Perguntas para a democracia

Da abstenção e dos votos dos mais afectados pela austeridade e da classe média dependerá o desempate das legislativas.


Confesso ao leitor que entendo sempre um acto eleitoral da magnitude de umas legislativas como um momento para comprovar as virtudes e os defeitos do modelo democrático. Uma oportunidade para reflectir sobre a sua degradação num mundo cada vez menos ideológico e cada vez mais casuístico e empírico.

Perceber se os amedrontados com os avanços dos radicalismos de esquerda e de direita, por um lado, e os fundamentalismos religiosos e ditaduras “travestidas” (com mais ou menos autoritarismo ilegítimo), por outro lado, têm ou não razões para transmitirem as suas preocupações, ou se devemos apenas e simplesmente subentender, pelo menos nessa parte, que os radicalismos e os fundamentalismos que a democracia não pode deixar de admitir em nome do primado da vontade popular se esgotarão no dia em que possam chegar à mesa das decisões – aliás, o Syriza tem contribuído muito para esta convicção.

Os processos eleitorais são ideais para se entender o que tem mudado nas sociedades contemporâneas do mundo ocidental para colocar em crise este modelo de princípios, direitos, garantias e – não esqueçamos – deveres e vínculos. E ir mais longe, vendo isto por regiões e interesses de conjuntos de países, de tal modo que se faça o prognóstico sobre o vencimento de sistemas representativo-parlamentares em algumas áreas geoestratégicas mais sensíveis do globo. Claro que nós estamos na Europa do sistema “típico” (pós- Segunda Guerra Mundial). Ainda assim, elaborar este exercício com Portugal, país que, juntamente com a Grécia e a Espanha, protagonizou a democratização que deu o arranque definitivo à Europa da CEE (e a todos os seus modelos de coesão), não será necessariamente um exercício inútil.

Fazem-se hoje campanhas como se faziam há 20 ou 30 anos? Há preocupações de fazer chegar às pessoas as peças essenciais com que se quer fazer engrenar um país? O carisma dos líderes funciona da mesma maneira? Conseguem verificar-se as identidades de cada um dos partidos? O “populismo” degrada ou enriquece porque puxa temas e diz “verdades”?

Desconfiar dos políticos, ser abstencionista e ignorar o voto tem o mesmo significado de outrora, ou é mais grave na substância do alheamento, gérmen das mudanças de “regime” (pois tanto aquece como arrefece…)? As classes sociais estão mais próximas na aplicação do regime de direitos, liberdades e garantias, ou a base e o topo distanciaram-se e, dentro delas, há corpos fragmentados que desprezam os fundamentos do regime?

Às pessoas interessa verdadeiramente escolher? Às pessoas interessa ver no voto um instrumento de criação de oportunidades, de mobilidade social, de redução de desigualdades, de divisão dos recursos e (nada despiciendo) de concretização das expectativas de estabilidade futura? Democracia “liberal” é hoje, pelo menos, tudo isto.

Deveríamos pensar em respostas a partir do dia 5 de Outubro. Com três tópicos essenciais. Saber quantos abstencionistas habituais foram à urna. Saber como se orientaram os estratos mais afectados com a austeridade. E saber qual foi a tendência generalizada da classe média (a começar pelo funcionalismo público, que tem o Estado falido em 2011 como patrão).

Se bem vejo, só Paulo Portas tem estado a falar insistentemente para a classe média. Deve ter lido o mesmo que todos aqueles que sabem hoje que os resultados finais em democracia “ocidental” dependem muito da sua inclinação. Pois é a verdade: da classe média dependeu, depende e dependerá a âncora do que a democracia dá e mais nenhum sistema pode dar.

Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto
Escreve à quinta-feira

Ricardo Costa 
17/09/2015 08:00
Jornal i