e a velocidade de uma partícula e que o facto de esta ser observada altera o seu comportamento; mas toda a quântica é demasiadamente complicada para a maioria dos que trabalham e estudam ciências sociais).
Recorde-se que o individualismo, tal como concebido pelo liberalismo e o capitalismo que lhe está associado, necessita de um par de coisas: um chão comum de ideias livremente trocadas, um apurado sentido do dever, escolhas racionais e uma lei justa, geral e igual para todos. Quando o relativismo crescente se populariza, assim como a ideia de incerteza, e ganha a ideia de não haver nada de objetivo, a junção do relativismo com o subjetivismo provocou uma mescla de relativismo moral e irracionalismo que, mais tarde, se tornará terrível.
A cultura dos anos 60 — de contestação radical estudantil, primeiro nos EUA, sobretudo Califórnia, e depois em França, no Maio de 68 —, trouxe a ideia do imediatismo para o terreno político. Na verdade trata-se de uma espécie de crédito político: queremos isto e aquilo, já! (“We want it and we want it now!”) Mais tarde ver-se-ia como os problemas levantados por essas reivindicações se resolvem. Ao mesmo tempo, o antiautoritarismo (que é uma coisa boa) instalou-se e foi aproveitado por relativistas e subjetivistas, não para reforçar decisões com base em escolhas democráticas, mas para colocar em causa toda a ideia de hierarquia de valores. Na verdade, se tudo depende do observador e se tudo é relativo ao ponto de observação de cada um, quem pode decidir leis gerais? Como hierarquizar ideias ou culturas?
A velha pergunta “Quem decidiu isso?”, torna-se uma frase comum. Tal como outra pergunta: “Qual é o mal?”. Ou outra frase feita: “A tradição já não é o que era”. Estes e outros preceitos são válidos para os modos e maneiras; para a forma de transmitir conhecimentos na escola, para uma espécie de novilíngua (como lhe chamou Orwell no “1984”) de que resulta uma espécie de discurso único e um arremedo de código do que é permitido e não na política. Na verdade, a ideia de que nada há exterior a cada um, permite que se aceite a lei vigente, mas não uma ética mais estrita ou um dever filiado nos imperativos categóricos de Kant como condutor da ação. Por isso mesmo, as formas de contornar a lei (como os offshores, por exemplo) por muito manhosas e vigaristas que nos pareçam, nem sempre contrariam a lei. Do mesmo modo, no mundo financeiro, os esquemas para ganhar dinheiro não são limitados por nada, ou são-no por reguladores sistematicamente driblados por novas fintas (quando não são eles também beneficiados por elas).
O próprio tempo se alterou. Durante milénios, enquanto os homens foram essencialmente caçadores-recoletores ou agricultores, havia um tempo para cada coisa. No ‘Eclesiastes’ da Bíblia, de onde Bob Dylan tirou a letra da célebre canção ‘Turn, turn, turn’, é dito isso mesmo, que há um tempo para tudo. Mas a era da revolução industrial e as suas subsequentes revoluções eletrónica e informática, trouxeram o tempo da instantaneidade. Não é diferente da política do “já!” ou do “viaje agora e pague depois”. Mas temos instituições para responder a este mundo de informação instantânea?
Podem os tribunais ser instantâneos? Pode a política e os parlamentos sê-lo?
Não parece que tal possa acontecer, ou pelo menos não conhecemos os mecanismos através dos quais isso possa acontecer.
Estas revoluções, que começam no final do século XVIII, há mais de 200 anos, chocam com o conceito de família. Os filhos, que eram ativos económicos, tornam-se, progressivamente, passivos. Só gastam, não produzem. O homem não precisa de outros braços para andar para a frente com a sua pequena quinta ou loja de artesão. Ele agora trabalha em serviços e mais serviços. As fábricas robotizaram-se, há cada vez menos operários. A esquerda, que pretendia melhores condições, tornou-se conservadora, no sentido em que pretende manter as condições que existiam, perante uma revolução em tudo diferente da que sonhou: em vez de coletivista é individualista.
As famílias, tidas como núcleos-base da sociedade, desagregam-se. Os divórcios generalizam-se, assim como os filhos escasseiam. Novos modelos de família surgem (na verdade sempre tinham existido, mas não com foros de cidadania) como as monoparentais e homossexuais.
A sociedade mudou — independentemente de cada um achar se foi para melhor ou pior — fruto de várias correntes que desaguaram no rio estranho, onde já quase ninguém se revê inteiramente. E, no entanto, a sociedade europeia continuou a enriquecer, fruto do avanço tecnológico brutal conseguido com a revolução industrial e as suas filhas revolução tecnológica e cibernética.
Com o Estado social e com um emprego próximo do pleno, nos anos 60, começam a chegar ao centro da Europa, vindos das periferias, pessoas que ocupam os lugares mais modestos na escala social e de trabalho. São portugueses, por exemplo, mas também gregos ou marroquinos e argelinos. Esse movimento jamais parará. Sabe-se, pelo menos desde a queda do Império Romano, que um polo rico como a Europa não pode viver rodeado de gente esfomeada e pobre. A queda do Muro de Berlim, em 1989, junta povos que estavam sob a alçada da União Soviética a esses movimentos. Progressivamente, a informação espalha-se e aguça o apetite pelo modo de estar europeu, ao mesmo tempo que os conflitos em África e no Médio Oriente, motivados por diversas causas, das quais não estão arredadas as económicas, fazem com que progressivamente cheguem mais pessoas. Na Europa acabam as fronteiras entre diversos países no acordo de Schengen. Basta entrar num desses países, seja a Grécia ou a Itália, para se alcançar sem mais barreiras o seu centro — Alemanha, Holanda, França, Bélgica. O movimento vai continuando.
Porém, aquela ideia que ficou lá atrás, de que tudo é relativo, de que não há verdade objetiva, de que as culturas se equivalem, pois nada há acima de nenhuma delas, nem qualquer uma se pode reivindicar de melhor, uma vez que isso depende do ponto de vista do observador — leva a que os imigrantes sejam agrupados por preferências sociais, culturais e religiosas. A velha ideia do melting pot, o grande caldeirão em que as culturas se misturavam, cedeu o passo à tribalização. Curiosamente, dentro da nossa civilização, os próprios movimentos tendem para o tribal. O próprio marketing escalona e divide em tribos. E a comunicação social refere-se a movimentos de jovens como “tribos”.
Os imigrantes vão chegando. Alguns beneficiam também do Estado social. Tempos houve em que muitos tinham direito a subsídios de integração e a casas sociais. O movimento continua, até que o desastre sírio e o aparecimento do Daesh, não só aí como no Norte de África, torna a movimentação imparável — tal como a vemos hoje. Ao mesmo tempo, para os imigrantes de segunda geração na Europa, muitos deles já europeus de nacionalidade, nada temos a oferecer. Guetizámo-los nos bairros sociais; não lhes exigimos nada em troca, não lhes explicámos os fundamentos da nossa história, da nossa civilização, da nossa cultura. Não lhes damos um objetivo, não há, exceto em raros casos, serviço à comunidade (tropa, serviço cívico, o que for); não há orgulho na nossa cultura desfeita, não há nada, salvo o que vemos, lemos e ouvimos: corrupção e promessas quebradas.
A desumanidade a que hoje se assiste é um sinal de impotência de uma sociedade e de uma cultura que não souberam puxar das suas especificidades positivas. Pelo contrário, por via de uma espécie de autoculpabilização andaram a pedir desculpa por coisas que todas fizeram: escravatura, perseguições, pena de morte. Curiosamente, a singularidade da nossa civilização não é ter inventado nenhuma dessas chagas, mas ter chegado a um ponto de consciência que a levou a acabar com elas.
A crise financeira de que tantos falam como origem dos nossos males é, na realidade, uma das consequências mais trágicas deste caminho que se iniciou há muito tempo.
Poderia tentar resumir o problema a uma só frase: perdeu-se a vergonha. Quem leu até aqui, percebeu como. Nem sequer foi a primeira vez na História. Perdeu-se a vergonha em diversos momentos, em séculos distintos. Tinha-se perdido antes de 1929, embora alguns dos banqueiros na altura ainda tivessem a dignidade de se atirar pela janela quando verificaram que tinham arruinado os clientes. Hoje nada disso. Mantêm-se impávidos.
Mas os banqueiros, sobretudo da banca de investimentos, são um produto do nosso tempo, das nossas escolhas, das nossas ideias. Foram hippies, mas foram sobretudo yuppies, são a favor de várias causas que se consideraram fraturantes, nomeadamente o consumo de drogas, e aproveitam todas as oportunidades para fazer dinheiro. A utilização da lei depende do ponto de vista; tudo o que não é formalmente ilegal torna-se possível; o dever é algo antiquado e a ética não mata a fome. Num livro de Boudewijn de Bruin, explica-se que a incompetência é pior do que a ganância. Mas a incompetência de que ele fala é a falta da virtude ética ligada ao capitalismo.
Ao longo de muitos anos houve sempre a ideia de que o mercado funciona e se autorregula. Hoje, porém, há fundadas dúvidas sobre o assunto. A desmaterialização de tudo (incluindo do dinheiro) leva a jogadas que não estavam previstas nos manuais mais sérios. E depois há outra questão que sempre atormentou os macroeconomistas mais famosos, mesmo que de escolas opostas, como Keynes e Friedman: os indivíduos fazem sempre escolhas racionais? É que o mercado funciona com base nesta presunção. E o pior é que, em muitos aspetos, começámos a ver escolhas irracionais absolutas. Curiosamente, Keynes, que é um teórico muito diferente do que é popularmente apresentado (só se lembram de ele ter recomendado que o Estado invista dinheiro em períodos de crise e esquecem que ele recomendou a poupança em períodos de expansão), afirmava na sua “Teoria Geral” que os mercados financeiros têm inerentes o erro e a incerteza ao “prever o que a opinião média espera ser a opinião média”. Ou seja, tudo não passa de uma espécie de lotaria, como escreve Justin Fox na “Harvard Business Review”: “É provavelmente fútil esperar que a teoria macroeconómica possa ser um guia inteiramente de confiança”. Tudo o que sabemos — tal como na História — foi o que aconteceu. Nunca saberemos o que teria acontecido se as escolhas ou as políticas tivessem sido diferentes. Ora aqui chegados, estamos no mesmíssimo campo que a História. O que movimenta a Economia, mesmo depois de ela se ter remetido ao seu campo específico, são também ideias e palpites. Nada de muito científico, portanto. Discutir décimas com base em previsões numa folha de Excel pode parecer muito interessante e dar um ar sábio a quem a mostra, seja Gaspar, seja Maria Luís, seja Centeno, ou Moscovici ou Dijsselbloem. Mas não passa disso.
O certo é que contra toda a teoria tudo rebentou. Em 2008 já se percebia que estávamos perdidos para uns anos largos. O crédito tornara-se norma e não havia garantias suficientes para esse crédito. Os bens estavam a ser consumidos, não na sequência do que se poupou, mas na previsão do que se iria ganhar. E assim os balanços tornaram-se bastante instáveis, ‘prevendo o que a opinião média vai achar o que é a opinião média’. Só havia uma maneira de sustentar estes balanços: prever que o crescimento do consumo e da produção seria constante e contínuo. Essa ideia que serviu empresas e Estados é uma ideia que não tem base real. Nada (talvez salvo o infinito) cresce continuamente. Apesar das enormes injeções de dinheiro não há inflação, algo que a teoria preveria. A Economia não cresceu na Europa algo que se visse e noutras partes do mundo, que em determinado momento se ufanavam dos seus crescimentos, chegou o pesadelo (vide China, Brasil, Angola). O petróleo está a 1/5 do que já custou. Ninguém sabe ao certo o que se passa.
A crise económica é, também, consequência de outra ideia que não tinha intuitos conspirativos (deixar juntar a banca comercial à banca de investimentos). Assim, quando a banca de investimentos rebenta com uma bolha em que, em todo o mundo, tinha como média daquilo que se contabilizava sete vezes o valor real dos bens reais, arrasta consigo a banca comercial. E aí estão as poupanças dos cidadãos, mesmo dos remediados e semipobres. Estes, os lesados, revoltam-se. O Estado tem de gastar dinheiro dos contribuintes para salvar a banca, a economia das empresas deixa de ser municiada com dinheiro para desenvolver negócios produtivos, com bens transacionáveis. As grandes apostas eram no sistema financeiro, onde se transacionam ficções e se ganha mais dinheiro. Os Estados, vítimas ou promotores (houve de tudo) da financeirização viram os défices disparar, os empregos acabar e, no Ocidente, a população envelhecer e as taxas de natalidade cair. A tempestade perfeita abateu-se.
Sem receitas para inverter a situação, dispararam as crises políticas. Nasceram, como sempre, teorias da conspiração. Nalguns discursos, se substituíssemos a palavra ‘mercados’ por ‘judeus’ pareceriam arengas dos anos 30. Nasceram franjas antidemocráticas e as que já existiam floresceram. Como diz o ditado português, desataram todos a ralhar e ninguém tinha razão. A situação periclitante dos Estados desenvolveu as grandes demagogias. Quem resiste ao discurso único do politicamente correto pode ser linchado; mas quem fizer esse discurso também. Tudo se tornou um salve-se quem puder sem regras. Os políticos, atarantados, não sabem se hão de ser keynesianos à moda do investimento (em 2009 a Europa recomendou que fossem e não correu bem); schumpeterianos, deixando tudo para a ‘destruição criativa’ do capitalismo, ou schäubelianos com elevadas doses de austeridade.
Todos se acusam, mas os povos são os sacrificados, mesmo quando os governos (recordemos Tsipras I e Tsipras II) lhes prometem o céu. Faz lembrar aquelas cenas em que um perseguido pela polícia é algemado depois de ter apanhado umas cacetadas, para, depois, o mesmíssimo polícia lhe pôr a mão na cabeça com medo que ele bata com ela ao entrar na viatura.
Como todas as grandes crises políticas, também esta tem a sua crise de instituições. Hoje a desconfiança de tribunais, bancos centrais, reguladores, polícias, burocracias várias e, sobretudo, da construção europeia é volumosa. A autoridade moral deixou de existir. Com a mesma facilidade com que se chama nazi a Merkel nalgumas latitudes, exaltava-se Orbán, ou Putin ou mesmo Chávez noutras. Os mais atingidos pela crise querem, antes de mais, arranjar um culpado e os demagogos são bons a apontá-los
O problema é arranjar esse culpado, sem o fazer da forma simples, populista e demagógica. Dizer “são os mercados” é tão válido como gritar que “foi o Bush” ou “é o Schäuble” ou “foram os socialistas”, “o Sócrates” ou outro qualquer.
Significa isto que o mundo não pode mudar e temos de nos resignar? Não. Embora haja quem pense que sem um culpado nada se muda. É falso. Aos poucos vamos andando, embora haja períodos históricos de regressão, que não podemos ignorar. Mas quem sabe se sobre os offshores não haverá, dentro em pouco, outro entendimento? Quem pode dizer que a banca não pode voltar a ser saudável e separada entre a que é de risco e a que é de crédito com garantias e caixa de poupança? E quem pode assegurar que depois disso estaremos melhor? Todas as ideias têm as suas consequências e, como postulou Isaiah Berlin, um filósofo americano desaparecido há duas décadas, quando temos cem portas pela frente e escolhemos uma, jamais saberemos o que aconteceria se escolhêssemos qualquer outra.
Há muito que se pode fazer. Mas é tão curto pensar que houve apenas um culpado, um caminho para aqui se chegar, como é dizer que há apenas um caminho e uma forma de daqui sair.
A História flui com ideias, como vimos. Uma ideia tida há anos pode fazer efeitos hoje — bons ou maus. Como uma ideia de hoje pode ser trágica ou gloriosa dentro de uma década. É presunçoso pensarmos que a História designou esta geração para resolver os problemas do mundo. Assistimos, isso sim, a problemas novos e a forma como os resolvermos terá impacto nos vindouros, da mesma forma que sofremos e beneficiamos das escolhas que os nossos antepassados fizeram.
HENRIQUE MONTEIRO
25.04.2016 às 9h002Expresso
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