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A Holanda, Portugal e a cultura

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Mensagem por Admin Qua Mar 15, 2017 12:08 pm

J. Rentes de Carvalho explica as diferenças de desenvolvimento entre a Holanda e Portugal por razões culturais. O escritor erra nos números e na avaliação dos portugueses na atualidade.

O escritor J. Rentes de Carvalho é cada vez mais conhecido em Portugal. Quando passei a viver na Holanda, li um livro dele intitulado “Com os Holandeses”. Apesar de ter algumas passagens com graça, era um livro recheado de clichés e de um certo populismo, provinciano e alarmista. Envereda frequentemente por generalizações não justificadas e não generaliza quando deveria generalizar. Além disso, estritamente num plano artístico, a escrita não é nada de especial. Tem o péssimo hábito, por exemplo, de terminar parágrafos com reticências, assim…

Vou deixar a questão estilística de lado, para me focar nos temas que tocam a esta coluna. O livro foi escrito nos anos 70, com uma segunda edição em 1981. Com o processo de desenvolvimento em Portugal, muito do que então Rentes de Carvalho atribuía a diferenças culturais imutáveis dos portugueses já desapareceu. Isto põe em questão o princípio de atribuir os problemas deste país a atributos culturais, como foi enfatizado no título do artigo do Observador: “Somos um país de medricas, de gente subserviente”.

O PIB português por pessoa (em PPP’s ou seja, ajustado à inflação, com o ano base em 1990) era 7063 dólares em 1973, quando o livro foi publicado. Na Holanda, era quase o dobro: 13082 no mesmo ano. Escreve o autor: “[A] diferença entre os países ricos e pobres, em vez de diminuir, vai aumentando” (p. 139). No que toca à relação Portugal-Holanda, a História veio mostrar que estava errado. Em 2010, o PIB português por pessoa viria a ser de 14270 (cerca do dobro do que era em 1973) e o holandês 24303. Ou seja, uma diferença relativa menor do que aquela que existia em 1973.

Mas ainda mais importante é que, quando essa frase foi escrita não representava, de todo, a convergência que tinha acontecido em Portugal com a fronteira europeia nos 20 anos anteriores: em 1953 o rendimento holandês por pessoa era de 6543 dólares. O português, no mesmo ano, era de 2298. Ou seja, o período em que o autor pensou e escreveu o livro (dos anos 50 aos anos 70) foi o mesmo em que a diferença do rendimento por pessoa português passou de cerca de 1/3 do holandês para metade.

Numa perspetiva mundial, o erro veio a revelar-se ainda maior, já que o período decorrido desde 1973 inclui o processo de maior e mais rápida saída de pessoas do estado de pobreza em toda a História, nomeadamente com o arranque de desenvolvimento da China, a partir de final dos anos 70, e da Índia, a partir do início dos anos 90. Em resumo, tanto em relação a Portugal como à escala global da economia, não teria sido possível estar mais errado do que dizer que “[A] diferença entre os países ricos e pobres, em vez de diminuir, vai aumentando” (p. 139).

Este livro demonstra pois um provincianismo atroz que várias décadas a viver no estrangeiro não foram capazes de mitigar. Por exemplo, Carvalho cita um dicionário de língua neerlandesa que define o conceito holandês de Akties como a “formalização e exteriorização conjunta de uma luta, tendência, aspiração, ou esforço” (p. 76). Diz que é um conceito que caracteriza a personalidade dos holandeses.
Mas basta lembrar certas “modas” que também surgiram em Portugal, como o “Je suis Charlie” ou o pico de apoio aos imigrantes quando apareceu a fotografia da criança morta na praia, movimentos que morreram tão depressa como nasceram. Nisto, Portugal está hoje completamente inserido na normalidade europeia, sendo as redes sociais mais uma consequência do que uma causa dessa integração.

As suas acusações, certamente justificadas, sobre a forma como os holandeses tratavam os portugueses emigrados (p. 47), são atribuídas à sua cultura e natureza. Mas esse tratamento não terá sido muito diferente do que, infelizmente, tantos brasileiros ou romenos viriam a receber em Portugal por volta de 2004-5.

As suas acusações sobre a prática de utilização de “lares de terceira idade” (p. 51-52), em vez de um núcleo familiar alargado, também se viriam a repetir em Portugal décadas mais tarde.

Aos erros com os números juntam-se frases que factualmente, são incorretas. Por exemplo: “Portugal … é hoje [1973/1981] o país mais pobre da Europa” (p.168). Será que a Europa de Leste não fazia parte da Europa? Dizer isto quando Portugal estava em franco crescimento, com as maiores mudanças da sua História, é típico de um certo tipo de escritores, jornalistas e “especialistas” em ciências sociais que têm medo de números, mas que, mesmo assim, querem falar da sociedade, com resultados que não são os melhores.

Diz o autor: “[Na Holanda] pobres como nós em Portugal temos, com fome, com frio, em andrajos, mostrando as chagas para que lhes dêm pão, não há” (p. 44) “[Em Portugal as ruas e praças estão] cheias de mendigos, esfomeados, doentes, crianças abandonadas, todos a estender a mão à caridade” (p. 168).

Apesar de, infelizmente, ainda haver muita pobreza em Portugal (há em todo o lado, e posso-vos garantir que aqui na Holanda também há, apesar de evidentemente menos do que em Portugal), não me parece que possamos dizer que estas frases caracterizam hoje bem o país. E é preciso não esquecer que, apesar da Holanda ser um país em que a fuga aos impostos não é bem vista pelos seus cidadãos (em contraste com o que frequentemente acontece em Portugal), este país tem desempenhado um papel importante como paraíso fiscal para imensas empresas, inclusivamente portuguesas.

Como escreve a revista The Economist: “On a roundabout near one of the main roads into Amsterdam sits a drab office block which is home to hundreds of multinationals—on paper.” Ou seja, se a Holanda é hoje tão rica, isso deve-se, em parte, a políticas que fico feliz por não serem prática corrente em Portugal. (E que a UE tem de combater, mas esse assunto fica para outra vez.)

Explicações culturais “fáceis” não são satisfatórias, até porque a cultura muda com o tempo. Não pretendo afirmar que a cultura não possa importar para compreendermos diferenças de desenvolvimento. Mas não explica tudo, e nalguns casos até pode explicar muito pouco. Tudo depende de quais são as circunstâncias.

Portugal até podia ser “um país de medricas, de gente subserviente” nos anos 1970, e ainda mais quando o autor saiu do país há 60 anos. Talvez. Mas hoje, no momento em que o autor dá a entrevista, não. Hoje é até um país onde há muita gente a querer ter opinião sobre quase tudo, mesmo estando mal informados, e estando absolutamente convencidos que têm razão.

Na mesma entrevista que citei no primeiro parágrafo, Carvalho faz várias observações sobre a suposta psicologia dos portugueses, o que me parece completamente desajustado à realidade de hoje.

Convém reconhecer, no entanto, que Carvalho não está errado em tudo. Por exemplo, as considerações comparativas que faz, na entrevista, sobre a cultura do almoço em Portugal vs. na Holanda, são a meu ver verdadeiras. Mas parece-me que o autor escreve essencialmente sobre um Portugal que terá talvez conhecido em Trás-os-Montes e Viana há mais de 60 anos, mas que já não existe. Posso garantir que, ao contrário do que afirma, as portuguesas da minha geração (que são quem irá definir o futuro) já não têm uma “condição de fêmea”, nem se apresentam “inseguras, fracas, submissas e obedientes”. E ainda bem.

Adenda: O texto em cima foi terminado há mais de uma semana (tendo por base uma versão preliminar publicada no blogue Portugal no Longo Prazo) e já tinha sido enviado para publicação no ECO quando surgiu esta notícia, em que Rentes de Carvalho afirma o seu apoio ao candidato populista da extrema-direita holandesa Geert Wilders. Os argumentos “de protesto” que utiliza são semelhantes aos que poderiam ser dados por americanos que votaram em Donald Trump, por franceses para votar em Marine Le Pen ou por italianos para votar em Beppe Grillo. Qual é a diferença? Deixo a pergunta aos leitores.

Note-se, por fim, que na Holanda a percentagem de Muçulmanos é 6 a 7%, mas como alguns inquéritos mostram os holandeses respondem que são quase 20%, um enorme exagero, repetido por Carvalho, e em linha com as perceções do público de outros países ocidentais. Um (suposto) intelectual deveria fazer melhor figura.

Nuno Palma
7:15
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