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Nocturno à Beira-Mar
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Nocturno à Beira-Mar
Numa fotografia de estúdio da província, já fora de moda nesses meados de oitenta, avistaria eu pela primeira vez a figura física de Luís Miguel Nava. Ali me aparecia ele, muito jovem, e na companhia de uma rapariga de idade equivalente, ladeando ambos uma criança, e compondo a família nuclear do cliché das gerações. Fora Eugénio de Andrade quem me metera nas mãos aquele retratinho de grupo em tamanho postal, e só muito mais tarde eu descobriria que semelhante agregado não passava de pura encenação. Parece-me hoje simbólico, deverei aduzir, que o contacto inicial com o poeta tenha ocorrido por intermédio de um ícone, se se considerar que sempre ele erigiria a própria imagem em eixo da sua identidade biológica e literária.
Cumprem-se este ano duas décadas sobre a trágica morte de Luís Miguel, e uma perspectiva mais humanizada dos afectos do mundo tornará porventura iluminante a análise do seu percurso existencial, e do contributo que ele terá prestado para um futuro melhor. A espontaneidade quase infantil com que o autor de A Inércia da Deserção assumia o estilo de vida que abraçara, atitude que talvez surgisse aos mais timoratos como um desafio assustador, valer-lhe-ia simpatias e ostracismos, fidelidades e traições, e até o culto póstumo que o prematuro desaparecimento não raro fortifica. Recordo-me de o ouvir descrever o modo como os seus conterrâneos de Viseu, e seus conhecidos, "só quando não podiam evitá-lo", o cumprimentavam em público. E lembro-me de me ter narrado o comportamento do progenitor de um aluno seu, cavalheiro que à data presente desempenha as funções ministeriais que lhe competem como o mais idoso elemento do executivo, o qual correria à direcção do estabelecimento em que Luís Miguel Nava exercia a docência, a queixar-se do moço professor que lia às suas turmas os versos de "um tal Andrade", notável arauto de amores fora da lei. Luís Miguel reagia a estas afrontas com a perplexidade de quem se esforça por entender as aberrantes idiossincrasias, coloridas pela moralidade dos seus contemporâneos, mas sem que manifestasse a menor das frustrações, ou qualquer laivo de ressentimento.
Invariavelmente amistosa, a nossa relação nem sempre seria no entanto de admiração oficinal recíproca, fenómeno de resto pouco frequente num país como o nosso, lavrado pelo fulanismo que obriga a detestar a obra da pessoa que se detesta, e a desprezar quem produz aquilo que desprezamos. Eu sentia verdadeira estima por Luís Miguel Nava, e não duvidava da lealdade com que ma retribuía, mas isso jamais nos impeliria à mútua reverência artística. E se o acusava do excessivo tributo que o via render aos líricos da classe de cinquenta, logo ele me aplicava o epíteto apoucante de "excelente conversador". Decorria assim sem sobressaltos o nosso diálogo, coisa que em tom divertido atribuíamos ao cruzamento de distantes ramos genealógicos nossos, oriundos do coração de Castela-a-Velha.
Mostrava-se aliás agradável o convívio com ele, levantados os anteparos que a prudência aconselhava face aos súbitos ataques de cólera que de longe a longe o acometiam. Creio que a maioria de nós o encarava como um parceiro elegante, denunciando um toque public school, e reivindicando o direito ao pequeno séquito que o apajava em Lisboa, em Bruxelas, ou em Santiago de Compostela. E quanto à sua momentânea arrogância, essa festejávamo-la com o relato da irritação que por causa disso se apoderara de uma ou outra catedrática, mais empedernida na sua virgindade, da faculdade de letras onde o poeta estudara.
No princípio de uma manhã de Maio de 1995 o escritor Amadeu Lopes Sabino acordar--me-ia com a horrível notícia, telefonada da Bélgica, do assassínio monstruoso em que fora imolado o amigo comum. Revisitei num relâmpago o itinerário dos nossos encontros e desencontros, e tomei as medidas indispensáveis para que se abrisse no Porto a câmara mortuária a que afluiriam os mais próximos de Luís Miguel, e entre eles Maria Alzira Seixo, sua professora e, essa sim, na plena consciência da grandeza do que partira, e da catástrofe que a todos nós em suma atingira.
A cada passo evocava ele uma difusa noite, remota e inquietante, à beira-mar, e que eu fantasiava de lantejoulas inscritas em crepes esfarrapados. E quando numa ocasião, e em Roma, o ficcionista italiano Vincenzo Consolo, presidente do júri do Prémio da União Latina que eu integrava, se lançou a explicar a metamorfose de que sofria Pasolini, homem sereno e cordato à luz do dia, mas íntimo de anjos negros depois do pôr do Sol, aflorou-me à memória o fantasma de Luís Miguel. Compensava-me já porém um secreto júbilo, sobrevivente ao destino que lhe coubera. Na madrugada de Primavera em que o velávamos, e em surdina, confidenciara-me o pai do poeta o quanto este tinha apreciado as palavras de entusiasmo com que eu saudara o seu último livro, o extraordinário Vulcão. Não por acaso, e nas linhas finais do mesmo, pediria ele ao leitor,
"Acolhe-o, pois, com benevolência, que, chegada a altura, havemos de arder juntos."
por MÁRIO CLÁUDIO
Diário de Notícias
Cumprem-se este ano duas décadas sobre a trágica morte de Luís Miguel, e uma perspectiva mais humanizada dos afectos do mundo tornará porventura iluminante a análise do seu percurso existencial, e do contributo que ele terá prestado para um futuro melhor. A espontaneidade quase infantil com que o autor de A Inércia da Deserção assumia o estilo de vida que abraçara, atitude que talvez surgisse aos mais timoratos como um desafio assustador, valer-lhe-ia simpatias e ostracismos, fidelidades e traições, e até o culto póstumo que o prematuro desaparecimento não raro fortifica. Recordo-me de o ouvir descrever o modo como os seus conterrâneos de Viseu, e seus conhecidos, "só quando não podiam evitá-lo", o cumprimentavam em público. E lembro-me de me ter narrado o comportamento do progenitor de um aluno seu, cavalheiro que à data presente desempenha as funções ministeriais que lhe competem como o mais idoso elemento do executivo, o qual correria à direcção do estabelecimento em que Luís Miguel Nava exercia a docência, a queixar-se do moço professor que lia às suas turmas os versos de "um tal Andrade", notável arauto de amores fora da lei. Luís Miguel reagia a estas afrontas com a perplexidade de quem se esforça por entender as aberrantes idiossincrasias, coloridas pela moralidade dos seus contemporâneos, mas sem que manifestasse a menor das frustrações, ou qualquer laivo de ressentimento.
Invariavelmente amistosa, a nossa relação nem sempre seria no entanto de admiração oficinal recíproca, fenómeno de resto pouco frequente num país como o nosso, lavrado pelo fulanismo que obriga a detestar a obra da pessoa que se detesta, e a desprezar quem produz aquilo que desprezamos. Eu sentia verdadeira estima por Luís Miguel Nava, e não duvidava da lealdade com que ma retribuía, mas isso jamais nos impeliria à mútua reverência artística. E se o acusava do excessivo tributo que o via render aos líricos da classe de cinquenta, logo ele me aplicava o epíteto apoucante de "excelente conversador". Decorria assim sem sobressaltos o nosso diálogo, coisa que em tom divertido atribuíamos ao cruzamento de distantes ramos genealógicos nossos, oriundos do coração de Castela-a-Velha.
Mostrava-se aliás agradável o convívio com ele, levantados os anteparos que a prudência aconselhava face aos súbitos ataques de cólera que de longe a longe o acometiam. Creio que a maioria de nós o encarava como um parceiro elegante, denunciando um toque public school, e reivindicando o direito ao pequeno séquito que o apajava em Lisboa, em Bruxelas, ou em Santiago de Compostela. E quanto à sua momentânea arrogância, essa festejávamo-la com o relato da irritação que por causa disso se apoderara de uma ou outra catedrática, mais empedernida na sua virgindade, da faculdade de letras onde o poeta estudara.
No princípio de uma manhã de Maio de 1995 o escritor Amadeu Lopes Sabino acordar--me-ia com a horrível notícia, telefonada da Bélgica, do assassínio monstruoso em que fora imolado o amigo comum. Revisitei num relâmpago o itinerário dos nossos encontros e desencontros, e tomei as medidas indispensáveis para que se abrisse no Porto a câmara mortuária a que afluiriam os mais próximos de Luís Miguel, e entre eles Maria Alzira Seixo, sua professora e, essa sim, na plena consciência da grandeza do que partira, e da catástrofe que a todos nós em suma atingira.
A cada passo evocava ele uma difusa noite, remota e inquietante, à beira-mar, e que eu fantasiava de lantejoulas inscritas em crepes esfarrapados. E quando numa ocasião, e em Roma, o ficcionista italiano Vincenzo Consolo, presidente do júri do Prémio da União Latina que eu integrava, se lançou a explicar a metamorfose de que sofria Pasolini, homem sereno e cordato à luz do dia, mas íntimo de anjos negros depois do pôr do Sol, aflorou-me à memória o fantasma de Luís Miguel. Compensava-me já porém um secreto júbilo, sobrevivente ao destino que lhe coubera. Na madrugada de Primavera em que o velávamos, e em surdina, confidenciara-me o pai do poeta o quanto este tinha apreciado as palavras de entusiasmo com que eu saudara o seu último livro, o extraordinário Vulcão. Não por acaso, e nas linhas finais do mesmo, pediria ele ao leitor,
"Acolhe-o, pois, com benevolência, que, chegada a altura, havemos de arder juntos."
por MÁRIO CLÁUDIO
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