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PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE: Imaterial e imemorial
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PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE: Imaterial e imemorial
Mal começamos a reconstruir as evidências materiais do património imaterial, a origem de tudo aquilo que achamos que se perde na noite dos tempos aproxima-se assustadoramente da semana passada.
Acompanhei com interesse os últimos acrescentos à lista do património imaterial da humanidade, e muito especialmente o caso do pão caseiro na Arménia. Temos a ideia razoável de que tudo aquilo que é humano neste sentido elevado deve ser muito antigo, e até imemorial. Àquilo que fazemos com regularidade chamamos costumes ou hábitos; e as histórias que contamos acerca dos nossos hábitos são histórias em que costumamos colocar-nos na posição de seus herdeiros. Há o hábito de afastar o mais possível do nosso tempo a origem desses costumes.
Um historiador demonstrou que, pelo menos até 1917, a única coisa que se comia na Arménia era salada russa. O conceito de património imaterial é vulnerável a estes percalços. De facto, depende de evidências; mas as evidências têm uma tendência desafortunada para serem materiais. Mal começamos a reconstruir as evidências materiais do património imaterial, a origem de tudo aquilo que achamos que se perde na noite dos tempos aproxima-se assustadoramente da semana passada.
A alegação de hábitos, costumes e tradições não ganha assim muito em ser escrutinada, a não ser quando o motivo e a empresa são de humilhação e castigo. Um conhecido poeta arménio observou que o pão caseiro é o nada que é tudo. Agir como se o nada fosse alguma coisa equivale a querer pedir certificados de autenticidade para as ideias que costumamos ter, e a pedir a terceiros que garantam que sempre as tivemos.
É a importância que para nós têm certas ideias que nos leva a ir bater à porta das sociedades e instituições especializadas na certificação de fenómenos imateriais. Esta diligência inaugura porém uma série de infelicidades. A certificação das nossas ideias preferidas requer evidências; abre a porta à possibilidade de aparecer alguém que as irá enxovalhar, e explicar que aquilo que nos parece importante é trivial, e que aquilo que nos parece antigo é recente.
Ao contrário do que possa parecer não se trata de um problema ou de um defeito da historiografia ou da cultura; trata-se de uma característica da espécie a que alguém chamou animais racionais e dependentes. Tais animais, pessoas exactamente como nós, inclinam-se a pensar que as suas ideias e actividades tiveram todas origem em tempos muito remotos; esta inclinação, porém, quase nunca resiste a um escrutínio hostil. Uma vida inteira de Verões passados na Nazaré são afinal oito anos; um costume secular, pouco mais de cinquenta e quatro.
É preciso distinguir as nossas ideias importantes das nossas fantasias de certificação, as coisas imateriais das coisas imemoriais. As nossas infelicidades com aquilo que é imaterial indicam que o que é material no fundo não nos interessa muito; e as nossas infelicidades com a noção de imemorial indicam que somos animais desmemoriados.
Miguel Tamen
12/12/2014, 7:02
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