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Mensagem por Admin Sex maio 20, 2016 11:27 pm

1 A actual sociedade europeia de que fazemos parte tem, na expressão do filósofo E. Husserl, uma nova "forma de vida", isto é, um horizonte novo de vivência, sentido e autocompreensão, a partir de três princípios fundamentais.

Trata-se de uma sociedade à qual foi possibilitado imenso bem-estar, derivando daí novas possibilidades de auto-realização e também um feroz individualismo, que apenas reivindica direitos ignorando deveres.

Por outro lado, as novas tecnologias têm um impacto decisivo nas sociedades, e não só no plano socioeconómico: mudam as mentalidades. Por exemplo, estar ligado à rede, navegando, afecta a vivência de si e do mundo. A concepção de espaço é outra, muda sobretudo a vivência do tempo. Tudo é rápido, vertiginoso. Tem-se a sensação de estar ao mesmo tempo em toda a parte, mas num tempo fragmentado, que não faz tecido. No bombardeamento simultâneo de notícias e opiniões - toda a gente se pronuncia sobre tudo, sem hesitações nem perplexidades -, o que acontece é a dispersão labiríntica, que dificulta a construção de uma identidade narrativa consistente. Paradoxalmente, a ligação global produz solidões penosas. Há um sentimento de quase omnipotência, seguindo-se daí que tudo o que é tecnicamente possível se deve realizar, sem perguntas de outro foro, ético, humanista. A satisfação imediata e o facilitismo são outras características de uma sociedade líquida e mole, cujo deus é o dinheiro.

Desta forma de vida faz parte ainda a crítica religiosa, no sentido de um laicismo agressivo.

2 Julgo que é no horizonte desta nova forma de vida que se percebe melhor a fúria legislativa da actual Assembleia da República quanto às chamadas questões fracturantes e não só. Assim:

2.1 Entre as primeiras medidas, acabou-se com a taxa moderadora no aborto, o que é incompreensível se se pensar nas mulheres doentes que pagam.

2.2 Acaba de ser aprovada a lei que permite a gestação de substituição, vulgarmente conhecida por barrigas de aluguer. Pensou-se no que isso significa, por exemplo, que a criança que vai nascer é fruto da genética e da epigenética, portanto, que não é indiferente ser gestada neste ou naquele ventre? Há um contrato, e isso é humanizante? E se a gestante quiser a criança, pois, afinal, é seu filho, a quem está tão intimamente vinculada? E se no processo de gestação surge uma deficiência grave e ninguém a quer? As técnicas de procriação medicamente assistida passaram a ser acessíveis a todas as mulheres, mesmo sem problemas de infertilidade. Pergunta--se: uma criança é um simples bem disponível? Quem é o centro: o direito da mulher ou a criança?

2.3 Sobre a eutanásia, já aqui manifestei as minhas perplexidades. Existe a autonomia, e a vida é um bem, um direito, e não um fardo que pode tornar-se insuportável. Mas legislar, sem pensar, apressadamente, como parece agora ser regra - porquê? -, pode pôr em causa conquistas essenciais da humanidade. Veja-se o que aconteceu há pouco tempo na Holanda com uma jovem de 20 anos, a quem foi autorizada a eutanásia por causa do seu sofrimento na sequência de abusos sexuais. Quem não compreende o sofrimento atroz? Mas, afinal, estamos cá para facilitar a morte ou para ajudar a viver? E quem aplica a eutanásia, isto é, sem eufemismos, quem mata? De qualquer modo, eutanásia e suicídio assistido são realidades diferentes. Há um direito à eutanásia? Quem o satisfaz?

2.4 E os animais? Sim, quem trata mal os animais - mesmo na animalidade, é preciso distinguir, pois não é a mesma realidade uma pulga ou uma mosca e um cão ou um chimpanzé - agride a humanidade em si próprio e o seu dever de considerar o valor do animal. Mas há uma distinção essencial, qualitativa, e não meramente de grau, entre o ser humano, que é pessoa, e o animal, que não é coisa mas não é pessoa. Afinal, são as pessoas que colocam a questão da humanidade e da animalidade.

2.5 Esta sociedade não sabe conviver com as dificuldades, as frustrações normais, a finitude. Foi neste enquadramento que o Ministério da Educação acabou com os exames. Um erro!

2.6 Tudo o que aí fica é independente da religião. A ética é autónoma. A política também. Mas não há dúvida de que há hoje uma tentativa de "exculturação social da religião por parte de certa esquerda europeia". Quem o diz é J. Elzo, na sequência de um livro importante de um homem de esquerda, Jean Birnbaum: Un Silence Religieux - La Gauche face au Djihadisme, que conclui, continua J. Elzo, citando grandes pensadores, como W. Benjamin, J. Derrida, J. Habermas, R. Debray, Luc Ferry, Comte-Sponville, todos de esquerda e não crentes: "Nenhum deles considerou que o exercício da política moderna tinha como condição a superação e a relegação do religioso. Todos tinham consciência de que, para bem distinguir estes dois âmbitos, o melhor é dar espaço tanto a um como ao outro." Para evitar "o conflito social, tarde ou cedo", "muito sangrento".

*Padre e professor de Filosofia

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

21 DE MAIO DE 2016
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Anselmo Borges
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