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Os perigos da complacência da dívida
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Os perigos da complacência da dívida
É difícil imaginar uma recuperação sustentada do crescimento da Grécia sem outra ronda de cortes e de perdão de dívida por parte dos credores oficiais, que agora detêm a maioria da dívida do país.
"O que o Governo gasta, o público paga. Não existe défice a descoberto", disse John Maynard Keynes na obra A Tract on Monetary Reform (Um tracto sobre a reforma monetária, numa tradução livre).
Mas Robert Skidelsky, autor da magistral biografia de três volumes de Keynes, não concorda. Num texto recente, intitulado o papão da dívida pública, Skidelsky apresenta uma narrativa condescendente, num tom geralmente reservado para crianças e animais de estimação, sobre a insensata preocupação do seu velho, antiquado e financeiramente iletrado amigo sobre o fardo colocado nas gerações futuras com o aumento da dívida dos governos.
Se o ponto de Skidelsky fosse que algumas economias, incluindo a norte-americana, beneficiariam de gastos mais elevados em infra-estruturas, mesmo com mais dívida, eu sinceramente concordaria. Há razões imperiosas para impulsionar o investimento público nos Estados Unidos, incluindo infra-estruturas deterioradas, crescimento tépido, baixas taxas de juro e espaço limitado para mais estímulos monetários. Para os Estados Unidos, tal ímpeto pode ser especialmente bem-vindo na medida em que a Reserva Federal está a subir as taxas de juro (ainda que gradualmente), enquanto outros países as aliviam ainda mais ou as mantêm, e o dólar provavelmente fortalece.
Mas este não foi o caminho que Skidelsky tomou. Em vez disso, na sua crítica a um comentário de Kenneth Rogoff, argumentou que é disparatado que um país que pode emitir dívida na sua própria moeda se preocupe com o nível de dívida a médio prazo. Chamem-me antiquada mas este argumento cheira a complacência e não é apoiado em factos. Sobre este tema, Skidelsky confunde dois documentos diferentes sobre dívida e crescimento, um documento meu de 2012, no qual alegadamente há alguns receios com dados, com outro no qual fui co-autora com Rogoff e Vincent Reinhart, no qual não há nenhuns.
Vindo de um autor que conhece Keynes tão bem, tal complacência é desapontante. Não posso ler How to Pay For the War(Como pagar uma Guerra, numa tradução livre) e concluir que Keynes pensava que as elevadas dívidas de guerra eram um "papão" para o Reino Unido. De facto, o instrumento do acordo de Bretton Woods, que Keynes posteriormente ajudou a elaborar, foi desenhado para aliviar a difícil transição para a saída de uma situação de dívida.
O caso dos estímulos orçamentais de curto prazo, mesmo no caso de serem uma forma de aumentar a despesa com infra-estruturas, não podem ignorar as perspectivas de médio prazo para economias já com elevadas obrigações com a dívida, envelhecimento da população e o que aparenta ser uma tendência de queda estável do crescimento potencial da produção.
Como Skidelsky nota, a dívida subiu significativamente no Reino Unido e nos Estados Unidos (entre outros) desde 2008, enquanto as taxas de juro continuaram baixas ou caíram. Devemos por isso concluir que uma dívida elevada não está ligada ao baixo crescimento e elevadas taxas de juro (que desencorajam os gastos públicos)?
Lendo um pouco mais do meu estudo desenvolvido com Rogoff e Reinhart, é possível ver que "há pouco que sugira um mapeamento sistémico entre as grandes subidas na média das taxas de juro e nas grandes (e negativas) diferenças no crescimento durante os episódios individuais de sobre-endividamento".
A nossa investigação considerou 26 episódios de elevada dívida entre 1800 e 2011, olhando tanto para as taxas de crescimento como para os níveis reais (ajustados à inflação) das taxas de juro. Em 23 destes episódios de elevada dívida, o crescimento era baixo e em oito o crescimento abrandou mesmo com as taxas de juro reais a manterem-se mais ou menos nos mesmos níveis ou a baixarem. O sobre-endividamento do Japão (dívida totalmente em moeda nacional), que remonta a 1995, ilustra este padrão.
Porque é que o elevado endividamento e baixo crescimento coexistem, apesar do financiamento barato?
Elevados níveis de dívida podem e limitam as capacidades do país para lidar com eventos adversos. Por exemplo, alguns dos grandes bancos italianos foram diagnosticados à medida que se aproximavam da insolvência e precisavam de uma recapitalização substancial. Não é surpreendente que a confiança das famílias e das empresas italianas tenha sido abalada e que as fugas de capital se tenham seguido. Se a dívida italiana não fosse já de 130% do PIB, o Governo poderia estar numa posição de dar os recursos para lidar definitivamente com os persistentes problemas da banca e da confiança?
O nosso estudo de 2012 identificou três países em situação de sobre-endividamento da dívida pública, algo que começou em meados da década de 1990 – a Grécia, a Itália e o Japão. Em relação a outras economias avançadas, estas três economias têm o pior desempenho em termos de crescimento. Para ser clara, o desempenho económico de um país depende de vários factores. Mas a visão de que é o baixo crescimento que faz com que a dívida suba, apesar de ser importante quando se avalia os efeitos cíclicos, dificilmente explica a experiência que estes três países tiveram em duas décadas.
É difícil imaginar uma recuperação sustentada do crescimento da Grécia sem outra ronda de cortes e de perdão de dívida por parte dos credores oficiais, que agora detêm a maioria da dívida do país. A Itália depende fundamentalmente das elevadas compras por parte do Banco Central Europeu das suas obrigações (os seus balanços de target 2 subiram recentemente, reflectindo fugas de capital). O Banco do Japão trabalha cada vez mais no sentido de aumentar as expectativas para a inflação e para o crescimento dos preços, que podem ajudar a diminuir o valor da dívida pendente. ("A inflação é um colector de impostos" como observou Keynes). Outros países, como Portugal, lutam contra o baixo crescimento e com uma posição orçamental frágil.
Os receios sobre os níveis de dívida (pública e privada) ultrapassaram as economias desenvolvidas e chegaram a muitos mercados emergentes. Não consigo lembrar-me de um Governo que esteja preocupado por ter baixos níveis de dívida. Talvez porque o papão da dívida tenha dentes.
Skidelsky não precisa que lhe lembrem do registo histórico que tem nada mais do que uma dúzia de economias desenvolvidas que receberam um alívio de dívida de uma forma ou de outra durante a recessão da década de 1930. A abordagem para reverter os níveis actuais de dívida provavelmente varia consideravelmente de país para país mas é tempo para um maior ênfase na reestruturação da dívida (que vem com um menu de opções) e não na acumulação de mais dívida.
Carmen Reinhart é professora de International Financial System na Kennedy School of Government da Universidade de Harvard.
Copyright: Project Syndicate, 2016.
www.project-syndicate.org
Tradução: Ana Laranjeiro
CARMEN REINHART | 19 Outubro 2016, 20:00
Negócios
"O que o Governo gasta, o público paga. Não existe défice a descoberto", disse John Maynard Keynes na obra A Tract on Monetary Reform (Um tracto sobre a reforma monetária, numa tradução livre).
Mas Robert Skidelsky, autor da magistral biografia de três volumes de Keynes, não concorda. Num texto recente, intitulado o papão da dívida pública, Skidelsky apresenta uma narrativa condescendente, num tom geralmente reservado para crianças e animais de estimação, sobre a insensata preocupação do seu velho, antiquado e financeiramente iletrado amigo sobre o fardo colocado nas gerações futuras com o aumento da dívida dos governos.
Se o ponto de Skidelsky fosse que algumas economias, incluindo a norte-americana, beneficiariam de gastos mais elevados em infra-estruturas, mesmo com mais dívida, eu sinceramente concordaria. Há razões imperiosas para impulsionar o investimento público nos Estados Unidos, incluindo infra-estruturas deterioradas, crescimento tépido, baixas taxas de juro e espaço limitado para mais estímulos monetários. Para os Estados Unidos, tal ímpeto pode ser especialmente bem-vindo na medida em que a Reserva Federal está a subir as taxas de juro (ainda que gradualmente), enquanto outros países as aliviam ainda mais ou as mantêm, e o dólar provavelmente fortalece.
Mas este não foi o caminho que Skidelsky tomou. Em vez disso, na sua crítica a um comentário de Kenneth Rogoff, argumentou que é disparatado que um país que pode emitir dívida na sua própria moeda se preocupe com o nível de dívida a médio prazo. Chamem-me antiquada mas este argumento cheira a complacência e não é apoiado em factos. Sobre este tema, Skidelsky confunde dois documentos diferentes sobre dívida e crescimento, um documento meu de 2012, no qual alegadamente há alguns receios com dados, com outro no qual fui co-autora com Rogoff e Vincent Reinhart, no qual não há nenhuns.
Vindo de um autor que conhece Keynes tão bem, tal complacência é desapontante. Não posso ler How to Pay For the War(Como pagar uma Guerra, numa tradução livre) e concluir que Keynes pensava que as elevadas dívidas de guerra eram um "papão" para o Reino Unido. De facto, o instrumento do acordo de Bretton Woods, que Keynes posteriormente ajudou a elaborar, foi desenhado para aliviar a difícil transição para a saída de uma situação de dívida.
O caso dos estímulos orçamentais de curto prazo, mesmo no caso de serem uma forma de aumentar a despesa com infra-estruturas, não podem ignorar as perspectivas de médio prazo para economias já com elevadas obrigações com a dívida, envelhecimento da população e o que aparenta ser uma tendência de queda estável do crescimento potencial da produção.
Como Skidelsky nota, a dívida subiu significativamente no Reino Unido e nos Estados Unidos (entre outros) desde 2008, enquanto as taxas de juro continuaram baixas ou caíram. Devemos por isso concluir que uma dívida elevada não está ligada ao baixo crescimento e elevadas taxas de juro (que desencorajam os gastos públicos)?
Lendo um pouco mais do meu estudo desenvolvido com Rogoff e Reinhart, é possível ver que "há pouco que sugira um mapeamento sistémico entre as grandes subidas na média das taxas de juro e nas grandes (e negativas) diferenças no crescimento durante os episódios individuais de sobre-endividamento".
A nossa investigação considerou 26 episódios de elevada dívida entre 1800 e 2011, olhando tanto para as taxas de crescimento como para os níveis reais (ajustados à inflação) das taxas de juro. Em 23 destes episódios de elevada dívida, o crescimento era baixo e em oito o crescimento abrandou mesmo com as taxas de juro reais a manterem-se mais ou menos nos mesmos níveis ou a baixarem. O sobre-endividamento do Japão (dívida totalmente em moeda nacional), que remonta a 1995, ilustra este padrão.
Porque é que o elevado endividamento e baixo crescimento coexistem, apesar do financiamento barato?
Elevados níveis de dívida podem e limitam as capacidades do país para lidar com eventos adversos. Por exemplo, alguns dos grandes bancos italianos foram diagnosticados à medida que se aproximavam da insolvência e precisavam de uma recapitalização substancial. Não é surpreendente que a confiança das famílias e das empresas italianas tenha sido abalada e que as fugas de capital se tenham seguido. Se a dívida italiana não fosse já de 130% do PIB, o Governo poderia estar numa posição de dar os recursos para lidar definitivamente com os persistentes problemas da banca e da confiança?
O nosso estudo de 2012 identificou três países em situação de sobre-endividamento da dívida pública, algo que começou em meados da década de 1990 – a Grécia, a Itália e o Japão. Em relação a outras economias avançadas, estas três economias têm o pior desempenho em termos de crescimento. Para ser clara, o desempenho económico de um país depende de vários factores. Mas a visão de que é o baixo crescimento que faz com que a dívida suba, apesar de ser importante quando se avalia os efeitos cíclicos, dificilmente explica a experiência que estes três países tiveram em duas décadas.
É difícil imaginar uma recuperação sustentada do crescimento da Grécia sem outra ronda de cortes e de perdão de dívida por parte dos credores oficiais, que agora detêm a maioria da dívida do país. A Itália depende fundamentalmente das elevadas compras por parte do Banco Central Europeu das suas obrigações (os seus balanços de target 2 subiram recentemente, reflectindo fugas de capital). O Banco do Japão trabalha cada vez mais no sentido de aumentar as expectativas para a inflação e para o crescimento dos preços, que podem ajudar a diminuir o valor da dívida pendente. ("A inflação é um colector de impostos" como observou Keynes). Outros países, como Portugal, lutam contra o baixo crescimento e com uma posição orçamental frágil.
Os receios sobre os níveis de dívida (pública e privada) ultrapassaram as economias desenvolvidas e chegaram a muitos mercados emergentes. Não consigo lembrar-me de um Governo que esteja preocupado por ter baixos níveis de dívida. Talvez porque o papão da dívida tenha dentes.
Skidelsky não precisa que lhe lembrem do registo histórico que tem nada mais do que uma dúzia de economias desenvolvidas que receberam um alívio de dívida de uma forma ou de outra durante a recessão da década de 1930. A abordagem para reverter os níveis actuais de dívida provavelmente varia consideravelmente de país para país mas é tempo para um maior ênfase na reestruturação da dívida (que vem com um menu de opções) e não na acumulação de mais dívida.
Carmen Reinhart é professora de International Financial System na Kennedy School of Government da Universidade de Harvard.
Copyright: Project Syndicate, 2016.
www.project-syndicate.org
Tradução: Ana Laranjeiro
CARMEN REINHART | 19 Outubro 2016, 20:00
Negócios
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