O lugar da quimera

Sim, é verdade: nós produzimos dois prémios Nobel (ainda que tentemos renegar um deles) e outros tantos Pritzker. Construímos navios e descobrimos rotas que mudaram o mundo e enformaram aquilo a que hoje se chama globalização. Abolimos a escravatura antes de muitos daqueles que hoje nos tratam com moralismo (embora tenhamos sido negreiros extraordinários também). Inventámos o Multibanco, a Via Verde e o queijo da serra. Temos investigação de ponta.
Mas, vamos a ver: em quantas outras coisas, além do futebol, estamos hoje entre os dez (tantas vezes entre os cinco) melhores do mundo - ano após ano, sem uma semana de excepção? Quantos outros países de dez milhões de almas têm tantas vitórias em competições europeias, tantos futebolistas entre os mitos, tantos treinadores na elite mundial? Quantos outros, mesmo considerando os países enormes, conquistaram tantos triunfos em tantos escalões etários?

Somos um país de glórias, mas em nenhuma área, hoje, como neste jogo. Ombreamos com os colossos, enriquecemo-los, provocamos a sua inveja. Mesmo cá dentro: temos uma liga equilibrada e bonita. Bem vistas as coisas, não nos assiste o direito de exigir mais o que quer que seja ao futebol. Aquilo que o futebol nos deu só tem paralelo naquilo que lhe demos a ele. Somos bons no futebol como não somos em mais nada.

Sermos só um bocadinho melhores ainda - eis o que queremos agora. E não é razoável pedi-lo. Mas nos últimos dias vimos jogar a Inglaterra e a Alemanha, a França, a Espanha e a Itália. E, não sendo razoável, não é impossível. Isso mesmo reclamamos agora - a começar esta noite, em Saint-Étienne. A vitória. Para sermos razoáveis, não precisávamos do futebol para nada. Primeiro tomaremos as probabilidades, depois a própria matemática. O futebol é o reino da quimera, e nem a verdade alguma vez se pôde dispensar dela.

14 DE JUNHO DE 2016
00:01
Joel Neto
Diário de Notícias