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O recorde de usuários online foi de 864 em Sex Fev 03, 2017 11:03 pm
O amor como gesto político
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O amor como gesto político
Todos dizem que se vivem tempos excepcionais, e não poderia estar mais de acordo, mas então porque é que são a apatia, a descrença e o medo a ordenar os nossos dias em vez da vitalidade transformadora?
Minto. Ainda existe quem lute todos os dias contra a inércia ou o cinismo, ensaiando uma forma qualquer de esperança. Gente que acredita que as mudanças individuais ou colectivas só podem acontecer longe das nossas zonas de segurança, acreditando na cultura, nas pessoas, na criatividade, na capacidade de resistência que nasce de percebermos o que é irrelevante como forma de superar o desencanto e a desconfiança.
Constatei-o há uma semana na ainda estigmatizante Zona J, em Chelas, periferia de Lisboa, a pretexto do festival Zona Não Vigiada, que ali se realiza este sábado, organização da companhia Casa Conveniente de Mónica Calle e da Associação Filho Único, para a feitura de uma reportagem para o jornal.
O texto foi escrito terça-feira, em estado febril, devido a doença, no dia em que obrigatoriamente teve que ser paginado. Coisas de jornais. Mas, enfim, nem é por aí. Assumo-o: o texto que escrevi não me satisfaz.
Sim, está lá o discurso das “margens” e do “centro” e toda a ganga teórica que forjamos para tentar organizar a realidade, mas isso é igual a nada nestes tempos, sim, realmente excepcionais que vivemos. Não está lá a vontade regeneradora que pressenti. A Mónica Calle a apresentar-me o novo espaço de trabalho, devolvendo-mo como o arquitecto que olha o entulho e vislumbra o seu potencial mesmo se vemos ruínas. Não está lá o maravilhamento perante o mundo só possível em quem olha para destroços e consegue ver mar, céu e terra.
Não está lá o amor como gesto político, no mais puro sentido do termo, que propicia que pessoas de diversas condições e origens se encontrem e desenvolvam sentimentos de pertença e de auto-estima. Não está traduzido o afecto que Mónica Calle e Filho Único colocam nas suas acções, dando espaço à inscrição de quem não tem voz, tocando-os e humanizando-os, fazendo-as sentir parte de uma lógica de mudança, ao mesmo tempo que também eles se transfiguram.
E isso ainda se tornou mais inteligível quando, por contraste à ilha de esperança que fui encontrar, dei por mim a assistir à campanha eleitoral na TV. Apetece perguntar. Quem são aquelas pessoas? De que falam? Onde vivem? Que histórias nos contam elas?
O país empobreceu. A classe média foi aniquilada. A cultura e a educação degoladas. Regressa-se uma lógica assistencialista de asilo e de caridade. E tudo isto para diminuir uma dívida que afinal aumentou e para nos seduzirem com a ficção do crescimento económico. É este o programa político deste governo: mantermo-nos moribundos, porque é melhor do que estarmos mortos. Não derrotar isto, é assumir o óbito.
E o que faz a oposição? O PS deixa-se enredar nas suas dúvidas sem capacidade de ler o país e o mundo, não incorporando a zanga que grassa por aí com receio de assustar algum eleitorado. Oiço dizer que é sentido de Estado. A mim parece-me falta de ideias e de acutilância.
E a esquerda à esquerda do PS? Divide-se quando se existe momento em que se devia unir era este. Tinha aqui a sua oportunidade histórica e não o entendeu. O PCP vive no seu velho casulo, mantendo a relação de comunicação para uma parcela da população, enquanto Bloco, Livre ou Agir, captam os ventos de renovação da esquerda, mas não comunicam com universalidade, para além de um círculo mais cultivado, urbano, burguês. O povo não os entende, não vive no mesmo mundo, acha-os meninos de boas famílias, como aos outros, neste país onde a política ainda parece ser meia dúzia de grupos que se reproduz em cargos e posições.
E no entanto esta era a hora de forjar uma nova forma de fazer política, de mobilizar e chegar a essas pessoas, zangadas, defraudadas, humilhadas e empobrecidas, sem empregos, à margem, não inscritas. Hoje vivemos num país, com mais doutores, é certo, mas ainda assim pouco ambicioso, crítico, instruído. E quem está no poder sabe-o, debilitando educação e cultura, suportes para o pensamento crítico.
Mas isso não pode ser desculpa. Não vale a pena o lamento. Portugal nunca será a Suécia, apesar de existirem muitas elites que sentem que Portugal é pequeno demais para a sua grandeza pessoal, expelindo fel em crónicas de jornal, incapazes de gostar do país da única forma possível, com as suas fragilidades e muitas qualidades. Não é isso, afinal, o amor?
A esquerda à esquerda do PS tinha que chegar a essa gente descrente, amotinada pela realidade cinzenta e pela cacofonia mediática que tantas vezes confunde o essencial. Não sei se o conseguiu. E no entanto é possível tocá-las. Vejo isso por aí. Em Chelas, sim. Mas também em muitos outros grupos formais ou informais de cidadãos que ensaiam novas formas de estar e, à sua maneira, experimentando novas maneiras de fazer política. Ou em eventos como o Jardins Efémeros de Viseu, ou o Walk Talk dos Açores, que sabem como registar e fazer participar pessoas em actividades socioculturais que não são outra coisa senão política no sentido maior da dimensão sociológica.
Sim, vivem-se tempos de excepção. E tanto se pode voltar às cavernas, à escuridão, aos instintos mais primários, como viver a democracia como um prazer. Por isso, sim, tiro o chapéu a quem, no meio das tormentas, tem brio, acredita no que faz, fazendo-o com humanidade, não se definindo pelo que consomem ou pela gravata que envergam.
Não estão nos telejornais e nos partidos, mas são sem dúvida a sua vanguarda, operando pequenas transformações políticas que, mais cedo ou mais tarde, chegarão ao todo da sociedade portuguesa, acreditando no amor como um percurso e não como um acontecimento, estando por isso conscientes que reinventar o mundo é uma tarefa de grande fôlego. Obrigado a eles por não desistirem.
VÍTOR BELANCIANO
25/09/2015 - 10:25
Público
Minto. Ainda existe quem lute todos os dias contra a inércia ou o cinismo, ensaiando uma forma qualquer de esperança. Gente que acredita que as mudanças individuais ou colectivas só podem acontecer longe das nossas zonas de segurança, acreditando na cultura, nas pessoas, na criatividade, na capacidade de resistência que nasce de percebermos o que é irrelevante como forma de superar o desencanto e a desconfiança.
Constatei-o há uma semana na ainda estigmatizante Zona J, em Chelas, periferia de Lisboa, a pretexto do festival Zona Não Vigiada, que ali se realiza este sábado, organização da companhia Casa Conveniente de Mónica Calle e da Associação Filho Único, para a feitura de uma reportagem para o jornal.
O texto foi escrito terça-feira, em estado febril, devido a doença, no dia em que obrigatoriamente teve que ser paginado. Coisas de jornais. Mas, enfim, nem é por aí. Assumo-o: o texto que escrevi não me satisfaz.
Sim, está lá o discurso das “margens” e do “centro” e toda a ganga teórica que forjamos para tentar organizar a realidade, mas isso é igual a nada nestes tempos, sim, realmente excepcionais que vivemos. Não está lá a vontade regeneradora que pressenti. A Mónica Calle a apresentar-me o novo espaço de trabalho, devolvendo-mo como o arquitecto que olha o entulho e vislumbra o seu potencial mesmo se vemos ruínas. Não está lá o maravilhamento perante o mundo só possível em quem olha para destroços e consegue ver mar, céu e terra.
Não está lá o amor como gesto político, no mais puro sentido do termo, que propicia que pessoas de diversas condições e origens se encontrem e desenvolvam sentimentos de pertença e de auto-estima. Não está traduzido o afecto que Mónica Calle e Filho Único colocam nas suas acções, dando espaço à inscrição de quem não tem voz, tocando-os e humanizando-os, fazendo-as sentir parte de uma lógica de mudança, ao mesmo tempo que também eles se transfiguram.
E isso ainda se tornou mais inteligível quando, por contraste à ilha de esperança que fui encontrar, dei por mim a assistir à campanha eleitoral na TV. Apetece perguntar. Quem são aquelas pessoas? De que falam? Onde vivem? Que histórias nos contam elas?
O país empobreceu. A classe média foi aniquilada. A cultura e a educação degoladas. Regressa-se uma lógica assistencialista de asilo e de caridade. E tudo isto para diminuir uma dívida que afinal aumentou e para nos seduzirem com a ficção do crescimento económico. É este o programa político deste governo: mantermo-nos moribundos, porque é melhor do que estarmos mortos. Não derrotar isto, é assumir o óbito.
E o que faz a oposição? O PS deixa-se enredar nas suas dúvidas sem capacidade de ler o país e o mundo, não incorporando a zanga que grassa por aí com receio de assustar algum eleitorado. Oiço dizer que é sentido de Estado. A mim parece-me falta de ideias e de acutilância.
E a esquerda à esquerda do PS? Divide-se quando se existe momento em que se devia unir era este. Tinha aqui a sua oportunidade histórica e não o entendeu. O PCP vive no seu velho casulo, mantendo a relação de comunicação para uma parcela da população, enquanto Bloco, Livre ou Agir, captam os ventos de renovação da esquerda, mas não comunicam com universalidade, para além de um círculo mais cultivado, urbano, burguês. O povo não os entende, não vive no mesmo mundo, acha-os meninos de boas famílias, como aos outros, neste país onde a política ainda parece ser meia dúzia de grupos que se reproduz em cargos e posições.
E no entanto esta era a hora de forjar uma nova forma de fazer política, de mobilizar e chegar a essas pessoas, zangadas, defraudadas, humilhadas e empobrecidas, sem empregos, à margem, não inscritas. Hoje vivemos num país, com mais doutores, é certo, mas ainda assim pouco ambicioso, crítico, instruído. E quem está no poder sabe-o, debilitando educação e cultura, suportes para o pensamento crítico.
Mas isso não pode ser desculpa. Não vale a pena o lamento. Portugal nunca será a Suécia, apesar de existirem muitas elites que sentem que Portugal é pequeno demais para a sua grandeza pessoal, expelindo fel em crónicas de jornal, incapazes de gostar do país da única forma possível, com as suas fragilidades e muitas qualidades. Não é isso, afinal, o amor?
A esquerda à esquerda do PS tinha que chegar a essa gente descrente, amotinada pela realidade cinzenta e pela cacofonia mediática que tantas vezes confunde o essencial. Não sei se o conseguiu. E no entanto é possível tocá-las. Vejo isso por aí. Em Chelas, sim. Mas também em muitos outros grupos formais ou informais de cidadãos que ensaiam novas formas de estar e, à sua maneira, experimentando novas maneiras de fazer política. Ou em eventos como o Jardins Efémeros de Viseu, ou o Walk Talk dos Açores, que sabem como registar e fazer participar pessoas em actividades socioculturais que não são outra coisa senão política no sentido maior da dimensão sociológica.
Sim, vivem-se tempos de excepção. E tanto se pode voltar às cavernas, à escuridão, aos instintos mais primários, como viver a democracia como um prazer. Por isso, sim, tiro o chapéu a quem, no meio das tormentas, tem brio, acredita no que faz, fazendo-o com humanidade, não se definindo pelo que consomem ou pela gravata que envergam.
Não estão nos telejornais e nos partidos, mas são sem dúvida a sua vanguarda, operando pequenas transformações políticas que, mais cedo ou mais tarde, chegarão ao todo da sociedade portuguesa, acreditando no amor como um percurso e não como um acontecimento, estando por isso conscientes que reinventar o mundo é uma tarefa de grande fôlego. Obrigado a eles por não desistirem.
VÍTOR BELANCIANO
25/09/2015 - 10:25
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