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Combater a desigualdade… ou a pobreza?
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Combater a desigualdade… ou a pobreza?
Na presente série de “leituras em férias”, o livro de hoje é um best-seller da Amazon: Capital in the Twenty-First Century, do francês Thomas Piketty. São 685 páginas, densamente povoadas por gráficos e uma cerrada argumentação sobre o crescimento das desigualdades no ocidente desde a década de 1970.
A obra tem gerado abundante controvérsia, incluindo um editorial (crítico) e chamada de primeira página em The Economist, vários artigos (contra e a favor) no Financial Times. Para um modesto estudioso de teoria política, todos estes assuntos são motivo de admiração — a prudente distância. A obra é certamente admirável, pelo volume de evidência empírica que mobiliza. No entanto, receio ter de confessar que não estou seguro de ter compreendido o simples problema de partida que ele se propõe tratar: a magna questão da desigualdade.
Basicamente, é-nos dito que as desigualdades estão a aumentar no Ocidente e que estas devem ser corrigidas, sobretudo através de fortes impostos “globais” sobre os rendimentos do capital. Mas não é explicado por que motivo é a desigualdade um problema, nem por que motivo a igualdade (e que tipo de igualdade) seria preferível à desigualdade. (Há umas vagas e insistentes referências a “desigualdades democráticas”, fundadas no mérito, e “não democráticas”, fundadas em “rendas”). Por outras palavras, o livro parte de um dogma, que pode ser inteiramente acertado: o dogma de que a desigualdade é má. Mas não explica por que razão devemos aceitar esse dogma.
Este dogma é apresentado como auto-evidente. Tão auto-evidente que as grandes controvérsias económicas ter-se-iam centrado nele. O autor recorda duas perspectivas rivais: o pessimismo de Marx, que previa uma inevitável bipolarização entre ricos e pobres; e o optimismo de Kuznets, que previa uma natural redução das desigualdades através das forças de mercado. Diz que nenhum tinha razão, embora Marx pareça ter estado mais perto de Piketty.
Com o devido respeito, deve ser recordado que a discussão sobre a desigualdade não se resume ao confronto entre previsões sobre a sua provável evolução. Existe uma vasta tradição de reflexão crítica sobre o dogma de que a desigualdade de resultados é intrinsecamente condenável — e ela está ausente neste livro.
Em rigor, esse dogma é dificilmente sustentável — se for aceite o princípio da igual liberdade perante a lei (o que significa, entre outras coisas, ausência de protecção política discricionária a rendas de situação). Indivíduos igualmente livres vão poder agir diferentemente. Dessas diferentes acções, resultarão diferentes resultados. Logo, da liberdade igual perante a lei — um princípio crucial do Estado de direito — resulta a desigualdade de resultados.
Isto significa que uma presunção da liberdade implica uma presunção da desigualdade. Em alternativa, uma presunção da igualdade (como obviamente é a preferência de Thomas Piketty) implica uma negação da presunção da liberdade. É certamente possível negar a presunção da liberdade — mas é preciso dizê-lo abertamente, além de o justificar, o que não é o caso neste livro.
Na verdade, é possível argumentar que o imperativo moral prioritário reside no combate à pobreza, não no combate à desigualdade, e na criação de redes de segurança para todos, abaixo das quais ninguém deve recear cair. Muitos autores têm mesmo argumentado que os dois não são compatíveis: ou se combate a pobreza e se reforçam redes de segurança para todos, ou se combate a desigualdade — mas, neste último caso, a pobreza aumentará. Entre muitos autores, David Hume foi talvez quem captou esta escolha de forma mais cortante:
“Por mais igual que se torne a distribuição da riqueza, os diferentes graus de arte, interesse e indústria dos homens destruirão imediatamente essa igualdade. Ou, se controlarmos essas virtudes, reduziremos a sociedade à mais extrema indigência; e, em vez de evitarmos a necessidade e a penúria em alguns indivíduos, torná-las-emos inevitáveis para toda a comunidade. Será necessária também a mais rigorosa inquirição para detectar todas as desigualdades assim que elas surjam, bem como a mais severa jurisdição para as punir e corrigir” (An Enquiry Concerning the Principles of Morals, 1777).
Julgo que o (a mais do que um título) saudoso Ronald Reagan teria gostado deste livro de Piketty. Ele ilustra, com muito “mérito democrático”, a visão política que Reagan sempre criticou: “If it moves, tax it. If it keeps moving, regulate it. And if it stops moving, subsidize it.”
JOÃO CARLOS ESPADA 25/08/2014 - 05:13
Público
A obra tem gerado abundante controvérsia, incluindo um editorial (crítico) e chamada de primeira página em The Economist, vários artigos (contra e a favor) no Financial Times. Para um modesto estudioso de teoria política, todos estes assuntos são motivo de admiração — a prudente distância. A obra é certamente admirável, pelo volume de evidência empírica que mobiliza. No entanto, receio ter de confessar que não estou seguro de ter compreendido o simples problema de partida que ele se propõe tratar: a magna questão da desigualdade.
Basicamente, é-nos dito que as desigualdades estão a aumentar no Ocidente e que estas devem ser corrigidas, sobretudo através de fortes impostos “globais” sobre os rendimentos do capital. Mas não é explicado por que motivo é a desigualdade um problema, nem por que motivo a igualdade (e que tipo de igualdade) seria preferível à desigualdade. (Há umas vagas e insistentes referências a “desigualdades democráticas”, fundadas no mérito, e “não democráticas”, fundadas em “rendas”). Por outras palavras, o livro parte de um dogma, que pode ser inteiramente acertado: o dogma de que a desigualdade é má. Mas não explica por que razão devemos aceitar esse dogma.
Este dogma é apresentado como auto-evidente. Tão auto-evidente que as grandes controvérsias económicas ter-se-iam centrado nele. O autor recorda duas perspectivas rivais: o pessimismo de Marx, que previa uma inevitável bipolarização entre ricos e pobres; e o optimismo de Kuznets, que previa uma natural redução das desigualdades através das forças de mercado. Diz que nenhum tinha razão, embora Marx pareça ter estado mais perto de Piketty.
Com o devido respeito, deve ser recordado que a discussão sobre a desigualdade não se resume ao confronto entre previsões sobre a sua provável evolução. Existe uma vasta tradição de reflexão crítica sobre o dogma de que a desigualdade de resultados é intrinsecamente condenável — e ela está ausente neste livro.
Em rigor, esse dogma é dificilmente sustentável — se for aceite o princípio da igual liberdade perante a lei (o que significa, entre outras coisas, ausência de protecção política discricionária a rendas de situação). Indivíduos igualmente livres vão poder agir diferentemente. Dessas diferentes acções, resultarão diferentes resultados. Logo, da liberdade igual perante a lei — um princípio crucial do Estado de direito — resulta a desigualdade de resultados.
Isto significa que uma presunção da liberdade implica uma presunção da desigualdade. Em alternativa, uma presunção da igualdade (como obviamente é a preferência de Thomas Piketty) implica uma negação da presunção da liberdade. É certamente possível negar a presunção da liberdade — mas é preciso dizê-lo abertamente, além de o justificar, o que não é o caso neste livro.
Na verdade, é possível argumentar que o imperativo moral prioritário reside no combate à pobreza, não no combate à desigualdade, e na criação de redes de segurança para todos, abaixo das quais ninguém deve recear cair. Muitos autores têm mesmo argumentado que os dois não são compatíveis: ou se combate a pobreza e se reforçam redes de segurança para todos, ou se combate a desigualdade — mas, neste último caso, a pobreza aumentará. Entre muitos autores, David Hume foi talvez quem captou esta escolha de forma mais cortante:
“Por mais igual que se torne a distribuição da riqueza, os diferentes graus de arte, interesse e indústria dos homens destruirão imediatamente essa igualdade. Ou, se controlarmos essas virtudes, reduziremos a sociedade à mais extrema indigência; e, em vez de evitarmos a necessidade e a penúria em alguns indivíduos, torná-las-emos inevitáveis para toda a comunidade. Será necessária também a mais rigorosa inquirição para detectar todas as desigualdades assim que elas surjam, bem como a mais severa jurisdição para as punir e corrigir” (An Enquiry Concerning the Principles of Morals, 1777).
Julgo que o (a mais do que um título) saudoso Ronald Reagan teria gostado deste livro de Piketty. Ele ilustra, com muito “mérito democrático”, a visão política que Reagan sempre criticou: “If it moves, tax it. If it keeps moving, regulate it. And if it stops moving, subsidize it.”
JOÃO CARLOS ESPADA 25/08/2014 - 05:13
Público
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