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A máquina da ignorância ao serviço da política que não ousa dizer o nome (II)
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A máquina da ignorância ao serviço da política que não ousa dizer o nome (II)
Este anticomunismo de opereta é a substituição do pensamento da democracia por uma espécie de digesto empresarial que encontra na experiência de Singapura o seu ideal.
Vale a pena a gente perder tempo com as inanidades que por aí se escrevem sobre “fascismo” e “comunismo”, ainda por cima supostamente “demonstradas”, como diz José Rodrigues dos Santos, num livro de ficção? Vale e não vale. Do ponto de vista intelectual e argumentativo, não vale. Nem são novas, nem são informadas, nem são interessantes, nem nada. O que vale é usá-las para mostrar o que elas significam: a possibilidade de, em 2016, se proferirem inanidades em público para voltar a uma variante de anticomunismo que a radicalização da vida política à direita precisa à falta de melhor para combater a “geringonça”. Não precisamos de tomá-las a sério no seu conteúdo e bramar que criticá-las é pôr em causa o “direito à liberdade de expressão”. Apetece-me nestes casos virar crente e dizer ao Senhor: “perdoai-lhes por que não sabem o que dizem”. Já não direi que “não sabem o que fazem” porque acho que sabem mais o que fazem do que o que dizem. O que não dizem é o que fazem.
O problema é outro e é esse que me faz perder tempo e espaço ao PÚBLICO: é o que é que sobra? Quem é que fica de fora? Porque “eles” dizem estas inanidades mas pretendem ser parte de uma herança impoluta, nem fascistas, nem comunistas. Havia de facto uma pequena “terceira força” que mantinha uma simultânea aversão aos dois lados do totalitarismo do século XX. Mas quando foi capaz de resistir e manter um terreno moralmente superior, foi porque pensava de forma bem diferente daqueles que hoje pretendem ser os seus herdeiros. No entanto, para quem estava nestes anos malditos, essa “terceira força” ou não existiu, ou foi tão débil que nunca teria força para contrariar os eventos dessa “guerra civil”, como de facto não teve. Teve que se aliar e os melhores aliaram-se. Como Churchill e Roosevelt, embora presumo que este último seja muito suspeito a estes paladinos.
O problema é que personagens que pensavam como os autores destas imagens nesses anos cruéis da guerra, salvo meia dúzia que se podem contar pelos dedos país a país, aceitaram demasiadas conveniências, demasiados “não há alternativa”, demasiadas colaborações porque o seu anticomunismo era mais fundo do que a resistência ao poder totalitário dos nazis. Há livros sobre isso, vale a pena lê-los. E, pelo contrário, a turma do “bolchevique com a faca na boca”, antepassado destes desenhos, foi toda parar pelo menos à colaboração, como em França, ou às hostes do Senador Joseph McCarthy nos anos do “naming names”. Aliás ainda não se lembraram do Senador, esse intrépido combatente do comunismo…
As excepções que existiram têm imenso mérito, mas hoje os autores destes desenhos achariam que eram “moles”. E depois tendiam a ter más companhias. Por exemplo, na denúncia dos crimes do estalinismo, os trotskistas eram muito mais claros do que os anticomunistas conservadores, porque sabiam do que falavam. E porque compreendiam que a força interior do comunismo não vinha apenas das maquinações de Lenine ou Staline. Este anticomunismo dos desenhinhos, instalado e cómodo, quando já não tem risco nenhum senão a asneira e o ridículo, contrasta com o anticomunismo a sério, quando era a doer, quando homens como Koestler ou Orwell, ou aqueles de quem se dizia que a luta final seria entre “ex-comunistas” e comunistas, denunciavam os crimes de Staline e de Hitler. Mas todos eles eram suspeitos à direita, porque tinham sido… comunistas. O livro de Koestler, O Zero e o Infinito (Darkness at Noon), é um livro sobre um dilema moral e político, e baseava-se na história trágica do “menino querido do Partido” Bukharine, e a última coisa que faz foi olhar para os comunistas como o “bolchevique de faca na boca” destes desenhos infantis.
Mesmo em Portugal, quem melhor falou desses dilemas não foram os companheiros de estrada do salazarismo, que escreveram milhares de páginas contra o perigo do “bolchevismo”. Foi, por exemplo, Eduardo Lourenço nas Heterodoxias e no seu estudo sobre o neo-realismo, ou, de forma ainda mais pessoalmente sofrida porque de denegação, Jorge Borges de Macedo que tinha sido comunista e que passou a vida a negá-lo, mas que nos seus livros ia muito mais longe na crítica ao marxismo do que muitos outros. A sua negação é um dos melhores exemplos da marca trágica da experiência comunista da sua geração, pelos homens que tinham visto chegar “esse exército (…) vindo de Leste”, e da dificuldade do anticomunismo ser vivido sem ser entendido como uma “traição”. Não por causa do Pai dos Povos, mas por causa dos milhões de mortos desse “exército (…), vindo de Leste” que travaram os Panzer nas estepes russas quando tudo parecia perdido.
Não falarei sequer da minha experiência pessoal de ter sido um dos primeiros a estudar o PCP e o comunismo em Portugal, sem ceder aos mitos da casa. Eu sei muito bem o que é o estalinismo censório na primeira pessoa, os insultos e processos de intenção, quando a reverência à URSS e ao PCP eram a norma na intelectualidade portuguesa, comunista e “independente”. Nem sequer vou falar disso, porque foram penas menores face a muitas outras bem maiores. Só me fico dizendo que quando era incómodo, quando por exemplo nas Audiências Sakharov, só Mário Soares, alguns poucos social-democratas e alguns esquerdistas, aceitavam participar, os antepassados aperaltados destes fogosos anticomunistas do desenhinho nunca queriam sujar-se com essas causas “primárias”.
Mas isso leva-me a ter quase dó com estes exercícios de propaganda menor, mas de intencionalidade maior, porque este anticomunismo de opereta, nem sequer é um verdadeiro anticomunismo, é um anti-socialismo, é um anti-social-democracia, é a substituição do pensamento da democracia por uma espécie de digesto empresarial que encontra na experiência de Singapura o seu ideal. É que nem sequer é o PCP que eles querem atingir, é o PS, é António Costa, são os social-democratas que ainda não têm vergonha do nome, é o dificílimo engolir da perda do poder, é a falta do exercício de mandar e é a consciência de que, sem as sanções punitivas e a “lei de ferro” da Europa, não chegam lá tão cedo. Enquanto isso divertem-se achando-se geniais com estas boutades gráficas e verbais que brincam com um fogo que eles não sabem sequer que existe.
Historiador.
Este artigo é a segunda e última parte do que foi publicado a 4 de Junho.
Por José Pacheco Pereira
11/06/2016 - 01:15
Público
Vale a pena a gente perder tempo com as inanidades que por aí se escrevem sobre “fascismo” e “comunismo”, ainda por cima supostamente “demonstradas”, como diz José Rodrigues dos Santos, num livro de ficção? Vale e não vale. Do ponto de vista intelectual e argumentativo, não vale. Nem são novas, nem são informadas, nem são interessantes, nem nada. O que vale é usá-las para mostrar o que elas significam: a possibilidade de, em 2016, se proferirem inanidades em público para voltar a uma variante de anticomunismo que a radicalização da vida política à direita precisa à falta de melhor para combater a “geringonça”. Não precisamos de tomá-las a sério no seu conteúdo e bramar que criticá-las é pôr em causa o “direito à liberdade de expressão”. Apetece-me nestes casos virar crente e dizer ao Senhor: “perdoai-lhes por que não sabem o que dizem”. Já não direi que “não sabem o que fazem” porque acho que sabem mais o que fazem do que o que dizem. O que não dizem é o que fazem.
O problema é outro e é esse que me faz perder tempo e espaço ao PÚBLICO: é o que é que sobra? Quem é que fica de fora? Porque “eles” dizem estas inanidades mas pretendem ser parte de uma herança impoluta, nem fascistas, nem comunistas. Havia de facto uma pequena “terceira força” que mantinha uma simultânea aversão aos dois lados do totalitarismo do século XX. Mas quando foi capaz de resistir e manter um terreno moralmente superior, foi porque pensava de forma bem diferente daqueles que hoje pretendem ser os seus herdeiros. No entanto, para quem estava nestes anos malditos, essa “terceira força” ou não existiu, ou foi tão débil que nunca teria força para contrariar os eventos dessa “guerra civil”, como de facto não teve. Teve que se aliar e os melhores aliaram-se. Como Churchill e Roosevelt, embora presumo que este último seja muito suspeito a estes paladinos.
O problema é que personagens que pensavam como os autores destas imagens nesses anos cruéis da guerra, salvo meia dúzia que se podem contar pelos dedos país a país, aceitaram demasiadas conveniências, demasiados “não há alternativa”, demasiadas colaborações porque o seu anticomunismo era mais fundo do que a resistência ao poder totalitário dos nazis. Há livros sobre isso, vale a pena lê-los. E, pelo contrário, a turma do “bolchevique com a faca na boca”, antepassado destes desenhos, foi toda parar pelo menos à colaboração, como em França, ou às hostes do Senador Joseph McCarthy nos anos do “naming names”. Aliás ainda não se lembraram do Senador, esse intrépido combatente do comunismo…
As excepções que existiram têm imenso mérito, mas hoje os autores destes desenhos achariam que eram “moles”. E depois tendiam a ter más companhias. Por exemplo, na denúncia dos crimes do estalinismo, os trotskistas eram muito mais claros do que os anticomunistas conservadores, porque sabiam do que falavam. E porque compreendiam que a força interior do comunismo não vinha apenas das maquinações de Lenine ou Staline. Este anticomunismo dos desenhinhos, instalado e cómodo, quando já não tem risco nenhum senão a asneira e o ridículo, contrasta com o anticomunismo a sério, quando era a doer, quando homens como Koestler ou Orwell, ou aqueles de quem se dizia que a luta final seria entre “ex-comunistas” e comunistas, denunciavam os crimes de Staline e de Hitler. Mas todos eles eram suspeitos à direita, porque tinham sido… comunistas. O livro de Koestler, O Zero e o Infinito (Darkness at Noon), é um livro sobre um dilema moral e político, e baseava-se na história trágica do “menino querido do Partido” Bukharine, e a última coisa que faz foi olhar para os comunistas como o “bolchevique de faca na boca” destes desenhos infantis.
Mesmo em Portugal, quem melhor falou desses dilemas não foram os companheiros de estrada do salazarismo, que escreveram milhares de páginas contra o perigo do “bolchevismo”. Foi, por exemplo, Eduardo Lourenço nas Heterodoxias e no seu estudo sobre o neo-realismo, ou, de forma ainda mais pessoalmente sofrida porque de denegação, Jorge Borges de Macedo que tinha sido comunista e que passou a vida a negá-lo, mas que nos seus livros ia muito mais longe na crítica ao marxismo do que muitos outros. A sua negação é um dos melhores exemplos da marca trágica da experiência comunista da sua geração, pelos homens que tinham visto chegar “esse exército (…) vindo de Leste”, e da dificuldade do anticomunismo ser vivido sem ser entendido como uma “traição”. Não por causa do Pai dos Povos, mas por causa dos milhões de mortos desse “exército (…), vindo de Leste” que travaram os Panzer nas estepes russas quando tudo parecia perdido.
Não falarei sequer da minha experiência pessoal de ter sido um dos primeiros a estudar o PCP e o comunismo em Portugal, sem ceder aos mitos da casa. Eu sei muito bem o que é o estalinismo censório na primeira pessoa, os insultos e processos de intenção, quando a reverência à URSS e ao PCP eram a norma na intelectualidade portuguesa, comunista e “independente”. Nem sequer vou falar disso, porque foram penas menores face a muitas outras bem maiores. Só me fico dizendo que quando era incómodo, quando por exemplo nas Audiências Sakharov, só Mário Soares, alguns poucos social-democratas e alguns esquerdistas, aceitavam participar, os antepassados aperaltados destes fogosos anticomunistas do desenhinho nunca queriam sujar-se com essas causas “primárias”.
Mas isso leva-me a ter quase dó com estes exercícios de propaganda menor, mas de intencionalidade maior, porque este anticomunismo de opereta, nem sequer é um verdadeiro anticomunismo, é um anti-socialismo, é um anti-social-democracia, é a substituição do pensamento da democracia por uma espécie de digesto empresarial que encontra na experiência de Singapura o seu ideal. É que nem sequer é o PCP que eles querem atingir, é o PS, é António Costa, são os social-democratas que ainda não têm vergonha do nome, é o dificílimo engolir da perda do poder, é a falta do exercício de mandar e é a consciência de que, sem as sanções punitivas e a “lei de ferro” da Europa, não chegam lá tão cedo. Enquanto isso divertem-se achando-se geniais com estas boutades gráficas e verbais que brincam com um fogo que eles não sabem sequer que existe.
Historiador.
Este artigo é a segunda e última parte do que foi publicado a 4 de Junho.
Por José Pacheco Pereira
11/06/2016 - 01:15
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