Reescrever a história?

Edward Carr, prestigiado diplomata e professor de História e de Filosofia da História, ficou conhecido, entre muitas outras circunstâncias, por referir que antes de se estudar história ...nos devíamos preocupar em conhecer a história do historiador, já que este, dizia, “antes de começar a escrever a história, é o seu produto”. Esta circunstância remetia para o que Carr alertava ser a “subjetividade” subjacente à escolha dos factos determinantes e ao cuidado que todos devíamos ter, portanto, quando líamos ou analisávamos algo que tivesse sido escrito ou relatado por terceiros.

Esta perspectiva, qual alerta, pode, mais tarde, noutro plano, ter induzido Eric Hobsbwam (também emérito professor e filósofo da mesma disciplina na Universidade de Londres e que, assumidamente reconhecia Carr como uma das personalidades científicas que mais o tinha influenciado) a falar mesmo do que apelidava de “tradição inventada”, a qual valia, entre muitas outras circunstâncias, para a “validação ou sobreposição” de factos sobre outros, como se fossem “a realidade única ou a mais pertinente / adequada”.

Esta perspectiva, sabemo-lo nós Madeirenses  muito bem, serviu, por exemplo, durante séculos, à divulgação da ideia (ou melhor, mistificação) de que a Madeira tinha sido descoberta pelos portugueses ... quando se sabe, também há muito, que estes foram, outrossim e só, os responsáveis pelo povoamento mas não os descobridores destas paragens, identificadas que estavam, por outros povos, desde o século V A.C. e cartografadas muito antes de 1419.

A verdade, porém, é que só a Autonomia Política e algumas das instituições que com ela surgiram, nomeadamente a Universidade da Madeira e o Centro de Estudos de História do Atlântico, assumiram o dever de recolocar a História nos seus devidos carris, com tudo quanto isso signifique (ou não) para Todos e Cada Um de nós, sendo que, para além do referenciado sobre o “descobrimento” (que o não foi), muito se sabe hoje sobre o quadro das relações entre a ex-colónia e o ex-império, nomeadamente sobre as vicissitudes que os nossos antepassados sofreram aos mais variados níveis.

Dito isto, e porque o reescrever da História é matéria que suscita muitas tentações, no sentido ou de procurar exaltar novos caminhos (que, como a pescada, antes de ser já o eram) ou de procurar demonstrar que há novas atitudes (mau grado quem conhece a História saber que outros, antes, já as corporizaram) gostaria de deixar um alerta a todos quantos estão a ser “tentados” (e seja lá por quem ou pelo que for) que o não façam ... porque, como diz o povo, “a mentira tem perna curta” e, mais cedo do que tarde, serão, como os historiadores que falavam da descoberta da Madeira pelos portugueses, identificados.

Esta questão é tão mais curial nos dias que correm quanto vivemos numa sociedade de informação, do conhecimento e de desenvolvimento tecnológico crescentemente acessível, o que permite, a qualquer momento, contradizer essas tentativas.

Da minha parte, posso mesmo referir que, aqui e além, já dei nota a um ou outro “possuído”, em especial “das minhas relações”, e perante intervenções e escritos inaceitáveis, que convém, como diz a malta mais nova, não se esticar muito, porque “quem não se sente não é filho de boa gente” e, pelo menos no que a alguns de nós concerne, vamos respeitar os nossos ascendentes. E por hoje é tudo!

Francisco Santos
Diário de Notícias da Madeira 
Segunda, 2 de Maio de 2016