No calor da noite

Usando as mesmas palavras podemos construir frases com significados diametralmente opostos. Vivendo nos mesmos contextos podemos construir realidades profissionais absolutamente diferentes. Partilhando a mesma herança genética podemos construir vidas totalmente distintas.

Tudo isto vem a propósito de uma feira, nos Estados Unidos, onde estou em trabalho com um grupo de portugueses, todos de origem latina.

Em Portugal o mês de agosto é quase só um forte mês de trabalho para aqueles que trabalham em prol das férias dos seus compatriotas e restantes turistas. Mas em outros países, como os do Norte da Europa e os Estados Unidos da América, neste mês de agosto impera a normalidade em termos profissionais.

Duas das palavras que encaixam na categoria descrita acima são os termos feiras e férias. Quando me ausento para acompanhar a presença de empresas portuguesas no mês de agosto, tenho sempre muita dificuldade em convencer quem me interpela que entre férias e feiras vai uma distância tamanha... A coisa agrava-se quando, como é o caso vertente, a feira é em Las Vegas.

Nesta cidade mítica do estado do Nevada, apesar do nome e por estes dias, os termómetros chegam a ultrapassar os 45 graus centígrados no "day time" e raramente baixam dos 40 pela noite dentro. Mesmo assim, no calor da noite há milhares de pessoas nos passeios e nas ruas, cruzando-se os que cá estão de férias com os que cá estão de feiras... e os que cá estão a trabalhar o ano todo para que nada falte aos "clientes" dos outros dois grupos.

Como não consta que Las Vegas tenha sido erguida apenas nos meses mais cálidos de dezembro e janeiro, é impressionante olhar para cada arranha-céus, para cada hotel e resort, para cada mega-animação ou espetáculo como os do Cirque du Soleil e parar um minuto para pensar no louco que se lembrou de construir um império destes no meio do nada, no meio do deserto. Mas também nos que cá continuam a dar-lhe vida e a fazê-la crescer, todos os dias e todas as noites . Arrostando com o calor do dia e aguentando, firmes e hirtos, o calor da noite.

Vivi a contarem-me que em África e até, ainda que em menor grau, também na Europa do Sul ou mais justamente no Sul dos países da Europa do Sul, o apego e o gosto pelo trabalho (no fundo e em termos economicistas, a produtividade...) eram mais baixos nestas zonas essencialmente por causa do clima, regra geral muito quente. Ou, vá lá, menos temperado.

Aqui comigo estão vários portugueses homens e mulheres, com estilos muito diferentes, de vários escalões etários e estórias de vida também variadas, mas que convergem todos em dois pontos: estão a trabalhar no duro em pleno mês de agosto e não se queixam dos calores do dia ou da noite. A indústria têxtil e vestuário nacional continua a estar repleta de gente desta fibra e por isso ninguém deve achar estranho que no "deserto" que tem crescido nas atividades que perderam o fôlego nas exportações, a ITV continue a erguer uma história de sucesso continuado e consistente. É neste particular e para estes "animais no trabalho", que George Orwell continua a ter razão: os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais que outros.

EMPRESÁRIO

Manuel Serrão
Hoje às 00:00, atualizado às 00:12
Jornal de Notícias