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Homenagens do vício à virtude
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Homenagens do vício à virtude
Disfarçando-se de valores cristãos e solidariedade para com os pobres autóctones, o egoísmo xenófobo mostra como, na hipocrisia, o vício homenageia a virtude
O actual afluxo de refugiados ao continente europeu tem sido caracterizado por inúmeros episódios de profundo drama humano, por alguns gestos notáveis de solidariedade... e por demonstrações de extraordinária mesquinhez e hipocrisia.
Esta última tem-se revestido de duas formas especialmente frequentes nestes útimos dias. A primeira é a crítica à solidariedade e ao acolhimento por parte dos que alegam que o afluxo de refugiados do Médio Oriente e de África, muitos dos quais são muçulmanos, porá em causa ou perturbará a “matriz cristã” da Europa. Não é um argumento novo – é apenas a aplicação à crise acual da velha ideia islamófoba segundo a qual estaria em curso uma invasão – da qual, nas versões mais imbecis, os refugiados seriam conspirativos executores – com o objectivo de substituir a “população cristã da Europa”.
Pouco importa – pois a racionalidade pouco importa para estas coisas – que quando falamos, por exemplo, de 400.000 refugiados (que é aproximadamente o número total de pedidos de asilo registados em todos os países da União Europeia nos primeiros seis meses de 2015), estejamos a falar de 0,08% da população europeia. Ou seja, um refugiado por cada 1250 habitantes – o que, convenhamos, é pouco impressionante como “invasão”. E pouco interessa, claro está, a memória de como a Europa gerou ela própria milhões de refugiados há apenas algumas décadas, tendo na altura muitos deles tido a felicidade de não terem sido rejeitados da forma como estes auto-proclamados defensores da matriz identitária europeia defendem agora que se deva rejeitar quem foge da guerra e da perseguição.
Mas o que é mais curioso, pelo menos do ponto de vista da hipocrisia do discurso, é que os mais acérrimos defensores deste essencialismo cristão europeu estejam tão distantes da fraternidade a que o Papa tem exemplarmente apelado no contexto desta crise, por exemplo instando a que cada paróquia da Europa acolha uma família de refugiados. E não só distantes do discurso do Papa, como também nos antípodas da mensagem cristã exemplificada pela forma como São Martinho rasgou ao meio a sua capa a fim de partilhá-la com o pedinte que tiritava de frio. Renegando na prática os mesmos valores cristãos com que enchem a boca, estes defensores de uma fictícia identidade europeia estática e exclusivista depressa se revelam, se dúvidas houvera, como racistas vulgares.
Não estao sós na hipocrisia. Outra variedade que foi lesta a emergir nestes últimos dias é a dos que rejeitam o acolhimento e solidariedade para com os refugiados com o argumento de que são muitos os pobres e pessoas sem-abrigo em Portugal e que é a estes que deve ser dada prioridade. Curiosamente, quem recorre a este argumento raramente demonstrou anteriormente grande preocupação com os pobres e pessoas sem-abrigo deste país – enquanto que as organizações que, pelo contrário, há muito se dedicam a trabalhar para melhorar a situação dos mais pobres estão agora na linha da frente da plataforma de solidariedade que tem vindo a ser organizada para coordenar a ajuda aos refugiados que Portugal vier a acolher. A declaração pública desta Plataforma de Apoio aos Refugiados a este respeito é lapidar: “Quem ajuda os sem-abrigo e os pobres em Portugal são as mesmas organizações que estão a organizar o acolhimento dos refugiados. Infelizmente, os que tradicionalmente fazem esta pergunta encontram-se pouco entre os que ajudam os pobres e os sem-abrigo.”
Quer num caso quer no outro, é irónico que o egoísmo, o racismo e a xenofobia se vejam obrigados a envergar uma capa de valores cristãos e solidariedade local, reconhecendo assim implicitamente a sua própria fealdade. A hipocrisia é mesmo a homenagem que o vício presta à virtude.
ALEXANDRE ABREU
09.09.2015 7h00
Expresso
O actual afluxo de refugiados ao continente europeu tem sido caracterizado por inúmeros episódios de profundo drama humano, por alguns gestos notáveis de solidariedade... e por demonstrações de extraordinária mesquinhez e hipocrisia.
Esta última tem-se revestido de duas formas especialmente frequentes nestes útimos dias. A primeira é a crítica à solidariedade e ao acolhimento por parte dos que alegam que o afluxo de refugiados do Médio Oriente e de África, muitos dos quais são muçulmanos, porá em causa ou perturbará a “matriz cristã” da Europa. Não é um argumento novo – é apenas a aplicação à crise acual da velha ideia islamófoba segundo a qual estaria em curso uma invasão – da qual, nas versões mais imbecis, os refugiados seriam conspirativos executores – com o objectivo de substituir a “população cristã da Europa”.
Pouco importa – pois a racionalidade pouco importa para estas coisas – que quando falamos, por exemplo, de 400.000 refugiados (que é aproximadamente o número total de pedidos de asilo registados em todos os países da União Europeia nos primeiros seis meses de 2015), estejamos a falar de 0,08% da população europeia. Ou seja, um refugiado por cada 1250 habitantes – o que, convenhamos, é pouco impressionante como “invasão”. E pouco interessa, claro está, a memória de como a Europa gerou ela própria milhões de refugiados há apenas algumas décadas, tendo na altura muitos deles tido a felicidade de não terem sido rejeitados da forma como estes auto-proclamados defensores da matriz identitária europeia defendem agora que se deva rejeitar quem foge da guerra e da perseguição.
Mas o que é mais curioso, pelo menos do ponto de vista da hipocrisia do discurso, é que os mais acérrimos defensores deste essencialismo cristão europeu estejam tão distantes da fraternidade a que o Papa tem exemplarmente apelado no contexto desta crise, por exemplo instando a que cada paróquia da Europa acolha uma família de refugiados. E não só distantes do discurso do Papa, como também nos antípodas da mensagem cristã exemplificada pela forma como São Martinho rasgou ao meio a sua capa a fim de partilhá-la com o pedinte que tiritava de frio. Renegando na prática os mesmos valores cristãos com que enchem a boca, estes defensores de uma fictícia identidade europeia estática e exclusivista depressa se revelam, se dúvidas houvera, como racistas vulgares.
Não estao sós na hipocrisia. Outra variedade que foi lesta a emergir nestes últimos dias é a dos que rejeitam o acolhimento e solidariedade para com os refugiados com o argumento de que são muitos os pobres e pessoas sem-abrigo em Portugal e que é a estes que deve ser dada prioridade. Curiosamente, quem recorre a este argumento raramente demonstrou anteriormente grande preocupação com os pobres e pessoas sem-abrigo deste país – enquanto que as organizações que, pelo contrário, há muito se dedicam a trabalhar para melhorar a situação dos mais pobres estão agora na linha da frente da plataforma de solidariedade que tem vindo a ser organizada para coordenar a ajuda aos refugiados que Portugal vier a acolher. A declaração pública desta Plataforma de Apoio aos Refugiados a este respeito é lapidar: “Quem ajuda os sem-abrigo e os pobres em Portugal são as mesmas organizações que estão a organizar o acolhimento dos refugiados. Infelizmente, os que tradicionalmente fazem esta pergunta encontram-se pouco entre os que ajudam os pobres e os sem-abrigo.”
Quer num caso quer no outro, é irónico que o egoísmo, o racismo e a xenofobia se vejam obrigados a envergar uma capa de valores cristãos e solidariedade local, reconhecendo assim implicitamente a sua própria fealdade. A hipocrisia é mesmo a homenagem que o vício presta à virtude.
ALEXANDRE ABREU
09.09.2015 7h00
Expresso
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